Na mitologia grega, Nêmesis seria filha do deus Zeus e passou a personificar a imagem da vingança. A palavra também é usada na descrição do que seria o pior inimigo, aquele que tem tanto o poder de nos enfrentar quanto de refletir nosso oposto.
Ao longo da leitura de "Nêmesis", 31º livro do norte-americano Philip Roth e recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras, a ficção parece nos levar a um sentido da palavra-título dentro da estrutura narrativa, até que, no desfecho, o leitor é atropelado pelo significado real do que Roth está dizendo. Preciso nas descrições, potente no desenvolvimento dos personagens e profundamente emocional na conclusão, Roth faz de "Nêmesis" um livro não apenas hipnótico, mas também avassalador.
O efeito não é novidade a quem vem acompanhando os últimos petardos de Roth, 78. Seu livro anterior, "A Humilhação", apesar de muito bem escrito, apelava para algumas soluções fáceis em suas pouco mais de cem páginas. Mas, antes, romances como "Indignação", "Fantasma Sai de Cena" e "Homem Comum" apresentaram uma espécie de "novo" Philip Roth - menos cáustico, mais psicológico, menos polemista, mais reflexivo, em histórias nas quais a morte se torna protagonista em situações variadas.
"Nêmesis" se ambienta na cidade de Newark (região metropolitana de Nova York), no verão de 1944. A guerra está em andamento na Europa. Porém, Bucky Cantor, 23, míope, não pôde acompanhar os amigos no front de batalha. Ficou em casa, trabalhando como vigia do pátio da escola de seu bairro (uma comunidade de judeus) e sendo admirado pelos alunos por seu vigor e coragem.
Mas eis que começa uma das piores epidemias de poliomielite já registradas nos EUA até aquela época. O cotidiano de Bucky se transforma completamente quando alunos seus passam a adoecer, com alguns morrendo pelos efeitos da doença.
A maneira como Roth vai desfiando as angústias de Bucky, através de um narrador que sempre tateamos para entender quem é e onde ele está, é a chave para o abalo que "Nêmesis" é capaz de provocar. Eis aqui um autor ainda no ápice.
"Nêmesis", de Philip Roth
"Nêmesis", de Philip Roth
Editora Cia das Letras
200 páginas
Tradução de Jorio Dauster
R$ 36
Trecho do livro
Certa tarde, no começo de julho, dois carros cheios de italianos do ginásio East Side, rapazes entre quinze e dezoito anos, estacionaram no alto da rua residencial que contornava os fundos do pátio de recreio. O East Side ficava no bairro de Ironbound, uma área de fábricas e cortiços onde até então havia sido registrado o maior número de casos de pólio. Tão logo o sr. Cantor os viu, largou a luva no chão — ele defendia a terceira base numa de nossas peladas — e deu uma corridinha até o lugar onde se encontravam os dez estranhos saídos dos carros. Seu estilo atlético de correr, com os pés virados para dentro, era imitado por todos os garotos que frequentavam o pátio, como também o modo decidido de elevar ligeiramente o corpo quando se movia quase na ponta dos pés e o leve balanço dos ombros musculosos ao andar. Toda a sua postura se tornara um modelo para alguns dos garotos tanto dentro quanto fora do campo de beisebol. "O que é que vocês querem aqui?", perguntou o sr. Cantor. "Estamos espalhando pólio", um dos italianos respondeu, o primeiro a sair do carro com ares de valentão.
Certa tarde, no começo de julho, dois carros cheios de italianos do ginásio East Side, rapazes entre quinze e dezoito anos, estacionaram no alto da rua residencial que contornava os fundos do pátio de recreio. O East Side ficava no bairro de Ironbound, uma área de fábricas e cortiços onde até então havia sido registrado o maior número de casos de pólio. Tão logo o sr. Cantor os viu, largou a luva no chão — ele defendia a terceira base numa de nossas peladas — e deu uma corridinha até o lugar onde se encontravam os dez estranhos saídos dos carros. Seu estilo atlético de correr, com os pés virados para dentro, era imitado por todos os garotos que frequentavam o pátio, como também o modo decidido de elevar ligeiramente o corpo quando se movia quase na ponta dos pés e o leve balanço dos ombros musculosos ao andar. Toda a sua postura se tornara um modelo para alguns dos garotos tanto dentro quanto fora do campo de beisebol. "O que é que vocês querem aqui?", perguntou o sr. Cantor. "Estamos espalhando pólio", um dos italianos respondeu, o primeiro a sair do carro com ares de valentão.
*Publicado em "O Tempo" no dia 1.10.2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário