O mundo dos festivais ocidentais de cinema descobre Johnnie To a partir de 2005. É o ano em que Eleição – O Submundo do Poder compete pela Palma de Ouro no Festival de Cannes. E é o ano em que o cineasta recebe olhares curiosos de diversas partes do mundo que permaneciam alheias à prolífica produção deste realizador de Hong Kong. Os downloads de seus filmes disparam nas comunidades virtuais, a cobrança para que distribuidoras o lancem nos circuitos locais aumenta e a curiosidade por cada novo trabalho é proporcional ao deleite com que são recebidos quando finalmente vistos (por vias oficiais ou não). Daquele seminal 2005 em diante, To vai aparecer em todos os outros grandes eventos de cinema do mundo – em Veneza, com Mad Detective (2007 – em parceria com Wai Ka-fai) e Exilados (2006); em Berlim, com Sparrow(2008); de volta a Cannes, tanto na mostra competitiva com Vengeance (2009) quanto em seleções paralelas, exibindo Eleição 2 (2006) e Triangle (2007 – em parceria com Tsui Hark e Ringo Lam).
Mudou To ou mudaram os festivais? Coincidência ou não, é nesta fase que o cinema dele se apresenta mais “domesticado” – e aqui não se quer colocar nenhum caráter pejorativo ao termo. Se até 2005 a estética de To se baseava num fluxo contínuo de ação e reação, com a câmera quase sempre captando o que era mais plausível de captar dentro do espaço, sem com isso parecer que a câmera soubesse onde deveria estar (pensemos na sequência final de A Hero Never Dies, de 1998), o To pós-Eleição vai deixar muito mais evidente a mise en scène: a movimentação dos corpos estará mais “bailada”, os enquadramentos serão milimetricamente construídos para aproveitar ao máximo o que permite o formatoscope, os atores estarão muito mais dependentes de marcação, as coreografias de lutas e tiroteios vão aparentar uma correção visual bem menos anárquica. Será – buscando aqui as definições de Rogério Sganzerla – uma câmera muito mais ideal do que possível, um tipo de cinema mais “limpo” do que “sujo”, uma disposição de elementos bastante mais explícita na medida em que surjam as necessidades e possibilidades do quadro.
Por esse processo de “limpeza”, o cinema de Johnnie To conquistou as plateias (e curadores de festivais) que até então não tinham olhado para ele com a devida atenção. Desde John Woo um cineasta de Hong Kong não era tão cultuado fora de seu território – e, ironicamente, os ocidentais só perceberam o que existia no passado de Woo quando, depois de anos de atividade na terra natal, ele foi filmar nos EUA, onde estreou em 1993 com O Alvo, protagonizado por Jean-Claude Van Damme. Mais irônico é que To tenha sido descoberto pelos festivais do Ocidente com um filme que nem possui as características mais notáveis de seu cinema. Eleição, ainda que de elaboradíssima conceituação formal, não tem tiros, aproveita-se do excesso de personagens para montar o drama central e se configura muito mais como um “filme de máfia”, no sentido tradicional do termo, do que necessariamente “um filme de máfia de Johnnie To”. Daí, talvez, a impressão (muitas vezes incômoda) de se estar assistindo, durante Eleição, a um piloto de série de televisão.
É na continuação do filme que To demonstra muito de seu modo de trabalho. Mesmo que permanecendo dentro das “regras” criadas por ele mesmo para o primeiro Eleição(nada de tiros, ênfase nas negociações e trapaças políticas, personagens que vão e vêm), Eleição 2 – A Tríade se sustenta menos nos meandros das artimanhas pelo controle da máfia de Hong Kong do que na trajetória do protagonista Jimmy Lee – o que se vê, de fato, é uma simbiose entre os dois temas do filme, um alimentando o outro. E, disso, To entrega algumas das cenas mais marcantes de todo o seu cinema. Transformando a morte num ritual de dolorosa penitência (a quem provoca e a quem é vítima), o diretor faz dos constantes instantes de assassinato de Eleição 2 grandes marchas fúnebres, via uso da música, da câmera que passeia pelas imagens com muita calma e da própria face de quem está na tela. O filme se torna um impressionante acúmulo de violência, algumas de um barbarismo primitivo (exemplo máximo: a cena dos cachorros). O inferno em Eleição 2 é bem ali, em Hong Kong.
A polícia surge com maior presença em outros filmes realizados por To depois de Eleição, ao menos de duas formas: ou na chave do deboche e da ironia, caso de Exilados, em que há um agente que sempre aparece na hora dos enfrentamentos entre bandidos, mas nunca interfere na ação – ele conta as horas para se aposentar, diz estar sempre “de passagem” e telefona pessoalmente ao líder mafioso, pedindo que o proteja; ou como instância da ingenuidade em meio ao fogo cruzado, como emTriangle, no qual o policial aparece pouco além da metade do filme e é fundamental para a redenção do trio protagonista, ainda que suas atitudes (enquanto autoridade) contem pouco para isso.
