Mais de um ano após ser exibido na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela do Festival de Cannes, "A Alegria", dos cariocas Felipe Bragança e Marina Meliande, ganha o circuito comercial. O filme está em cartaz em Belo Horizonte desde sexta-feira [9 de setembro], em duas sessões no Usiminas Cineclube Savassi. Leia uma conversa que tive com o Felipe, por e-mail.
De que tipo de inquietação (pessoal, estética, narrativa, artística) nasce "A Alegria"? O filme nasce como projeto pensado a partir de uma dupla inquietação inicial - um incômodo grande em relação ao imaginário da grande mídia em torno do lugar político do jovem contemporâneo, sempre colocado como impotente e inerte, e um outro incômodo em relação à imagem do cinema brasileiro como algo aprisionado a uma pauta realista, reagindo apenas a impulsos temáticos e não se assumindo como criador de imagens e sensações e formas de vida. De alguma forma, toda a Trilogia Coração no Fogo é fruto de uma grande incapacidade de ficar parados que nos assolou em 2006 e que veio explodir agora com os filmes chegando nas salas de cinema.
O filme me parece refletir basicamente sobre como falar de juventude na ficção hoje, em especial no cinema brasileiro (devido às referências ao Rio e à violência). "A Alegria" é um filme jovem, sobre jovens ou um filme para jovens? Queríamos um filme adolescente: desejoso, forte, nervoso, calmo, sonhador e cheio de defeitos, incerto. Sendo assim - acho que é um filme que pode ser pensado tanto como um ser-vivo com o qual um adolescente pode se identificar, mas também um filme que coloca o lugar do adolescente como um lugar mítico de potência e criação, que vai além do adolescente como momento biológico, mas como contra-signo da apatia - e isso pode ser visto também como um filme "sobre adolescentes". Gostamos de confundir essas camadas. Entre John Hughes, Sganzerla, animé japonês e agendas adolescentes. E entre o que é discurso do autor e o que é vida independente do próprio filme, como algo que se movimenta à nossa revelia. Essa era a função dos não-atores no filme: deixar tudo prestes a desabar num mundo em ebulição.
"A Alegria" lida com questões muito realistas (adolescência, angústias, violência) num viés profundamente fabulista e lúdico. Como vocês conduziram o tom do filme dentro desse pensamento de dosar as duas "orientações"? Não gostamos de dividir as questões realistas das questões fabulares. Pensamos no filme como um fluxo de fantasmagorias criando imagens, discursos e sensações em torno daquilo do que queremos nos aproximar: esse lugar onde a realidade apática do Rio pudesse ser desafiada. A questão da violência entra, assim, também dentro desse imaginário de pesadelos e delírios da cidade que os personagens habitam. Então o tom fabular, pra gente, emerge de dentro do lugar realista, e vice-versa. Procuramos criar isso por dentro da fotografia e cenografia - em tons as vezes vibrantes e as vezes pastéis, em objetos realistas deslocados de sua normalidade em contraponto a momento de monstruosidade assumida. E também nos utilizando de um tom de diálogos que nos colocassem sempre num estado de dúvida, de alerta, de atenção.
O filme integra a chama Trilogia Coração no Fogo. No que ela consiste? Tudo gira em torno de um bilhete adolescente que encontrei em 2006 em uma pesquisa, já pensando em escrever um filme sobre juventude no Rio de Janeiro. Um bilhete anônimo de uma menina pela qual me apaixonei e dei um nome fictício: Luiza, por me fazer pensar em Luz. Daí, em conversas com Marina, pensamos numa trilogia sobre amores, utopias, aventura e risco por dentro desse olhar juvenil que estava no bilhete misterioso. Uma trilogia que girasse em torno da personagem da Luiza, despedaçada em três: no "A Fuga da Mulher Gorila" temos uma fábula feminina sobre o abandono e a transformação do corpo. A personagem de Flora Dias no Gorila é uma espécie de alter-ego sonhado pela Luiza, que sonha também com a Luiza do "A Alegria". O "Desassossego" é um filme em dez fragmentos de cinema, todos inspirados numa carta-manifesto assinada pela Luiza e por mim, e que mandei para 14 diretores. E "A Alegria" é o filme que narra algumas das aventuras da Luiza propriamente ditas, interpretada pela Tainá Medina que "incorporou" essa menina mítica como que incorpora um santo. Uma menina que eu nunca encontrei de verdade, mas que pra mim, pra nós, existe.
Você já foi definido como "um cineasta que faz críticas". No que sua experiência com crítica de cinema (e de cinefilia) te ajudou a desenvolver os filmes que vocês fizeram? Me chamavam assim porque eu nunca tive a mesma disciplina e dedicação para escrever sobre filmes que eu tenho para filmar e pensar filmes. Então eu escrevia nos entremeios das coisas que eu ia pensando, filmando. Em algum momento, eu já estava com 27 anos, resolvi deixar de vez de escrever resenhas de filmes e participar de revistas de críticas. Fazer filmes já me ocupava muito e eu achava que não era escrevendo sobre filmes que ia dar minha maior contribuição para o que eu via a meu redor, de bom e ruim. Conviver com aqueles críticos por 6 anos me deu uma carga cinéfila muito forte, e o hábito de mesclar filmes, referências e criar conexões entre elementos cinematográficos de forma criativa. Me ajudou também a aprender a pensar os filmes "dos outros", pela diferença e particularidade de cada proposta. Um filme como "Desassossego", onde tive que convidar e coordenar 13 diretores talentosos, ficou muito mais fácil de fazer por eu ter essa vasta experiência em observar o comportamento e as imagens de outros diretores.
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