segunda-feira, 15 de agosto de 2011

"Giallo", de Dario Argento

Profondo giallo
Filme mais recente de Dario Argento, Giallo (2009) reconfigura para o século XXI o estilo de suspense típico do cinema da Itália nos anos 70

No italiano, a palavra “giallo” significa “amarelo”. Livrinhos de bolso contendo histórias de crime e mistério eram apelidados de “giallos”, por conta das capinhas amarelas que os caracterizavam e facilitavam serem reconhecidos nas bancas italianas onde foram vendidos por muitos anos. E, a partir dos anos 70, “giallo” passou a definir um subgênero do filme policial popular italiano que se desenvolvia sob as “regras” das tramas narradas nos tais livrinhos: assassinos misteriosos, vítimas desesperadas, investigadores tentando desvendar o enigma, sexo, mortes múltiplas e bastante violência. Mario Bava foi um dos precursores dessa linhagem (1). Dario Argento fez o subgênero se firmar e se expandir para além das fronteiras do país.

É das lentes de Argento – com 69 anos e insistentemente ativo – que nasceu uma quarta acepção para “giallo”. Não poderia ser de forma menos sutil: o filme mais recente do diretor, lançado nos cinemas em 2009 (e apenas em DVD no Brasil(2)), tem justamente como título “Giallo” [por aqui, ainda recebeu o desnecessário adendo “Reféns do Medo”]. Pela escolha do nome do projeto e pelos instigantes cartazes apresentados durante a divulgação (um deles mostrava cinco enormes facas, sendo quatro em tom amarelo e uma, no meio das outras, de cor vermelha com gotas de sangue), a impressão era de que Argento estava voltando ao estilo que o consagrou – especialmente por O Pássaro das Plumas de Cristal (1971), Prelúdio para Matar (1975) e Tenebre (1982) – e o qual ele não visitava desde 2004, quando lançou o pouco compreendido O Jogador Misterioso.

Transcorridos alguns minutos de Giallo, percebe-se que o interesse de Argento não é exatamente revisitar o que fez em épocas passadas. Há diversos detalhes que negam o essencial: as mãos do assassino não têm as famosas luvas pretas; as vítimas não são mortas no local onde foram capturadas, sendo torturadas num esconderijo; a identidade do culpado é revelada com menos da metade da duração do longa. O próprio encaminhamento narrativo permite sentir o descarte do cineasta para com o tradicional “giallo”. Há, é certo, cenas e imagens que nos remetem àquele imaginário, como as armas perfurantes (facas e agulhas), os enquadramentos e travellings rigorosos e mesmo alguns instantes decalcados de outros filmes de Argento (a garota que sai atabalhoadamente na chuva, atrás de um táxi, lembra momento similar nos primeiros minutos de Suspiria, filme de 1977). Afinal, o que faz Argento em Giallo?

O suspense criado ao longo do filme é, ao mesmo tempo, a subversão da expectativa em torno do mito de Argento e uma sofisticada, e também grosseira, ironia do cineasta consigo mesmo e com o que ele tão bem fez em outros tempos. A grosseria, aqui, não tem conotação negativa. Um especialista em horror como Argento tem seus arroubos de grande esteta do mesmo jeito como é igualmente capaz de colocar em cena o vilão do filme se masturbando, de chupeta infantil na boca, enquanto assiste a fotos de suas vítimas com o rosto dilacerado.

A face e a beleza são as chaves para a compreensão e impacto de Giallo. Nos primeiros minutos de filme, um desfile de moda em Milão é contraposto a uma garota amordaçada e machucada num lugar fétido. Argento contrasta a noção sempre moderna do belo (moças bem vestidas e magras em cima de uma passarela) à feiura de um mundo sob o jugo constante da violência. Tanto no tema quanto na forma, Giallo será todo pautado pela noção do que seja bonito e feio. “Ele odeia coisas bonitas”, sussurra Enzo Avolfi, o detetive interpretado por Adrien Brody, referindo-se ao assassino serial que sequestra e mata belas estrangeiras de passagem pela Itália.

Não deixa de ser uma das várias ironias de Dario Argento. Durante muito tempo, ele foi apontado como um diretor misógino, devido à “preferência” em matar mulheres nos filmes, das formas mais variadas e cruéis. Em entrevistas, negou a acusação, afirmando que as mulheres (e sua beleza natural) são, na verdade, o combustível da criatividade. Em Giallo, Argento cria um matador que se move pela raiva ao belo: ele leva garotas ao covil e as “enfeia” antes de desovar os corpos. O cineasta, assim, assume uma carapuça que sempre refutou, dando ao espectador a figura assumidamente misógina de um criminoso perturbado.

