As poucas pessoas presentes no Palácio dos Festivais na noite de terça-feira passaram por uma experiência incrível no contato com o longa-metragem "As Hiper Mulheres", exibido no Festival de Cinema de Gramado. O filme de Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro registra o jamurikumalu, ritual de mulheres indígenas no Alto Xingu (MT). O intuito é tentar preservar cânticos orais que corriam o risco de desaparição.
Todas essas informações são extrafílmicas. Na tela, "As Hiper Mulheres" constrói realidade própria, reencenando o cotidiano de uma tribo que se depara com a iminente morte de uma de suas principais figuras femininas e precisa se organizar para que a memória dela não se perca. Ecos de filmes recentes como "Serras da Desordem" (2006) e "Terra Deu, Terra Come" (2010) se conjugam a lembranças de experiências fundamentais no contato com o outro, vistas em trabalhos de Robert Flaherty ("Nanook, o Esquimó"), F.W. Murnau ("Tabu") e Jean Rouch ("Eu, um Negro").
"Buscamos fazer um filme o menos etnográfico e hipercontextualizado possível", disse Carlos Fausto, antropólogo e codiretor do projeto. "Nosso interesse era falar sobre música, memória e transmissão de conhecimento através do afeto e das relações familiares".
O jamurikumalu fora ritualizado pela última vez na aldeia retratada em "As Hiper Mulheres" em 1982. Neste novo contato, iniciado em 2002 a partir do projeto Vídeo nas Aldeias e com orçamento de um edital do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a equipe de produção tomou contato íntimo com os moradores do lugar e os fizeram criar intimidade com a presença de câmeras e de pessoas não-indígenas. "No próprio real, a matéria ficcional estava presente", frisa Fausto. "Não escrevíamos diálogos, mas pensávamos e preparávamos as cenas, dando instruções aos personagens que estariam nelas para construir um fio dramático".
Nesse sentido, a definição de "ficção" e "documentário" se esvai ao se assistir a "As Hiper Mulheres" - assim como a preconceituosa conotação de "filme de índio", que inclusive circulou entre alguns jornalistas antes da sessão. Há, acima de qualquer pré-impressão, um trabalho elaborado e impactante de encenação, registro e criação de espaço.
Os corpos dos indígenas, a premente sexualidade que emana das figuras femininas da aldeia, o linguajar despojado, a completa disposição em dialogar com a proposta cinematográfica em questão e o maravilhamento do ritual são elementos a atentar num filme de valor especial. "As Hiper Mulheres" está selecionado também para a competição do Festival de Brasília, a ser realizado no fim de setembro.
*Publicado em "O Tempo" no dia 11.8.2011
*Publicado em "O Tempo" no dia 11.8.2011
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