Se O Silêncio de Lorna (2008) já se apresentava como o filme mais “domesticado” dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, O Garoto da Bicicleta dá mostras de que os realizadores belgas podem ter realmente abdicado da câmera inquieta e movimentada de filmes anteriores seus (Rosetta e O Filho entre eles). O que de mais interessante se desprende dessa percepção é que eles talvez tenham mudado para continuarem os mesmos: apesar da estética mais comportada, seguem as narrativas sobre o “baixo clero” da comunidade europeia. Desta vez, o protagonista é um menino de uns dez anos, cujo pai o deixou indefinidamente num internato. Explosivo, passional e obcecado, este garoto não sossegará um só instante ao longo de quase 90 minutos de projeção – e realmente impressiona o quanto os Dardenne nos permitem estar juntos desse personagem, sofrer com ele, temê-lo, às vezes detestá-lo, outras tantas amá-lo.
Há algo de realmente mágico em como os diretores, em tão pouco tempo, criam um universo com o qual nos sentimos tão intimamente conectados. Os personagens são poucos, as situações são muitas e o cuidado na construção de cada momento da narrativa é de uma precisão sem igual. Não mais acompanhando seus protagonistas pelas costas, agora os Dardenne os olham de frente e lhes permitem ser tão ativos de seus atos quanto podendo ser julgados por eles. Devido à câmera mais afastada dos corpos dos atores, o espectador pode vislumbrar as situações menos como um cúmplice e mais como observador atento e curioso. Se isso dá ao filme os efeitos de uma narrativa um tanto mais tradicional, a direção dos Dardenne garante que, a certa altura, você não conseguirá estar fora: O Garoto da Bicicleta, na sua simplicidade de recursos, te arrasta pelos braços e, de uma outra maneira, te faz cúmplice também.
A política é ainda uma questão premente e pulsante para os Dardenne tanto quanto ela surge em camadas discretas e subterrâneas. Não há discursos nem sociologia: há o enfrentamento direto de uma situação delicada que diz muito da juventude europeia deixada à sua própria sorte por condições sociais pouco favoráveis à harmonia fraterna e familiar. Indiretamente, O Garoto da Bicicleta é uma espécie de sequência de outro trabalho dos irmãos belgas, A Criança. Neste, víamos um pai vendendo o filho recém-nascido para conseguir dinheiro. Agora assistimos a um pai (o mesmo ator de antes, Jérémie Renier – e essa escolha definitivamente não é aleatória) que vende a bicicleta do filho e se nega a encontrar o menino, porque essa convivência pode prejudicar sua tentativa de recomeçar a vida a partir de um emprego num restaurante.
Muito vinculados ao neorrealismo, os Dardenne fazem aqui sua versão de Ladrões de Bicicleta, com toques da nouvelle vague de Os Incompreendidos naquele vulcão que é um pré-adolescente rejeitado pela família, correndo pelas ruas e cujo afresco estará em algum símbolo de sua inocência (no caso aqui, a bicicleta), enquanto paira a proximidade sedutora da marginalidade. Os Dardenne narram um pequeno conto sobre uma trajetória possível rumo à perdição. Como é de praxe em seu cinema, esse caminho, fruto de um contexto muito maior do que simplesmente as escolhas dos personagens, terá um desvio, que pode ou não definir outros rumos. O Garoto da Bicicleta é tanto mais esteticamente clássico quanto funciona também de contraponto a Rosetta, outro trabalho da dupla sobre uma criança sem rumos. De um filme a outro, o olhar sobre o mundo mudou. De qualquer maneira, ainda humanistas, os Dardenne fazem da realidade a propulsora de suas capacidades como realizadores de cinema.
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