quinta-feira, 30 de agosto de 2012

"Aterrorizada" (The Ward), de John Carpenter

A frontalidade da encenação
De volta aos cinemas após dez anos, o mestre John Carpenter faz Aterrorizada, terror psicológico expressivo, mas aquém de seu talento


John Carpenter é o mestre da frontalidade no cinema: a sua obra é uma longa,
incontestável, indispensável e paciente insistência num mundo que já não se
quer reconhecer nela.

A afirmativa do crítico francês Julien Husson se refere à característica do diretor norte-americano de se colocar sempre firmemente diante daquilo que ele está filmando. Não num sentido puramente físico (como estar parado olhando para alguma coisa de frente). A noção de frontalidade, aqui, não se refere a um enfrentamento propriamente dito. Como o próprio Husson também escreve, “a frontalidade é a arte de pôr em relação e não tem nada a ver com um antagonismo ‘simplista’ nem com um dualismo ‘idealista’”.

Ora, “pôr em relação”, em se tratando de cinema, pode ser próximo de “pôr em cena”, termo possível de ser vinculado ao que se chama mise en scène. Portanto, o que está em jogo no cinema de Carpenter é como a encenação dará conta de um mundo regido por regras próprias e liberto das amarras de uma noção meramente realista do que está sendo apresentado na tela. “Serve-se da evidência, da potência e da imprevisibilidade da ficção”, completa Husson. Carpenter parte da ficção para extravasá-la e chegar ao real – ou, mais propriamente, a uma moral verdadeira daquilo que ele narra.

O mais recente filme do diretor, Aterrorizada (The ward, 2011), segue estes preceitos. A situação dada é típica dos melhores momentos de John Carpenter: sem memória e sem saber o motivo, a jovem Kristen (a atriz Amber Heard) é trancada num hospital psiquiátrico; lá dentro, relaciona-se com outras detentas e descobre que uma estranha força sobrenatural está eliminando cada uma das pacientes. A frontalidade de Carpenter já começa aqui. Em vez de um conflito inicial, o espectador se depara com dois – a falta de lembranças de Kristen e o mistério em torno das mortes no hospital. A chave de apreensão do filme estará sempre no equilíbrio entre essas instâncias narrativas; a cada novo dado do enredo ou algum susto repentino, a tensão terá vários caminhos pelos quais percorrer. A evidência de que há diversas possibilidades por onde o filme pode provocar medo ou suspense é frontal ao próprio mecanismo que realmente está movendo as peças em jogo.

A saber (se não viu o filme nem quer conhecer detalhes, pule este parágrafo): Carpenter encontra maneiras engenhosas de tentar subverter – ou pelo menos renovar – alguns clichês típicos de roteiros sobre  personagens com múltiplas personalidades. Emulando similares dos últimos anos, alguns bastante significativos, como Síndrome mortal (Dario Argento, 1996), Alta tensão (Alexandre Aja, 2003), Mad detective (Johnnie To, 2007) e Ilha do medo (Martin Scorsese, 2010), Aterrorizada faz com que sua protagonista não simplesmente lute ou aceite as outras faces de si mesma: ela própria é uma das várias faces de alguém. Em vez de se resignar com o que é, Kristen deverá sucumbir ao que não é. Diante disso, recisará deixar de existir, dando lugar a Alice, a pessoa que de fato a projetou para fora de uma mente perturbada.

Como proceder assim através da mise en scène? Ou como ser frontal a uma premissa cujo entendimento pleno depende de informações deliberadamente suprimidas e somente reveladas no momento considerado mais “apropriado” por quem escreveu a história? Se pensarmos na obra de John Carpenter, será fácil perceber que ele não é um cineasta propenso a enigmas ou omissões que sirvam de muleta para deixar o público esperando algo ser revelado.

Mesmo filmes cujos pontos de partida são situações sem “explicação” imediata (A bruma assassina, O enigma de outro mundo, O príncipe das trevas, À beira da loucura, Eles vivem ou A cidade dos amaldiçoados), a já citada frontalidade de Carpenter provoca rachaduras dentro do inexplicável e faz com que a atmosfera dos ambientes e a moralidade dos personagens conduzam a ação. Seguindo os melhores ensinamentos apreendidos com o mestre Howard Hawks, Carpenter desfia os conflitos de cada filme simultaneamente aos seus desdobramentos – daí o impacto provocado não só pelo crescendo dos filmes em si, mas pelos desfechos quase sempre acachapantes (e, várias vezes, em aberto). O choque vem porque tivemos acesso constante aos rumos que nos levaram (a nós e aos personagens) até ali. Não houve  segredos” ou “intrigas secretas”. Houve a coragem (e a moral) de nos abrir o leque de possibilidades e nos permitir segui-las.

