quarta-feira, 24 de agosto de 2011

30 depois de Glauber - parte 3: Ruy Gardnier

Entrevista com Ruy Gardnier, crítico de cinema e pesquisador do Tempo Glauber.

O que ficou ou permanece da passagem de Glauber pela cultura brasileira?
Do ponto de vista da cultura dominante, não permanece basicamente nada. Ideologicamente vivemos uma cultura do consenso, e Glauber Rocha vivia pela controvérsia e confrontação. Vivemos um período racionalista (apesar dos obscurantismos religiosos), e Glauber vivia em estado profético, delirante. No mundo do cinema, também não poderia estar mais longe. A estratégia estatal corrente de dar dinheiro majoritariamente para projetos grandes, com tramas vulgares e linguagem subtelevisiva, certamente lhe daria nojo. Ele acreditava na força do cinema e da arte em geral para friccionar a sensibilidade do espectador através de experiências audiovisuais que ultrapassam as percepções cotidianas.

Qual foi a importância de Glauber para o momento histórico no qual ele atuou?
Ele foi fundamental como cineasta, como ideólogo de cinema, de cultura brasileira e de política. Suas ostensivas ações na imprensa, como articulista ou entrevistado, sempre com declarações bombásticas, o situavam como um pensador original, que não se aliava nem às posições reinantes da esquerda comunista ou ex-comunista nem tampouco às posições da direita. Foi sua ação como ideólogo do Cinema Novo que impulsionou os intelectuais brasileiros a discutir nosso cinema a sério. Como cineasta, Glauber Rocha segue sendo o mais importante que o Brasil já teve. Ele foi o primeiro intelectual brasileiro a apostar na abertura (em vocabulário da época, "distensão") política vinda a partir da presidência de Ernesto Geisel e criou, com suas inserções no programa "Abertura", um verdadeiro fórum para discutir catarticamente sobre cultura e política no Brasil, algo sem par até hoje.

É possível "separar" a obra de Glauber em fases?
É possível perceber uma incrível consistência na trajetória de Glauber, que muda a partir de certas coordenadas, mas sempre baseadas num mesmo tipo de premissa ou clareza de pensamento. Igualmente fascinado por Jorge Amado e pelo formalismo cinematográfico, Glauber desde cedo teve algo de catártico, de operístico, de grandioso em seu estilo e, ao mesmo tempo, acreditava nas experiências de linguagem de modo a friccionar a percepção de seus espectadores. Essa primeira parte era o que consistia o "épico", e a segunda o "didático" do modelo "épico-didático" que ele tanto admirava em Brecht. Mas claramente existe uma intensificação, ou um radicalismo, a partir de 1969.

Seria possível imaginarmos Glauber Rocha no cinema brasileiro de hoje?
Não. Mesmo os grandes cineastas contemporâneos que poderíamos longinquamente associar são bastante civilizados. Glauber tinha um componente de selvageria, de violência da linguagem, que inexiste no cinema de hoje. Mas, também, os tempos são outros.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011

Nenhum comentário: