Cinema, literatura & quadrinhos
Criticas, resenhas, artigos e reportagens de Marcelo Miranda
terça-feira, 25 de outubro de 2011
Mostra 2011: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
Em Os Matadores (1997), primeiro longa de Beto Brant, existia um tom de realismo muito forte em toda a articulação daquela trama de traição na fronteira – realismo, este, que vinha menos de levar o “real” à tela e muito mais da maneira naturalista como se buscava representar o enredo. Cão sem Dono, feito dez anos depois, assumia a matiz naturalista em sua estética e na interpretação dos atores, em longos planos de diálogo ou de silêncios que tentavam reproduzir ao máximo uma certa “sensação” de realidade. Curioso perceber que este viera logo depois de Crime Delicado, o trabalho mais delirante de Brant.
Nenhum destes anteriores, porém, tinha não apenas a tal incorporação do ambiente, mas também o discurso sociológico de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Talvez sensibilizados pelo universo onde filmaram (marcado pelo desmatamento desenfreado), talvez já inspirados por elementos do romance de Marçal Aquino no qual o filme se baseia, os diretores se deixam seduzir pelo que se vê fora do roteiro e somam esses elementos ao fio condutor. São desde moradores locais ouvindo o ator Zécarlos Machado numa homilia a crianças acompanhando um espetáculo de circo, incluindo aí o discurso de um indígena em prol da salvação das madeiras amazônicas. Essa estrutura dúbia atinge o ápice num desvio narrativo e visual que o filme faz, em planos panorâmicos ora sobre o rio Amazonas, ora sobre moradores do lugar, tudo trabalhado na pós-produção de maneira a reforçar gritantemente as cores de cada elemento na tela, provocando um efeito de imediato estranhamento por aquilo não estar em absolutamente nenhum outro momento do filme.
A estrutura fragmentária de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios permite, assim, que momentos como este venham e vão com bastante liberdade no filme. Apesar de haver um mínimo de cronologia na narrativa central (o triângulo amoroso envolvendo um fotógrafo, uma ex-drogada e um pastor), os constantes fade-outs nos obrigam a nos rearticularmos a cada nova cena, nem sempre conseguindo nos ajustar no tempo (e, num determinado momento, nem mesmo no espaço, quando se salta para outro lugar e outra época). Essa percepção de transe de viés ritualístico está na chave de recepção do filme, dada desde o já citado plano inicial – uma nativa se exibindo à câmera, numa enigmática movimentação corporal num mangue ao som de batucadas externas nunca identificadas. É um plano que tanto não se relaciona com a narrativa como serve completamente à libertação que Brant e Ciasca tateiam.
Essa libertação tenta ser representada na própria trajetória dos personagens. Lavínia (Camila Pitanga), em especial, está sempre transitando em paroxismos de comportamento que a levam para os braços de algum homem em momentos distintos do filme; o corpo dela é o depositário dos desejos incandescentes que desencadearão os principais acontecimentos. Cauby (Gustavo Machado) se moverá sempre em prol do corpo de Lavínia (incluindo seu olhar de fotógrafo, que desde o início quer registrá-la), num misto de paixão e desejo intensos, também marcado pela ilusão de felicidade. O olhar frontal com o qual o filme se conclui é ao mesmo tempo outra quebra da ilusão imagética (como tanto se persegue em vários momentos) e uma piscada das infinitas possibilidades do que se pode esperar de uma ilusão amorosa. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é um filme de aparências (reais e fictícias), nem sempre muito coeso, mas com uma pulsão que pode nos desafiar à ambição de decifrá-lo.
Mostra 2011: O Garoto da Bicicleta
Há algo de realmente mágico em como os diretores, em tão pouco tempo, criam um universo com o qual nos sentimos tão intimamente conectados. Os personagens são poucos, as situações são muitas e o cuidado na construção de cada momento da narrativa é de uma precisão sem igual. Não mais acompanhando seus protagonistas pelas costas, agora os Dardenne os olham de frente e lhes permitem ser tão ativos de seus atos quanto podendo ser julgados por eles. Devido à câmera mais afastada dos corpos dos atores, o espectador pode vislumbrar as situações menos como um cúmplice e mais como observador atento e curioso. Se isso dá ao filme os efeitos de uma narrativa um tanto mais tradicional, a direção dos Dardenne garante que, a certa altura, você não conseguirá estar fora: O Garoto da Bicicleta, na sua simplicidade de recursos, te arrasta pelos braços e, de uma outra maneira, te faz cúmplice também.