Este matador é, por si só, essencial na concepção de Giallo. Chamado Flavio Volpe, o personagem sofre de uma doença hepática que dá um tom amarelado à sua pele, gerando o trauma de, desde criança, ser considerado feio e “amarelo” pelos colegas de escola. Ora, a referência é absolutamente explícita: num filme de nome Giallo, dirigido por um cineasta notabilizado pelo subgênero homônimo, o artífice da violência em cena é, ele mesmo, “giallo” [amarelo]. Trata-se de uma justificativa fantasiosamente científica para tornar o antagonista a encarnação física de uma forma de cinema. Argento consegue, sem criar “ruídos” estéticos ou narrativos, fazer metalinguagem com sutil eficácia. Por essa chave, subverte a própria trajetória sem, por isso, deixar de falar de si mesmo e dos filmes que realizou. Como acontece em relação aos melhores momentos da obra de Quentin Tarantino (vide o sublime Bastardos Inglórios), não é essencial conhecer a fundo os caminhos anteriores de Dario Argento para a fruição do filme. Sabê-los, porém, torna a experiência não apenas mais interessante, mas especialmente estimulante.

Um outro elemento de contraposição em Giallo é Avolfi, o investigador encarregado de achar o assassino. Na sua primeira aparição, ele está numa sala com paredes cobertas por fotografias de mulheres brutalmente assassinadas. Enquanto olha o espaço, Avolfi aperta uma bolinha, certamente para espantar a tensão. Eis a essência do personagem: um homem angustiado cercado pelo horror do sangue das vítimas do criminoso e pela impossibilidade de capturá-lo. O detetive é uma criação fundamentalmente de cinema: não tem vida para além do serviço e possui um passado traumatizante narrado em flashback via imagens de tons fotográficos perturbadoramente amarelos [de novo] e cujo estopim é uma faca de açougueiro guardada na gaveta do escritório.

A evidência do quanto Argento faz de Avolfi um ser moldado única e exclusivamente para estar no filme – e nunca a serviço de algum discurso exterior à imagem – é que o trauma da juventude e a existência da faca na gaveta não propriamente servem ao enredo de Giallo. Então, para que mostrá-los? Porque Argento acredita na vivacidade de Avolfi, na necessidade dele existir enquanto representação imagética possuidora de temperamento, visão, inteligência e um passado – mas não necessariamente um futuro, já que o filme vai acabar em algum momento e, junto disso, esvai-se esse personagem.

O procedimento de dar a Avolfi uma existência que serve menos à narração do que à organicidade de um universo puramente imagético e sonoro denota um dos elementos mais encantadores em todo o cinema de Dario Argento, e o qual Giallo resgata com brilhantismo: a crença total e irrestrita no poder da ficção. Por mais que tangencialmente reflita sobre a violência, a moda e os padrões de beleza, Argento não mergulha nesses temas com tanta voracidade como o faz na forma de colocá-los em cena. Ao diretor, interessa criar uma atmosfera de tensão a cada novo desdobramento do enredo, mesmo que tal enredo abuse dos tropeços e barrigas narrativas.

Basta pensar em como Giallo, mesmo subvertendo determinados elementos do suspense de serial killer e do próprio subgênero “giallo”, rende-se a alguns clichês vagabundos. Os mais gritantes são a tradicionalíssima perseguição (frustrada) do policial atrás do assassino, a pé; e uma montagem paralela que insinua um encontro entre os dois para, logo em seguida, revelar que ambos estão em espaços distintos e distantes [recurso muito bem trabalhado, por exemplo, no clímax de O Silêncio dos Inocentes]. Ainda assim, a construção das cenas, em todo o cuidado com o espaço como elemento constituinte do suspense, não parece um clichê puro e simples. Está mais para uma visita à tradição do filme policial como um gênero específico. Para se inserir e bagunçar essa tradição, é preciso deixar claro o fato de estar dentro dela. A diferença de Argento para outros cineastas que tentariam o mesmo tipo de “estratégia” é que o italiano não tem a menor vergonha de parecer ridículo ou retrógrado, pois tem consciência suficiente de até onde pode ir e conta com a cumplicidade do público em mergulhar junto dele num verdadeiro lamaçal de procedimentos levados à exaustão em mais de um século de história do cinema.