A boa trapaça de Aterrorizada é que estamos no mesmo tipo de mecanismo – porém, desta vez, invertido. O filme se desenvolve dentro de si mesmo, a partir do momento em que Kristen – esta imagem mental cujo propósito é negar a evidência de que Alice seja uma garota com transtornos psíquicos – se manifesta. A primeira aparição da moça é correndo floresta adentro, rumo a um casarão que será incendiado sem motivo aparente. Quem vemos é Kristen, porque ela tomou conta de Alice. Dali em diante, o filme seguirá sob o ponto de vista dela, até o momento em que a verdade do que assistimos revela a farsa, algo que era também uma farsa à própria Kristen.

Em À beira da loucura (1994), o personagem vivido por Sam Neill também sofria de distúrbios mentais. Carpenter provocava um curto-circuito na realidade a partir das aflições do protagonista, obrigando-o a dar voltas e voltas, quase sempre fazendo-o retornar ao ponto de partida, num looping constante e angustiante cujo ápice é Neill assistindo a si próprio numa tela de cinema. A diferença para Aterrorizada, o único outro filme de Carpenter a se ambientar “dentro” da mente de alguém, é que, neste, há a tentativa de ambientar a trama numa chave mais distante do delírio. O fantástico está presente na imagem fantasmagórica de uma morta-viva que persegue as garotas, mas essa criatura do além surge como um dado concreto, com o qual o espectador se relaciona naturalmente, por saber de antemão estar presenciando uma história de terror.

Narrativamente, o filme é linear e clássico, e o que se espera dele é que logo surja alguma resolução para dar conta daquela aparição e do porquê Kristen estar presa. À beira da loucura era o contrário: não tínhamos para onde olhar nem o que focar, ou mesmo quais respostas procurar. Éramos arremessados na confusão interna de um mundo inteiro (e não apenas de um único espaço, ou numa única situação), mundo este sendo regido por alguma mente insana. Por se ater a um espaço específico cercado por alguma ameaça externa, Aterrorizada se vincula ao olhar hawksiano de Carpenter para um grupo de pessoas confinadas. O título original do filme, The ward, pode ser traduzido como “a ala”, em referência ao local onde Kristen está internada.

É neste lugar que ela e as outras garotas vão ser obrigadas a conviver e enfrentar, juntas e à revelia, os perigos que vêm não se sabe de onde. Ecos já dos primeiros filmes de Carpenter (Dark Star, Assalto à 13ª Delegacia e Halloween) podem ser sentidos aqui, vindos de ainda mais longe, lá do seu fascínio por Onde começa o inferno (1959), El Dorado (1966) e Rio Lobo (1970), nos quais Howard Hawks versa sobre sujeitos encurralados. Ao longo de duas dezenas de títulos, Carpenter quase sempre voltou a esse cerne, fazendo com que personagens antagônicos precisassem deixar de lado as controvérsias (mesmo que temporariamente) e se unissem contra um mal em comum.

UM RETORNO
Vão-se dez anos desde a incursão anterior de John Carpenter nos cinemas. Fantasmas de Marte foi lançado em 2001 e não teve a melhor das repercussões. Jean-Baptiste Thoret, num emocionado lamento pela frustração com o filme de um de seus cineastas de cabeceira, chegou a escrever: “A América mudou, ele [Carpenter] sabe-o melhor do que ninguém, e aquele que ontem era corajoso é hoje demagógico”. Nas bilheterias, o filme não se saiu muito melhor, sendo olhado com desconfiança por quase todo lado como mais um trabalho a explorar o filão de produções similares à época (1), sem o brilhantismo e a provocação inclusive dos longas imediatamente anteriores de Carpenter, Fuga de Los Angeles (1996) e Vampiros (1998).