A política é ainda uma questão premente e pulsante para os Dardenne tanto quanto ela surge em camadas discretas e subterrâneas. Não há discursos nem sociologia: há o enfrentamento direto de uma situação delicada que diz muito da juventude europeia deixada à sua própria sorte por condições sociais pouco favoráveis à harmonia fraterna e familiar. Indiretamente, O Garoto da Bicicleta é uma espécie de sequência de outro trabalho dos irmãos belgas, A Criança. Neste, víamos um pai vendendo o filho recém-nascido para conseguir dinheiro. Agora assistimos a um pai (o mesmo ator de antes, Jérémie Renier – e essa escolha definitivamente não é aleatória) que vende a bicicleta do filho e se nega a encontrar o menino, porque essa convivência pode prejudicar sua tentativa de recomeçar a vida a partir de um emprego num restaurante.
Muito vinculados ao neorrealismo, os Dardenne fazem aqui sua versão de Ladrões de Bicicleta, com toques da nouvelle vague de Os Incompreendidos naquele vulcão que é um pré-adolescente rejeitado pela família, correndo pelas ruas e cujo afresco estará em algum símbolo de sua inocência (no caso aqui, a bicicleta), enquanto paira a proximidade sedutora da marginalidade. Os Dardenne narram um pequeno conto sobre uma trajetória possível rumo à perdição. Como é de praxe em seu cinema, esse caminho, fruto de um contexto muito maior do que simplesmente as escolhas dos personagens, terá um desvio, que pode ou não definir outros rumos. O Garoto da Bicicleta é tanto mais esteticamente clássico quanto funciona também de contraponto a Rosetta, outro trabalho da dupla sobre uma criança sem rumos. De um filme a outro, o olhar sobre o mundo mudou. De qualquer maneira, ainda humanistas, os Dardenne fazem da realidade a propulsora de suas capacidades como realizadores de cinema.
domingo, 16 de outubro de 2011
"Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios"
Dario Argento
"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet
"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
"Nêmesis", de Philip Roth
"Nêmesis", de Philip Roth
Certa tarde, no começo de julho, dois carros cheios de italianos do ginásio East Side, rapazes entre quinze e dezoito anos, estacionaram no alto da rua residencial que contornava os fundos do pátio de recreio. O East Side ficava no bairro de Ironbound, uma área de fábricas e cortiços onde até então havia sido registrado o maior número de casos de pólio. Tão logo o sr. Cantor os viu, largou a luva no chão — ele defendia a terceira base numa de nossas peladas — e deu uma corridinha até o lugar onde se encontravam os dez estranhos saídos dos carros. Seu estilo atlético de correr, com os pés virados para dentro, era imitado por todos os garotos que frequentavam o pátio, como também o modo decidido de elevar ligeiramente o corpo quando se movia quase na ponta dos pés e o leve balanço dos ombros musculosos ao andar. Toda a sua postura se tornara um modelo para alguns dos garotos tanto dentro quanto fora do campo de beisebol. "O que é que vocês querem aqui?", perguntou o sr. Cantor. "Estamos espalhando pólio", um dos italianos respondeu, o primeiro a sair do carro com ares de valentão.
Tonino Guerra
*Publicado em "O Tempo" no dia 30.9.2011
** Na foto acima, Tonino Guerra (à direita) está com Michelangelo Antonioni.
"Encruzilhada" e "Johnny Furacão"
Perfis
Referências.
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Robert Louis Stevenson
O CLUBE DO SUICÍDIO E OUTRAS HISTÓRIAS
Editora Cosac Naify
*Publicado em "O Tempo" no dia 17.9.2011
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
"Hellblazer" e John Constantine
terça-feira, 13 de setembro de 2011
Sobre "A Alegria", de Felipe Bragança e Marina Meliande
Os curtas de Beto Brant
"Sátántangó", de Béla Tarr
domingo, 28 de agosto de 2011
Johnnie To pós-2005: domesticação com liberdade
O mundo dos festivais ocidentais de cinema descobre Johnnie To a partir de 2005. É o ano em que Eleição – O Submundo do Poder compete pela Palma de Ouro no Festival de Cannes. E é o ano em que o cineasta recebe olhares curiosos de diversas partes do mundo que permaneciam alheias à prolífica produção deste realizador de Hong Kong. Os downloads de seus filmes disparam nas comunidades virtuais, a cobrança para que distribuidoras o lancem nos circuitos locais aumenta e a curiosidade por cada novo trabalho é proporcional ao deleite com que são recebidos quando finalmente vistos (por vias oficiais ou não). Daquele seminal 2005 em diante, To vai aparecer em todos os outros grandes eventos de cinema do mundo – em Veneza, com Mad Detective (2007 – em parceria com Wai Ka-fai) e Exilados (2006); em Berlim, com Sparrow(2008); de volta a Cannes, tanto na mostra competitiva com Vengeance (2009) quanto em seleções paralelas, exibindo Eleição 2 (2006) e Triangle (2007 – em parceria com Tsui Hark e Ringo Lam).
Mudou To ou mudaram os festivais? Coincidência ou não, é nesta fase que o cinema dele se apresenta mais “domesticado” – e aqui não se quer colocar nenhum caráter pejorativo ao termo. Se até 2005 a estética de To se baseava num fluxo contínuo de ação e reação, com a câmera quase sempre captando o que era mais plausível de captar dentro do espaço, sem com isso parecer que a câmera soubesse onde deveria estar (pensemos na sequência final de A Hero Never Dies, de 1998), o To pós-Eleição vai deixar muito mais evidente a mise en scène: a movimentação dos corpos estará mais “bailada”, os enquadramentos serão milimetricamente construídos para aproveitar ao máximo o que permite o formatoscope, os atores estarão muito mais dependentes de marcação, as coreografias de lutas e tiroteios vão aparentar uma correção visual bem menos anárquica. Será – buscando aqui as definições de Rogério Sganzerla – uma câmera muito mais ideal do que possível, um tipo de cinema mais “limpo” do que “sujo”, uma disposição de elementos bastante mais explícita na medida em que surjam as necessidades e possibilidades do quadro.
Por esse processo de “limpeza”, o cinema de Johnnie To conquistou as plateias (e curadores de festivais) que até então não tinham olhado para ele com a devida atenção. Desde John Woo um cineasta de Hong Kong não era tão cultuado fora de seu território – e, ironicamente, os ocidentais só perceberam o que existia no passado de Woo quando, depois de anos de atividade na terra natal, ele foi filmar nos EUA, onde estreou em 1993 com O Alvo, protagonizado por Jean-Claude Van Damme. Mais irônico é que To tenha sido descoberto pelos festivais do Ocidente com um filme que nem possui as características mais notáveis de seu cinema. Eleição, ainda que de elaboradíssima conceituação formal, não tem tiros, aproveita-se do excesso de personagens para montar o drama central e se configura muito mais como um “filme de máfia”, no sentido tradicional do termo, do que necessariamente “um filme de máfia de Johnnie To”. Daí, talvez, a impressão (muitas vezes incômoda) de se estar assistindo, durante Eleição, a um piloto de série de televisão.
