Por diversas vezes ao longo do filme, e desde o primeiríssimo plano, alguns personagens de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios olham frontalmente para a câmera. O porquê disso é o que mais intriga a fruição deste novo trabalho de Beto Brant e Renato Ciasca. É como se, nesses olhares diretos, fosse buscado algum tipo de quebra da ilusão, de provocação da realidade, de sacudida para um fora-do-filme que parece gritar dentro de cada plano em que isso acontece. Faz sentido, portanto, que este seja o trabalho de maior “invasão” do real na carreira da dupla. À maneira de Roberto Rossellini, situações testemunhadas no local da filmagem (Santarém, em Belém do Pará) são incorporadas à narrativa, buscando um tipo de organicidade que se equilibra entre a história que se narra e o escopo e ambiente onde ela se situa.
Em Os Matadores (1997), primeiro longa de Beto Brant, existia um tom de realismo muito forte em toda a articulação daquela trama de traição na fronteira – realismo, este, que vinha menos de levar o “real” à tela e muito mais da maneira naturalista como se buscava representar o enredo. Cão sem Dono, feito dez anos depois, assumia a matiz naturalista em sua estética e na interpretação dos atores, em longos planos de diálogo ou de silêncios que tentavam reproduzir ao máximo uma certa “sensação” de realidade. Curioso perceber que este viera logo depois de Crime Delicado, o trabalho mais delirante de Brant.
Nenhum destes anteriores, porém, tinha não apenas a tal incorporação do ambiente, mas também o discurso sociológico de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Talvez sensibilizados pelo universo onde filmaram (marcado pelo desmatamento desenfreado), talvez já inspirados por elementos do romance de Marçal Aquino no qual o filme se baseia, os diretores se deixam seduzir pelo que se vê fora do roteiro e somam esses elementos ao fio condutor. São desde moradores locais ouvindo o ator Zécarlos Machado numa homilia a crianças acompanhando um espetáculo de circo, incluindo aí o discurso de um indígena em prol da salvação das madeiras amazônicas. Essa estrutura dúbia atinge o ápice num desvio narrativo e visual que o filme faz, em planos panorâmicos ora sobre o rio Amazonas, ora sobre moradores do lugar, tudo trabalhado na pós-produção de maneira a reforçar gritantemente as cores de cada elemento na tela, provocando um efeito de imediato estranhamento por aquilo não estar em absolutamente nenhum outro momento do filme.
A estrutura fragmentária de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios permite, assim, que momentos como este venham e vão com bastante liberdade no filme. Apesar de haver um mínimo de cronologia na narrativa central (o triângulo amoroso envolvendo um fotógrafo, uma ex-drogada e um pastor), os constantes fade-outs nos obrigam a nos rearticularmos a cada nova cena, nem sempre conseguindo nos ajustar no tempo (e, num determinado momento, nem mesmo no espaço, quando se salta para outro lugar e outra época). Essa percepção de transe de viés ritualístico está na chave de recepção do filme, dada desde o já citado plano inicial – uma nativa se exibindo à câmera, numa enigmática movimentação corporal num mangue ao som de batucadas externas nunca identificadas. É um plano que tanto não se relaciona com a narrativa como serve completamente à libertação que Brant e Ciasca tateiam.
Essa libertação tenta ser representada na própria trajetória dos personagens. Lavínia (Camila Pitanga), em especial, está sempre transitando em paroxismos de comportamento que a levam para os braços de algum homem em momentos distintos do filme; o corpo dela é o depositário dos desejos incandescentes que desencadearão os principais acontecimentos. Cauby (Gustavo Machado) se moverá sempre em prol do corpo de Lavínia (incluindo seu olhar de fotógrafo, que desde o início quer registrá-la), num misto de paixão e desejo intensos, também marcado pela ilusão de felicidade. O olhar frontal com o qual o filme se conclui é ao mesmo tempo outra quebra da ilusão imagética (como tanto se persegue em vários momentos) e uma piscada das infinitas possibilidades do que se pode esperar de uma ilusão amorosa. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é um filme de aparências (reais e fictícias), nem sempre muito coeso, mas com uma pulsão que pode nos desafiar à ambição de decifrá-lo.
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