Um pouco por isso e também por um assumido cansaço e desânimo (2), John Carpenter decidiu dar um  tempo do cinema. Entre 2001 e 2011, porém, registram-se incursões do diretor em projetos de televisão. Convidado por Mick Garris, o cineasta fez dois episódios para a série Masters of Horror, veiculado no canal Showtime. Pesadelo mortal (Cigarette Burns, 2005) e Pro-life (2006) foram as únicas oportunidades de se assistir a trabalhos inéditos de Carpenter na última década. Únicas e também bastante expressivas, é bom frisar. Pesadelo mortal retomou diversos elementos de À beira da loucura, inclusive o clima detetivesco mesclado ao sobrenatural na busca por uma obra de arte (no caso, um filme desaparecido) que teria provocado a morte de várias pessoas; por sua vez, Pro-life era uma espécie de versão de Onde começa o inferno ambientada numa clínica de abortos e tendo o capeta em pessoa como
antagonista.

Reanimado pela experiência televisiva, Carpenter decidiu retomar a carreira no cinema e disse ter se empolgado com a história de Michael e Shawn Rasmussen que originaria Aterrorizada. Vindo de um realizador de certeiros e provocativos olhares sobre a América e seus padrões e comportamentos (“um cineasta que segue modelos antigos, mas foi sempre tematicamente contemporâneo e, palavras suas, ‘profundamente político’”, como escreveu o crítico português Luís Miguel Oliveira), soa irônico que Carpenter tenha se seduzido por um argumento aparentemente tão banal, numa época em que o banal, para um artista como ele, não é (ou não deveria ser) suficiente, em vista de seu próprio histórico e do olhar crítico em relação ao espaço onde vive.

Se pensarmos em um ou dois nomes fortes do cinema de horror norte-americano cujas ascensões se deram a partir dos anos 1970, junto com John Carpenter – e os quais, em relação a ele, tendem a muitas vezes serem inferiorizados –, Aterrorizada pode parecer apenas um exemplar bem-executado do gênero. George A. Romero, por exemplo, entre 2005 e 2009, renovou-se na trinca Terra dos mortos, Diário dos mortos e Ilha dos mortos, captando todo um imaginário de vigilância, racismo e amoralidade pós-11 de Setembro. Wes Craven, depois de uma fase terrível na qual o título de seu último filme (Amaldiçoados) parecera se referir ao próprio cineasta, revigorou-se razoavelmente bem. Primeiro com o subestimado A sétima alma (2010), retomando muito do clima de horror juvenil que ele ajudou a inventar em A hora do pesadelo (1984), ainda seu grande clássico. Depois, veio a excelência surpreendente de Pânico 4 (2011), no qual  Craven demonstra estar completamente atento e vinculado não só às novas tecnologias (caminho mais fácil para se pensar o filme), mas a um certo mal estar em torno das ambições de ser importante, de aparecer na mídia, de ser alguém – e Craven leva isso para a encenação do filme de maneira quase literal, sem nunca omitir o fato de estar trabalhando na quarta parte de uma franquia de sucesso que parecia ter sido sepultada anos atrás.

Diante dos trabalhos mais recentes de Romero e Craven, Aterrorizada, por mais que carregue grande força expressiva, parece um filme menor. Se tivermos de parâmetro a filmografia de John Carpenter em pessoa, isso fica ainda mais evidenciado. O diretor aparenta, aqui, ser muito mais um artesão eficiente do que um mestre, menos um questionador das estruturas (do cinema e do mundo) do que um adepto delas. Carpenter está ali, presente em cada fotograma de Aterrorizada, e por isso mesmo o filme é bastante válido numa época em que o ideário do cinema de horror se pauta em gratuidades, franquias forçadamente intermináveis e refilmagens estapafúrdias. À sua maneira, Carpenter é o mesmo de sempre – o artista que vai contra o sistema e contra os padrões. Mas o filme pode soar também apenas como o tropeço ingênuo de quem sabe o que pensa e o quer dizer, mas se desviou das próprias crenças porque talvez se cansou da falta de resultado delas. O cinema deve celebrar a volta de John Carpenter tanto quanto deve torcer para que John Carpenter realmente volte.

POST-SCRIPTUM
Se John Carpenter esteve afastado das telas por dez anos, ao menos no Brasil isso vai continuar igual. A distribuidora Imagem Filmes decidiu lançar Aterrorizada apenas em DVD e Blu-ray, passando ao largo dos cinemas. É o mesmo destino de filmes recentes de outros nomes importantes do terror, como Dario Argento (Sleepless, O Jogador Misterioso e Giallo), George A. Romero (Diário dos mortos e Ilha dos mortos) e Joe Dante (O buraco). Wes Craven, por enquanto, tem conseguido ficar fora dessa indesejável relação.