É na continuação do filme que To demonstra muito de seu modo de trabalho. Mesmo que permanecendo dentro das “regras” criadas por ele mesmo para o primeiro Eleição(nada de tiros, ênfase nas negociações e trapaças políticas, personagens que vão e vêm), Eleição 2 – A Tríade se sustenta menos nos meandros das artimanhas pelo controle da máfia de Hong Kong do que na trajetória do protagonista Jimmy Lee – o que se vê, de fato, é uma simbiose entre os dois temas do filme, um alimentando o outro. E, disso, To entrega algumas das cenas mais marcantes de todo o seu cinema. Transformando a morte num ritual de dolorosa penitência (a quem provoca e a quem é vítima), o diretor faz dos constantes instantes de assassinato de Eleição 2 grandes marchas fúnebres, via uso da música, da câmera que passeia pelas imagens com muita calma e da própria face de quem está na tela. O filme se torna um impressionante acúmulo de violência, algumas de um barbarismo primitivo (exemplo máximo: a cena dos cachorros). O inferno em Eleição 2 é bem ali, em Hong Kong.
A polícia surge com maior presença em outros filmes realizados por To depois de Eleição, ao menos de duas formas: ou na chave do deboche e da ironia, caso de Exilados, em que há um agente que sempre aparece na hora dos enfrentamentos entre bandidos, mas nunca interfere na ação – ele conta as horas para se aposentar, diz estar sempre “de passagem” e telefona pessoalmente ao líder mafioso, pedindo que o proteja; ou como instância da ingenuidade em meio ao fogo cruzado, como emTriangle, no qual o policial aparece pouco além da metade do filme e é fundamental para a redenção do trio protagonista, ainda que suas atitudes (enquanto autoridade) contem pouco para isso.
O outro elemento ausente do díptico Eleição – mas presente nos filmes posteriores e anteriores de To – é a camaradagem entre os personagens. O próprio diretor é ele mesmo adepto das amizades no âmbito profissional. Começou a carreira trabalhando com Tsui Hark, tem alguns filmes em parceria com Wai Ka-fai (o mais recente sendo Mad Detective, já da fase atual) e é daqueles cineastas que utilizam os mesmos atores em diversos títulos, à moda de John Ford, John Cassavetes, Ingmar Bergman, Woody Allen e Martin Scorsese – no caso de To, algumas figuras sempre reconhecíveis são Ching Wan Lau, Simon Yam, Francis Ng e Suet Lam. [Se os nomes são difíceis de vincular aos rostos, uma rápida pesquisa no Google Images esclarece quem é quem.] Recentemente, To voltou a dividir a direção com dois colegas de país e profissão – o supracitado Hark e Ringo Lam – num filme que celebra justamente esse companheirismo intrínseco ao universo de To.
Porque, por mais violentas que sejam as regras dos mundos de crime inventados por Johnnie To, elas estarão sempre um degrau abaixo da manutenção dos laços fraternos. Não é algo recente – na verdade, permeia a obra do cineasta, tornando-se mesmo uma questão emThe Mission (1999) e atingindo tons míticos na carnificina final de Exilados. O passado, nestes filmes, se transforma em propulsor para o presente. Os filmes se rendem ao amor existente entre os personagens e não precisam se justificar enquanto obra artística para reforçar as relações: em Exilados, a imagem que revela o antigo envolvimento do quinteto protagonista aparece por duas vezes, numa mesma foto, e essa imagem pipoca na tela sem qualquer “motivo” da diegese. Ela é a representação pura e simples da principal questão do filme, e a força “superiora” do realizador a insere entre uma cena e outra, completando o ciclo daqueles amigos malfadados. Em Sparrow, os batedores de carteira deixam um pouco de lado o “ofício” e se unem para auxiliar uma bela mulher a escapar de um homem que insiste em persegui-la – e levam ao limite máximo não apenas a fidelidade uns aos outros, mas o compromisso informal de proteger a mulher.
