"Uma sessão de cinema é uma sessão de estupro". Assim se concluía um breve comentário de Jean-Claude Bernardet publicado em 1960 sobre o impacto que o cinema exercia sobre ele. O texto em questão abre a antologia "Trajetória Crítica", um dos trabalhos mais importantes na prolífica carreira deste intelectual do audiovisual, nascido na Bélgica e naturalizado brasileiro. Originalmente publicado em 1978 pela editora Polis, o livro ganha nova e caprichada edição via Martins Fontes (344 págs., R$ 39).
Na época da primeira versão de "Trajetória Crítica", Bernardet tinha 42 anos. Hoje, está com 75. Mesmo após décadas, optou por não mexer numa única vírgula daquele retrospecto de sua produção em jornais e revistas entre as décadas de 1960 e 70. Foi um período fértil, no qual ele se tornou voz relevante no pensamento cinematográfico brasileiro e revelou aspectos de militância que herdou do "padrinho" Paulo Emílio Sales Gomes - que o convidou para escrever críticas no Suplemento Literário do jornal "O Estado de S. Paulo".
O que se vê no livro, portanto, é uma espécie de balanço em progresso da evolução do próprio Bernardet através de seu pensamento crítico. O que diferencia o projeto de outras similares reuniões de textos é o caráter semiautobiográfico. Ao longo das páginas, não apenas são reproduzidos artigos da imprensa, mas registradas novas (e, na época, inéditas) reflexões do autor sobre seu ofício, suas crenças e dúvidas, sua experiência e a problematização do que representa ser crítico de cinema, em especial no Brasil, país subdesenvolvido.
Daí que Bernardet radiografa a transição entre ser o que ele chama de CCC ("crítico cinematográfico colonizado") - ou seja, aquele obsessivamente preocupado com a obra como "experiência artística pura", sem jamais inseri-la em contextos para além de si mesma - e o intelectual que, instigado pelas mudanças políticas e sociais no país, passa a se ater a elementos mais amplos e a se preocupar em conscientizar o leitor do significado implícito (ou explícito) de cada filme comentado dentro de um contexto bem maior ("uma cultura ‘participante’ que não permitia mais o culto da arte (...), para ter uma função não junto a uma camada, mas junto à sociedade global").
A ascensão do Cinema Novo, capitaneado por Glauber Rocha no começo dos anos 60, foi o estímulo necessário para essa mudança de postura diante da avaliação crítica proposta por Bernardet. Mesmo os textos sobre produções estrangeiras contidos no livro carregam uma gama infinita de valores a partir da exibição desses filmes num cenário como o brasileiro.
"Trajetória Crítica" também traz uma coletânea de artigos rigorosos de Bernardet contra a invasão, no Brasil, de filmes de outros países, em detrimento de maior espaço à produção local. Por vezes, ele parece estar escrevendo em 2011. Exemplos: "O público está dominado (...) por um imaginário que lhe propõe o filme estrangeiro, produto de uma realidade social e cultural que não é a sua"; "o problema do cinema brasileiro (...) é a ocupação do mercado interno pelo filme estrangeiro"; "exibidores e distribuidores nunca cuidaram de qualidade, mas de rentabilidade. De boa qualidade é o filme que tem boa bilheteria. Ou alguma vez um exibidor tirou de cartaz um filme de sucesso por achá-lo de má qualidade?".
Ainda que boa parte do interesse do livro esteja nas percepções de Jean-Claude Bernardet sobre seu ofício e na militância por uma melhor ocupação brasileira no mercado, o livro pode atrair quem simplesmente quer ler textos claros e feitos no calor da hora sobre determinados filmes.
Há artigos esclarecedores sobre "Viagem à Itália", de Roberto Rossellini, "Amantes" de Louis Malle, "Harakiri", de Masaki Kobayashi, e "Barravento", de Glauber Rocha acompanhados dos comentários posteriores do autor sobre sua própria produção intelectual.
"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet
"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet
Editora Martins Fontes
344 páginas
R$ 39
*Publicado em "O Tempo" no dia 8.10.2011
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