NOTAS
(1) Um ano antes, outro cineasta de prestígio, Brian De Palma, lançara Missão: Marte, filme também mal recebido por crítica e público.
(2) Em entrevista ao site Collider, John Carpenter afirmou: “Em 2001, eu estava completamente cansado de dirigir. Precisava parar, dar um tempo e descansar disso tudo. Tinha prometido a mim mesmo que, quando parasse de amar o cinema e o trabalho, eu não o faria mais. Foi o que aconteceu”.

*Texto originalmente publicado na edição 18 da revista Teorema, em 2011

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Crítica: Billi Pig, de José Eduardo Belmonte

A piada fácil surge logo na abertura de Billi Pig. A bela Grazi Massafera, ex-Big Brother Brasil, segura uma réplica da estatueta do Oscar no meio de um ritual. A personagem se chama Marivalda e pede a alguma entidade que lhe permita ser uma grande atriz. O humor da cena é tão óbvio quanto autossatírico: de imediato, o diretor José Eduardo Belmonte se coloca lado a lado com sua protagonista. Ambos têm desafios a partir dali. Ela quer ser atriz; ele quer fazer uma comédia popular, algo inédito numa trajetória que somava antes quatro longas-metragens, todos dramas de carga existencial (discreta exceção feita a Subterrâneos, o primeiro e que já guardava viés irônico e mordaz). Com o ritual de Marivalda, perpetrado em delírio por Milton Gonçalves, ícone do audiovisual brasileiro, Belmonte se permite mergulhar em quaisquer caminhos que lhe forem necessários. Mal ou bem, Billi Pig se sustentará todo a partir desse prólogo – que, apesar de fantasioso, não se difere em nada no tom geral e mágico empregado ao longo do filme. Sonho e realidade serão sempre a mesma coisa em Billi Pig, o que dá a Belmonte liberdade total para seus destrambelhos.

O filme é uma rara incursão do cinema brasileiro na comédia abertamente fantástica – aquela que não busca explicações metafísicas ou científicas para o humor a ser empregado. Não há conjunção de planetas (Se Eu Fosse Você), traumas amorosos (A Mulher Invisível) nem máquinas do tempo (O Homem do Futuro). A fantasia de Billi Pig é intrínseca a seu universo. Um porco cor-de-rosa fala com Marivalda; se por alguns instantes suspeitamos disso ser uma maluquice da cabeça dela, logo veremos que as coisas não são assim tão claras. Quando o padre vivido por Milton Gonçalves aparece com uma ave azul, já estamos no ponto de crer que o bicho é mesmo azul; minutos depois, a chuva retira a tinta que falseava o animal, revelando o truque que, dada a natureza do filme, não parecia ser truque.

É nesse equilíbrio entre real e fantástico que Billi Pig se desenvolve, acrescido das tentativas constantes de fazer todo tipo de humor: pastelão, oral, comportamental, corporal, mental, referencial. Não faltam possibilidades de piadas no filme – algumas funcionam muito bem, outras carecem de timing ou de cuidado na construção cênica e espacial para que o “efeito-riso” não seja apenas forçado, mas autêntico. O que encanta em Billi Pig é o jogo proposto por Belmonte – jogo este que talvez nem mesmo o cineasta tivesse consciência.

Cheio de arestas e pontas soltas, o filme por vezes transmite a sensação de que está completamente perdido, com personagens que surgem e desaparecem sem motivações aparentes (Preta Gil e Milhem Cortaz na funerária), diálogos fora do enredo central (o padre e a amante), desvios narrativos (a infância do padre em flashback). Por outro lado, Belmonte lança na tela o desafio de o espectador encarar a própria necessidade intrínseca de querer as pontas devidamente fechadas. A irregularidade de Billi Pig funciona também como uma proposta de cinema, naturalmente arriscada e também perigosa, pois passível de leituras apressadas e intolerantes. Como “convencer” qualquer público (leigo ou crítico) de engolir um filme aparentemente incompleto, que inclusive pode dar a impressão de ser também um filme vítima de inapetência? A armadilha de Billi Pig, portanto, está justamente na sua suposta ruindade.