Os filmes de Johnnie To a partir de 2005 são quase todos passíveis de se enquadrar no gênero da ação. O diretor sempre trabalhou nessa seara, mas tomou rumo contínuo, talvez influenciado pela receptividade pós-Eleição. E To, assim como o conterrâneo John Woo (mas de maneira bem distinta), faz da ação – corpos, tiros, movimentação no espaço – pura arte. É significativa e fundamental sua preferência por locais fechados, o que lhe permite dominar com mais apuro cada gesto dos atores e do próprio lugar. Exilados, nesse sentido, é uma de suas realizações mais notáveis, pois não apenas desenvolve todas as grandes cenas em ambientes hermeticamente trancados, como utiliza o que estiver à disposição no próprio espaço – portas, tapetes, janelas, macas de enfermaria, cortinas, mesas, latas de RedBull. Mad Detective, por outro lado, tem um dos mais belos plongées da carreira de To, justamente o plano final, em que assistimos ao protagonista, num galpão, realizar um autêntico quebra-cabeças no troca-troca de armas – um quebra-cabeças só compreensível pelo personagem, mas uma maravilha de ser testemunhado pelo espectador.
Mesmo quando a ação se obriga a ser num local externo, como é no fim de Triangle, To dá um jeito: a sequência (dirigida por ele, dentro do trabalho dividido no qual se constitui o filme) é toda num milharal de altas folhagens, onde é impossível enxergar para além do próprio nariz – o que permite, por exemplo, alguém poder engatinhar e entregar uma arma a outra pessoa sem que o inimigo, posicionado a poucos metros de distância, consiga perceber a movimentação. Sparrow também tem o clímax em lugar aberto – uma travessia de rua com dezenas de pessoas caminhando –, e novamente To realiza um feito brilhante, ao “fechar” os personagens debaixo de guarda-chuvas e fazê-los se confrontarem dentro dos limites possíveis de se enxergar ou se movimentar devido ao uso da bugiganga. Até a água da chuva, aqui, ganha importância salutar. É desse uso do espaço como aliado da ação – ou, mais que isso, como participante ativo – que a forma dada por Johnnie To em seus filmes a um gênero tão combalido consegue extrapolar a mera categorização.
E essas cenas são todas de um realismo exemplar – um realismo que não quer ser realidade (vide o sangue digital que estoura dos corpos de Exilados), mas, sim, expor na imagem uma forma de ser real através de si mesma, fazendo o espectador acreditar na possibilidade de aqueles homens e mulheres existirem dentro da tela. A representação na tela serve ao filme muito mais do que a realidade serviria aos personagens – e eles, obviamente, são integrantes dessa representação. Com tal liberdade de atuação, Johnnie To faz a selvageria correr solta. Não há tempo para muita estratégia a quem se arrisca a ser cria do cinema de To. Ainda nessa urgência, a montagem é movida a cortes que dão atenção suficiente a cada movimento, a toda a compreensão do fato, ao respiro necessário para que não se atropele a própria beleza daqueles bailados, na maioria das vezes, à base de pólvora (mas também de sopapos, cacetadas, afanações e respingos d’água).
No único filme desta fase do diretor em que há elementos sobrenaturais (Mad Detective), o que conta não é a verossimilhança típica de um mundo dito “normal” (portanto, nossos amigos verossímeis, como diria Hitchcock, não serão atendidos por To). Vale é o uso da ficção no desenvolvimento de um universo moldado para aqueles sujeitos enquadrados pela câmera, a total imersão na movimentação e o extravasamento da lógica como meio de se atingir o sentido e a catarse da cena. Fazer isso com coesão, elegância, beleza, maravilhamento e completo prazer – eis o que torna Johnnie To um grande artista de imagens e sons.
*Publicado na edição 94 da revista "Contracampo"
sexta-feira, 26 de agosto de 2011
Vincenzo Amato e "Sobre a Neblina"
*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 26.8.2011
"Sobre a Neblina": no set com Paula Gaitán
*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 26.8.2011
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
30 depois de Glauber - parte 3: Ruy Gardnier
O que ficou ou permanece da passagem de Glauber pela cultura brasileira?
30 anos depois de Glauber - parte 2: Eduardo Escorel
30 anos depois de Glauber - parte 1
*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011
"Lola", de Brillante Mendoza
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
"Giallo", de Dario Argento
No italiano, a palavra “giallo” significa “amarelo”. Livrinhos de bolso contendo histórias de crime e mistério eram apelidados de “giallos”, por conta das capinhas amarelas que os caracterizavam e facilitavam serem reconhecidos nas bancas italianas onde foram vendidos por muitos anos. E, a partir dos anos 70, “giallo” passou a definir um subgênero do filme policial popular italiano que se desenvolvia sob as “regras” das tramas narradas nos tais livrinhos: assassinos misteriosos, vítimas desesperadas, investigadores tentando desvendar o enigma, sexo, mortes múltiplas e bastante violência. Mario Bava foi um dos precursores dessa linhagem (1). Dario Argento fez o subgênero se firmar e se expandir para além das fronteiras do país.
É das lentes de Argento – com 69 anos e insistentemente ativo – que nasceu uma quarta acepção para “giallo”. Não poderia ser de forma menos sutil: o filme mais recente do diretor, lançado nos cinemas em 2009 (e apenas em DVD no Brasil(2)), tem justamente como título “Giallo” [por aqui, ainda recebeu o desnecessário adendo “Reféns do Medo”]. Pela escolha do nome do projeto e pelos instigantes cartazes apresentados durante a divulgação (um deles mostrava cinco enormes facas, sendo quatro em tom amarelo e uma, no meio das outras, de cor vermelha com gotas de sangue), a impressão era de que Argento estava voltando ao estilo que o consagrou – especialmente por O Pássaro das Plumas de Cristal (1971), Prelúdio para Matar (1975) e Tenebre (1982) – e o qual ele não visitava desde 2004, quando lançou o pouco compreendido O Jogador Misterioso.
Transcorridos alguns minutos de Giallo, percebe-se que o interesse de Argento não é exatamente revisitar o que fez em épocas passadas. Há diversos detalhes que negam o essencial: as mãos do assassino não têm as famosas luvas pretas; as vítimas não são mortas no local onde foram capturadas, sendo torturadas num esconderijo; a identidade do culpado é revelada com menos da metade da duração do longa. O próprio encaminhamento narrativo permite sentir o descarte do cineasta para com o tradicional “giallo”. Há, é certo, cenas e imagens que nos remetem àquele imaginário, como as armas perfurantes (facas e agulhas), os enquadramentos e travellings rigorosos e mesmo alguns instantes decalcados de outros filmes de Argento (a garota que sai atabalhoadamente na chuva, atrás de um táxi, lembra momento similar nos primeiros minutos de Suspiria, filme de 1977). Afinal, o que faz Argento em Giallo?
O suspense criado ao longo do filme é, ao mesmo tempo, a subversão da expectativa em torno do mito de Argento e uma sofisticada, e também grosseira, ironia do cineasta consigo mesmo e com o que ele tão bem fez em outros tempos. A grosseria, aqui, não tem conotação negativa. Um especialista em horror como Argento tem seus arroubos de grande esteta do mesmo jeito como é igualmente capaz de colocar em cena o vilão do filme se masturbando, de chupeta infantil na boca, enquanto assiste a fotos de suas vítimas com o rosto dilacerado.
Não deixa de ser uma das várias ironias de Dario Argento. Durante muito tempo, ele foi apontado como um diretor misógino, devido à “preferência” em matar mulheres nos filmes, das formas mais variadas e cruéis. Em entrevistas, negou a acusação, afirmando que as mulheres (e sua beleza natural) são, na verdade, o combustível da criatividade. Em Giallo, Argento cria um matador que se move pela raiva ao belo: ele leva garotas ao covil e as “enfeia” antes de desovar os corpos. O cineasta, assim, assume uma carapuça que sempre refutou, dando ao espectador a figura assumidamente misógina de um criminoso perturbado.