O outro elemento ausente do díptico Eleição – mas presente nos filmes posteriores e anteriores de To – é a camaradagem entre os personagens. O próprio diretor é ele mesmo adepto das amizades no âmbito profissional. Começou a carreira trabalhando com Tsui Hark, tem alguns filmes em parceria com Wai Ka-fai (o mais recente sendo Mad Detective, já da fase atual) e é daqueles cineastas que utilizam os mesmos atores em diversos títulos, à moda de John Ford, John Cassavetes, Ingmar Bergman, Woody Allen e Martin Scorsese – no caso de To, algumas figuras sempre reconhecíveis são Ching Wan Lau, Simon Yam, Francis Ng e Suet Lam. [Se os nomes são difíceis de vincular aos rostos, uma rápida pesquisa no Google Images esclarece quem é quem.] Recentemente, To voltou a dividir a direção com dois colegas de país e profissão – o supracitado Hark e Ringo Lam – num filme que celebra justamente esse companheirismo intrínseco ao universo de To.
Porque, por mais violentas que sejam as regras dos mundos de crime inventados por Johnnie To, elas estarão sempre um degrau abaixo da manutenção dos laços fraternos. Não é algo recente – na verdade, permeia a obra do cineasta, tornando-se mesmo uma questão emThe Mission (1999) e atingindo tons míticos na carnificina final de Exilados. O passado, nestes filmes, se transforma em propulsor para o presente. Os filmes se rendem ao amor existente entre os personagens e não precisam se justificar enquanto obra artística para reforçar as relações: em Exilados, a imagem que revela o antigo envolvimento do quinteto protagonista aparece por duas vezes, numa mesma foto, e essa imagem pipoca na tela sem qualquer “motivo” da diegese. Ela é a representação pura e simples da principal questão do filme, e a força “superiora” do realizador a insere entre uma cena e outra, completando o ciclo daqueles amigos malfadados. Em Sparrow, os batedores de carteira deixam um pouco de lado o “ofício” e se unem para auxiliar uma bela mulher a escapar de um homem que insiste em persegui-la – e levam ao limite máximo não apenas a fidelidade uns aos outros, mas o compromisso informal de proteger a mulher.
Os filmes de Johnnie To a partir de 2005 são quase todos passíveis de se enquadrar no gênero da ação. O diretor sempre trabalhou nessa seara, mas tomou rumo contínuo, talvez influenciado pela receptividade pós-Eleição. E To, assim como o conterrâneo John Woo (mas de maneira bem distinta), faz da ação – corpos, tiros, movimentação no espaço – pura arte. É significativa e fundamental sua preferência por locais fechados, o que lhe permite dominar com mais apuro cada gesto dos atores e do próprio lugar. Exilados, nesse sentido, é uma de suas realizações mais notáveis, pois não apenas desenvolve todas as grandes cenas em ambientes hermeticamente trancados, como utiliza o que estiver à disposição no próprio espaço – portas, tapetes, janelas, macas de enfermaria, cortinas, mesas, latas de RedBull. Mad Detective, por outro lado, tem um dos mais belos plongées da carreira de To, justamente o plano final, em que assistimos ao protagonista, num galpão, realizar um autêntico quebra-cabeças no troca-troca de armas – um quebra-cabeças só compreensível pelo personagem, mas uma maravilha de ser testemunhado pelo espectador.
Mesmo quando a ação se obriga a ser num local externo, como é no fim de Triangle, To dá um jeito: a sequência (dirigida por ele, dentro do trabalho dividido no qual se constitui o filme) é toda num milharal de altas folhagens, onde é impossível enxergar para além do próprio nariz – o que permite, por exemplo, alguém poder engatinhar e entregar uma arma a outra pessoa sem que o inimigo, posicionado a poucos metros de distância, consiga perceber a movimentação. Sparrow também tem o clímax em lugar aberto – uma travessia de rua com dezenas de pessoas caminhando –, e novamente To realiza um feito brilhante, ao “fechar” os personagens debaixo de guarda-chuvas e fazê-los se confrontarem dentro dos limites possíveis de se enxergar ou se movimentar devido ao uso da bugiganga. Até a água da chuva, aqui, ganha importância salutar. É desse uso do espaço como aliado da ação – ou, mais que isso, como participante ativo – que a forma dada por Johnnie To em seus filmes a um gênero tão combalido consegue extrapolar a mera categorização.
E essas cenas são todas de um realismo exemplar – um realismo que não quer ser realidade (vide o sangue digital que estoura dos corpos de Exilados), mas, sim, expor na imagem uma forma de ser real através de si mesma, fazendo o espectador acreditar na possibilidade de aqueles homens e mulheres existirem dentro da tela. A representação na tela serve ao filme muito mais do que a realidade serviria aos personagens – e eles, obviamente, são integrantes dessa representação. Com tal liberdade de atuação, Johnnie To faz a selvageria correr solta. Não há tempo para muita estratégia a quem se arrisca a ser cria do cinema de To. Ainda nessa urgência, a montagem é movida a cortes que dão atenção suficiente a cada movimento, a toda a compreensão do fato, ao respiro necessário para que não se atropele a própria beleza daqueles bailados, na maioria das vezes, à base de pólvora (mas também de sopapos, cacetadas, afanações e respingos d’água).
No único filme desta fase do diretor em que há elementos sobrenaturais (Mad Detective), o que conta não é a verossimilhança típica de um mundo dito “normal” (portanto, nossos amigos verossímeis, como diria Hitchcock, não serão atendidos por To). Vale é o uso da ficção no desenvolvimento de um universo moldado para aqueles sujeitos enquadrados pela câmera, a total imersão na movimentação e o extravasamento da lógica como meio de se atingir o sentido e a catarse da cena. Fazer isso com coesão, elegância, beleza, maravilhamento e completo prazer – eis o que torna Johnnie To um grande artista de imagens e sons.
*Publicado na edição 94 da revista "Contracampo"