"O Terceiro Mundo está de luto". Assim iniciava um dos artigos mais viscerais já publicados na imprensa brasileira. Era 24 de agosto de 1981, e Rogério Sganzerla assinava na "Folha de S.Paulo" o texto "Necrológio de um Gênio", emocionado obituário de Glauber Rocha, morto dois dias antes, aos 42 anos. Amanhã completam-se 30 anos desde o falecimento do cineasta. E o Terceiro Mundo continua de luto.
A lacuna de Glauber jamais foi preenchida. Na verdade, a se considerar o impacto de sua obra e a constante rememoração de seus trabalhos, ele nunca precisou de um substituto. Como diz Joel Pizzini, que trabalhou na restauração de vários filmes do diretor, "não foram 30 anos sem Glauber. Foram 30 anos depois de Glauber".
A imagem icônica do baiano nascido em 1939 no município de Vitória da Conquista nunca foi despregada do olhar e sensibilidade de centenas de brasileiros. Glauber não foi só o realizador de trabalhos fundamentais como "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e "Terra em Transe" (1967). Foi também um agitador cultural dos mais ativos. Controverso, falastrão, excessivo, genial e genioso - ou, novamente por Sganzerla, "concertista-mor, artífice de brilhantes obras cinematográficas, arranjador, encenador e coreógrafo do estranho balé do subdesenvolvimento". Em 1975, o ensaísta Paulo Emílio Sales Gomes vaticinou: "Glauber Rocha é profeta alado. Ele é uma de nossas forças, e nós, Brasil, a sua fragilidade".
"Glauber trabalhou com os mitos fundadores da nossa cultura, da nossa identidade e do poder", define o cineasta Joel Pizzini. "Seus filmes continuam na ordem do dia, pois o cinema dele aborda questões que ainda não foram digeridas, atravessando vários registros num diálogo contínuo com todas as outras artes".
Para o crítico e pesquisador Ruy Gardnier - que trabalhou como arquivista no Tempo Glauber (leia mais no quadro abaixo) -, a pecha de artista de difícil entendimento (que insiste em permanecer em muitos círculos quando se sequer se pronuncia o nome de Glauber Rocha) aconteceu de repente, de 1970 em diante, a partir do lançamento de "O Leão de Sete Cabeças".
"De um ano para outro, ele perde o status de um dos cineastas mais badalados do jovem cinema de autor contestador (junto com Jean-Luc Godard e Pier Paolo Pasolini, entre outros) e se transforma num diretor de ‘linguagem difícil, árida’, que é como o considerarão, a partir daí, os admiradores de seus filmes dos anos 60", comenta Gardnier. "Era uma tendência, mas a regressão foi brutal. Glauber se radicalizou e o público encaretou".
A efeméride pela partida de Glauber Rocha há três décadas será celebrada amanhã à tarde no plenário do Senado Federal, a pedido da senadora Lídice da Mata (PSB-BA). A mãe do cineasta, dona Lúcia Rocha, 92, confirmou presença. Em outra homenagem pública, a TV Senado vem exibindo, desde o último dia 7, vários longas-metragens de Glauber, sempre aos domingos, às 21h. Hoje é a vez de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Na semana que vem, passa "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969).
Acervo está com a Cinemateca Brasileira
Na última semana, o Tempo Glauber passou por um sufoco. Devido a um erro burocrático, a Secretaria do Audiovisual (SAV) cancelou o convênio firmado para manter a instituição em funcionamento.
Somente na quinta-feira a situação de alarme teve um respiro, quando Paloma Rocha, 51, primogênita de Glauber, recebeu novas informações do Ministério da Cultura. "Temos garantia de manutenção para pelo menos até dezembro. Depois, ainda é incerto", disse ela, que precisou demitir funcionários por conta da confusão da SAV.
O Tempo Glauber é o principal espaço a preservar e difundir tudo relacionado ao cineasta baiano. Localizado no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, foi fundado em 1989, depois de árdua batalha de seis anos da mãe de Glauber, dona Lúcia Rocha, no intuito de manter a memória do filho e abrir seus arquivos a quem se interessasse.
Recentemente, a Cinemateca Brasileira comprou boa parte do material do Tempo Glauber, incluindo os filmes e mais 22 mil documentos, entre roteiros, peças, romances e anotações. "É uma maneira de dar sobrevida aos originais e ampliar a difusão, numa data importante como a de agora", diz Paloma. "A memória de meu pai está garantida e tenho o sentimento de dever cumprido".
*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011
*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011
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