Este matador é, por si só, essencial na concepção de Giallo. Chamado Flavio Volpe, o personagem sofre de uma doença hepática que dá um tom amarelado à sua pele, gerando o trauma de, desde criança, ser considerado feio e “amarelo” pelos colegas de escola. Ora, a referência é absolutamente explícita: num filme de nome Giallo, dirigido por um cineasta notabilizado pelo subgênero homônimo, o artífice da violência em cena é, ele mesmo, “giallo” [amarelo]. Trata-se de uma justificativa fantasiosamente científica para tornar o antagonista a encarnação física de uma forma de cinema. Argento consegue, sem criar “ruídos” estéticos ou narrativos, fazer metalinguagem com sutil eficácia. Por essa chave, subverte a própria trajetória sem, por isso, deixar de falar de si mesmo e dos filmes que realizou. Como acontece em relação aos melhores momentos da obra de Quentin Tarantino (vide o sublime Bastardos Inglórios), não é essencial conhecer a fundo os caminhos anteriores de Dario Argento para a fruição do filme. Sabê-los, porém, torna a experiência não apenas mais interessante, mas especialmente estimulante.
Um outro elemento de contraposição em Giallo é Avolfi, o investigador encarregado de achar o assassino. Na sua primeira aparição, ele está numa sala com paredes cobertas por fotografias de mulheres brutalmente assassinadas. Enquanto olha o espaço, Avolfi aperta uma bolinha, certamente para espantar a tensão. Eis a essência do personagem: um homem angustiado cercado pelo horror do sangue das vítimas do criminoso e pela impossibilidade de capturá-lo. O detetive é uma criação fundamentalmente de cinema: não tem vida para além do serviço e possui um passado traumatizante narrado em flashback via imagens de tons fotográficos perturbadoramente amarelos [de novo] e cujo estopim é uma faca de açougueiro guardada na gaveta do escritório.
A evidência do quanto Argento faz de Avolfi um ser moldado única e exclusivamente para estar no filme – e nunca a serviço de algum discurso exterior à imagem – é que o trauma da juventude e a existência da faca na gaveta não propriamente servem ao enredo de Giallo. Então, para que mostrá-los? Porque Argento acredita na vivacidade de Avolfi, na necessidade dele existir enquanto representação imagética possuidora de temperamento, visão, inteligência e um passado – mas não necessariamente um futuro, já que o filme vai acabar em algum momento e, junto disso, esvai-se esse personagem.
O procedimento de dar a Avolfi uma existência que serve menos à narração do que à organicidade de um universo puramente imagético e sonoro denota um dos elementos mais encantadores em todo o cinema de Dario Argento, e o qual Giallo resgata com brilhantismo: a crença total e irrestrita no poder da ficção. Por mais que tangencialmente reflita sobre a violência, a moda e os padrões de beleza, Argento não mergulha nesses temas com tanta voracidade como o faz na forma de colocá-los em cena. Ao diretor, interessa criar uma atmosfera de tensão a cada novo desdobramento do enredo, mesmo que tal enredo abuse dos tropeços e barrigas narrativas.
Basta pensar em como Giallo, mesmo subvertendo determinados elementos do suspense de serial killer e do próprio subgênero “giallo”, rende-se a alguns clichês vagabundos. Os mais gritantes são a tradicionalíssima perseguição (frustrada) do policial atrás do assassino, a pé; e uma montagem paralela que insinua um encontro entre os dois para, logo em seguida, revelar que ambos estão em espaços distintos e distantes [recurso muito bem trabalhado, por exemplo, no clímax de O Silêncio dos Inocentes]. Ainda assim, a construção das cenas, em todo o cuidado com o espaço como elemento constituinte do suspense, não parece um clichê puro e simples. Está mais para uma visita à tradição do filme policial como um gênero específico. Para se inserir e bagunçar essa tradição, é preciso deixar claro o fato de estar dentro dela. A diferença de Argento para outros cineastas que tentariam o mesmo tipo de “estratégia” é que o italiano não tem a menor vergonha de parecer ridículo ou retrógrado, pois tem consciência suficiente de até onde pode ir e conta com a cumplicidade do público em mergulhar junto dele num verdadeiro lamaçal de procedimentos levados à exaustão em mais de um século de história do cinema.
