Um princípio de exaltação tomou conta do debate sobre o documentário "Olhe pra Mim de Novo", exibido na competição do 39º Festival de Gramado na noite de quarta-feira. Os diretores Kiko Goifman e Cláudia Priscilla ficaram incomodados com o teor de algumas perguntas, que pareciam menos discutir o filme do que tirar satisfações com a dupla de realizadores e com Sillvyo Luccio, o transexual masculino que é centro do longa-metragem.
"O politicamente correto é muito chato! Vamos ter um pouco mais de humor com algumas coisas, gente", afirmou Kiko. "Eu sou um cara cheio de cicatrizes feitas por pessoas que sempre acharam o que deve ser certo ou errado", completou Sillvyo, em fala emocionada.
A questão partiu da abordagem generosa de Kiko e Cláudia em relação à figura de Sillvyo Luccio. Formado em letras e funcionário público no Ceará, ele nasceu "em corpo de mulher", como define, e assumiu o gênero masculino há alguns anos - com o uso de prótese peniana e a perspectiva de uma operação de readequação sexual.
Num "road movie" pelo sertão nordestino, Sillvyo vai apresentando sua personalidade à câmera, tanto em depoimentos solo quanto no contato com outras pessoas. Em linguajar popular, ele incorpora a figura piadista e bem-humorada do "macho escroto" - para incômodo de muita gente, que não gostou de algumas colocações do personagem.
"Eu não sou ator. Ali, sou eu mesmo, mostrando um pouco de mim", frisou Sillvyo Luccio, no debate. "Sou, acima de tudo, um nordestino com uma visão de mundo". Talvez tenha sido essa visão de mundo o motivo de tamanha comoção, a ponto de uma cineasta presente ao debate se dizer "desrespeitada" pelo filme, numa estranha e passional mistura de valores e conceitos, da qual "Olhe pra Mim de Novo" estará sob ameaça a cada nova sessão.
Com ânimo mais amenizado, Kiko falou sobre as escolhas dele e de Cláudia Priscilla para abordarem questões como transexualidade, preconceito, genética e maternidade - todas muito fortes no filme. "A Cláudia sempre se interessou por temáticas ligadas ao corpo e à sexualidade", disse.
A codiretora (vencedora do Festival de Paulínia em 2010 com "Leite e Ferro", sobre presidiárias que amamentam seus filhos na cadeia) contou ter feito profunda pesquisa em bancos genéticos do Nordeste e até se deparar com Sillvyio Luccio. "Ele seria um personagem da nossa viagem, mas acabou se tornando o centro", relembrou ela.
Para o próprio Sillvyo Luccio, "Olhe pra Mim de Novo" serviu de catarse e exposição de sua autoproclamada condição de desgarrado, exemplificada por ele nas cenas em que é filmado caminhado por estradas. "Eu sempre andei à margem, com os veículos vindo na minha contramão. Essas imagens (na estrada) são a fotografia do que é a minha vida: a angústia do isolamento de um homem transexual".
*Publicado em "O Tempo" no dia 12.8.2011
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