O desfecho de Giallo é também uma piscadela para a provocação. Flavio Volpe escondeu uma garota e pressiona a irmã da moça, Linda (Emmanuelle Seigner), a ajudá-lo a fugir do país. Avolfi segue atrás de Volpe e o encurrala. O criminoso despenca para a morte sem revelar o paradeiro da vítima. Tem-se uma primeira quebra: Avolfi e Linda discutem, ela chama o detetive de assassino e o compara ao vilão recém-falecido. “Você é igual a ele”, vocifera(3). Transtornado, ele sai andando de frente à câmera. Num longo plano frontal, a tela lentamente escurece, a trilha sonora vai num crescendo e, de repente, para, junto com o negro que toma a imagem. Poderia ser o fim (e vamos admitir: seria um final perfeito). Só que Argento insere um epílogo, no qual revela o destino da moça.

A imagem definitiva do filme, congelada durante os créditos, lembra alguns dos finais mais impactantes do cineasta, como os de Prelúdio para Matar e Tenebre. A essência é a mesma: o mal foi desfeito e a esperança renasceu, mas a dor e a violência (sempre representadas pela presença do sangue, de um vermelho profundo(4)) são dados onipresentes, dos quais ninguém consegue escapar, mesmo numa conclusão aparentemente bem resolvida.

Talvez a pouca inventividade visual mostrada aqui por Argento – se o parâmetro de comparação for a obra pregressa do italiano, cheia de instantes inesquecíveis, muitos deles geniais – possa ser prejudicial à boa fruição de Giallo. A péssima recepção ao anterior O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007) pode ter ajudado num possível desânimo com o que viria a seguir. Não raras vezes, desde quando começou a ser visto, Giallo tem sido taxado de “burocrático”, palavra meio maldita no universo das artes, por conotar falta de esmero e paixão durante o ato de criação e realização do trabalho em questão.

Seria injusto, porém, não se deter mais calmamente no que Argento nos oferece. Giallo extrai vida e prazer das quebras de expectativas, do excesso de pretensões e dos aparentes empurrões que vai dando no espectador. É um filme, à sua maneira, torto e manco, e tira das imperfeições a força de um cinema autêntico e preocupado com a potencialidade de uma imagem e de um corte de montagem. Numa contemporaneidade cinematográfica na qual o público parece vibrar mais com supostas espertezas de roteiro (Charlie Kaufman, Zach Braff, Diablo Cody, Guillermo Arriaga, Paul Haggis, Christophe Honoré) do que com o brilhantismo possível de ser atingido na mais límpida e aparente simplicidade (James Gray e Amantes, Clint Eastwood e Gran Torino, Alain Resnais e Medos Privados em Lugares Públicos, Paul Verhoeven e A Espiã, Olivier Assayas e Horas de Verão), contarmos com um cineasta como Dario Argento, ainda capaz de nos provocar dessa forma, de nos fazer vibrar por sua paixão em empunhar a câmera e de transmitir, mesmo que por vezes aos solavancos, a empolgação de narrar visualmente – tudo isso é um grande privilégio.

NOTAS

  1. Mario Bava (1914-1980) foi autor de uma filmografia fundamental na Itália e realizou alguns excepcionais exemplares do “giallo”, entre eles Seis Mulheres para o Assassino (1964) e Banho de Sangue (1971).

  2. A Califórnia Filmes, distribuidora de Giallo no Brasil, aparentemente no intuito de evitar pirataria, a empresa relegou o filme apenas às locadoras do país. Tiveram o mesmo destino os dois projetos anteriores do cineasta exibidos por aqui. O Jogador Misterioso (2004) saiu só em DVD pela Fox, e O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007) ganhou exclusiva edição digital da Swen.

  3. A frase de Linda tem um segundo sentido de provocação. Em Giallo, o ator Adrien Brody interpreta não apenas o investigador Enzo, mas também o próprio “assassino amarelo”, usando pesada maquiagem e sob o pseudônimo Byron Deirdra (anagrama de seu nome verdadeiro). Brody é ainda produtor executivo do filme.

  4. Prelúdio para Matar, considerado por muitos como a obra-prima de Argento (ou, no mínimo, o mais perfeito de todos os “giallos” italianos) é originalmente intitulado Profondo Rosso – em português, “vermelho profundo”. O sangue de fortíssima coloração, quase escarlate, é característico do subgênero.

    *Publicado na revista "Teorema" em dezembro de 2009

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