O desfecho de Giallo é também uma piscadela para a provocação. Flavio Volpe escondeu uma garota e pressiona a irmã da moça, Linda (Emmanuelle Seigner), a ajudá-lo a fugir do país. Avolfi segue atrás de Volpe e o encurrala. O criminoso despenca para a morte sem revelar o paradeiro da vítima. Tem-se uma primeira quebra: Avolfi e Linda discutem, ela chama o detetive de assassino e o compara ao vilão recém-falecido. “Você é igual a ele”, vocifera(3). Transtornado, ele sai andando de frente à câmera. Num longo plano frontal, a tela lentamente escurece, a trilha sonora vai num crescendo e, de repente, para, junto com o negro que toma a imagem. Poderia ser o fim (e vamos admitir: seria um final perfeito). Só que Argento insere um epílogo, no qual revela o destino da moça.
A imagem definitiva do filme, congelada durante os créditos, lembra alguns dos finais mais impactantes do cineasta, como os de Prelúdio para Matar e Tenebre. A essência é a mesma: o mal foi desfeito e a esperança renasceu, mas a dor e a violência (sempre representadas pela presença do sangue, de um vermelho profundo(4)) são dados onipresentes, dos quais ninguém consegue escapar, mesmo numa conclusão aparentemente bem resolvida.
Talvez a pouca inventividade visual mostrada aqui por Argento – se o parâmetro de comparação for a obra pregressa do italiano, cheia de instantes inesquecíveis, muitos deles geniais – possa ser prejudicial à boa fruição de Giallo. A péssima recepção ao anterior O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007) pode ter ajudado num possível desânimo com o que viria a seguir. Não raras vezes, desde quando começou a ser visto, Giallo tem sido taxado de “burocrático”, palavra meio maldita no universo das artes, por conotar falta de esmero e paixão durante o ato de criação e realização do trabalho em questão.
Seria injusto, porém, não se deter mais calmamente no que Argento nos oferece. Giallo extrai vida e prazer das quebras de expectativas, do excesso de pretensões e dos aparentes empurrões que vai dando no espectador. É um filme, à sua maneira, torto e manco, e tira das imperfeições a força de um cinema autêntico e preocupado com a potencialidade de uma imagem e de um corte de montagem. Numa contemporaneidade cinematográfica na qual o público parece vibrar mais com supostas espertezas de roteiro (Charlie Kaufman, Zach Braff, Diablo Cody, Guillermo Arriaga, Paul Haggis, Christophe Honoré) do que com o brilhantismo possível de ser atingido na mais límpida e aparente simplicidade (James Gray e Amantes, Clint Eastwood e Gran Torino, Alain Resnais e Medos Privados em Lugares Públicos, Paul Verhoeven e A Espiã, Olivier Assayas e Horas de Verão), contarmos com um cineasta como Dario Argento, ainda capaz de nos provocar dessa forma, de nos fazer vibrar por sua paixão em empunhar a câmera e de transmitir, mesmo que por vezes aos solavancos, a empolgação de narrar visualmente – tudo isso é um grande privilégio.
NOTAS
Mario Bava (1914-1980) foi autor de uma filmografia fundamental na Itália e realizou alguns excepcionais exemplares do “giallo”, entre eles Seis Mulheres para o Assassino (1964) e Banho de Sangue (1971).
A Califórnia Filmes, distribuidora de Giallo no Brasil, aparentemente no intuito de evitar pirataria, a empresa relegou o filme apenas às locadoras do país. Tiveram o mesmo destino os dois projetos anteriores do cineasta exibidos por aqui. O Jogador Misterioso (2004) saiu só em DVD pela Fox, e O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007) ganhou exclusiva edição digital da Swen.
A frase de Linda tem um segundo sentido de provocação. Em Giallo, o ator Adrien Brody interpreta não apenas o investigador Enzo, mas também o próprio “assassino amarelo”, usando pesada maquiagem e sob o pseudônimo Byron Deirdra (anagrama de seu nome verdadeiro). Brody é ainda produtor executivo do filme.
Prelúdio para Matar, considerado por muitos como a obra-prima de Argento (ou, no mínimo, o mais perfeito de todos os “giallos” italianos) é originalmente intitulado Profondo Rosso – em português, “vermelho profundo”. O sangue de fortíssima coloração, quase escarlate, é característico do subgênero.
*Publicado na revista "Teorema" em dezembro de 2009