Mas, como defendia Jairo Ferreira, é de filmes imperfeitos que também se constrói uma cinematografia significativa. Billi Pig é a resposta imperfeita e repleta de vida a um caminho excessivamente “limpo” que o cinema brasileiro comercial vem construindo. Há poucos paralelos possíveis do filme de Belmonte com qualquer realização recente no país, especialmente no gênero da comédia. Num sentido geral, talvez apenas Falsa Loura poderia ser colocado em chave similar, especialmente pelo olhar profundamente bem-cuidado e honesto que tanto Belmonte quanto Carlos Reichenbach imprimem a personagens da periferia, quanto na sincera crença dos dois diretores de que a linguagem do filme pode acompanhar o compasso dos pensamentos de seus protagonistas – e a cena musical de Grazi no bar em Billi Pig não teria equivalência ao videokê de Rosanne Mulholland e Maurício Mattar em Falsa Loura? O desfecho “feliz” não guardaria muito do elogio da malandragem presente em filmes como Ladrões de Cinema (1977), de Fernando Coni Campos? Contemporaneamente, assim como para Os Normais (José Alvarenga) existe a contraparte Todo Mundo Tem Problemas Sexuais (Domingos de Oliveira), já se pode dizer que para coisas como Família Vende Tudo (Alain Fresnot) há Belmonte e Marivalda com seu porquinho serelepe. E assim a resistência vai surgindo, de onde pouco se quer olhar com atenção.

Essa característica de estar contra um sistema estabelecido aproxima Billi Pig dos filmes anteriores de José Eduardo Belmonte. De maneira independente e em pouco tempo, ele realizou Subterrâneos (2003), A Concepção (2005), Meu Mundo em Perigo (2007) e Se Nada Mais Der Certo (2008). Ao estrear na indústria em Billi Pig, com orçamento mais elevado e equipe melhor estabelecida (Vânia Catani o produziu), Belmonte não se permitiu ser pasteurizado. Há tanto de rendição quanto de suicídio em Billi Pig. O filme não foi bem de bilheteria nem recebeu críticas entusiasmadas – muito pelo contrário: na grande mídia, Belmonte tem sido tratado como uma espécie de traidor, alguém que teria aberto mão de um suposto viés autenticamente artístico para faturar com uma comédia sem graça em cima de nomes como Grazi Massafera, Selton Mello, Otávio Müller e a logomarca da Globo Filmes.

Seria ingenuidade pensar que Billi Pig tenha sido pensado como outro dos projetos plenamente autorais de Belmonte. Seria, porém, igualmente ingênuo acreditar que um filme de tantos estranhamentos e de tamanhas recusas à deglutição fácil estivesse apenas interessado em fazer dinheiro. Há muito de Belmonte espalhado no filme inteiro. Um Belmonte em outra chave, mas não em outro planeta: ainda é aquele cineasta que deixa os atores improvisarem, que permite ao filme respirar por si mesmo, que mantém um olhar para o mundo como este sendo um lugar de provações e recomeços. Temos aqui um cineasta que coloca uma figura como Grazi Massafera para encabeçar o elenco e jamais faz da atriz uma “bandeira” de excitação viril ou um corpo gratuitamente lançado em cena para deleite de olhares voyeurs. Grazi está no filme justamente porque ela é Grazi Massafera, disso não há dúvidas. O artifício exemplar é que o filme está a serviço de sua presença, seu humor e seu corpo – e não o inverso (como, novamente, Carlos Reichenbach sabe fazer como poucos ao escolher suas atrizes). Não seria exagero dizer que Billi Pig existe de e para Marivalda, a personagem de Grazi. A vinculação de Belmonte a personagem tão adorável faz grande diferença para os significados possíveis de serem enxergados no filme.

Os tropeços de Billi Pig não o tornam um filme pior, assim como momentos mais inspirados não o fazem necessariamente melhor. Tornam-no, de fato, um desafio instigante e fascinante. Que troço é esse? E por que o cinema popular brasileiro não nos oferece troços tão intrigantes com mais frequência? Achar graça do filme ou achar graça do atrapalho de Belmonte em não conseguir sugar humor de determinadas situações podem ser experiências muito mais enriquecedoras e estimulantes do que se espera e se queira à primeira vista. Basta olhar sem o filtro da limpeza exacerbada e da busca por perfeição e se permitir ser tão inconsequente assistindo ao filme quanto José Eduardo Belmonte parece ter sido ao fazê-lo.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Crítica: O Cavaleiro das Trevas Ressurge


Se algo de muito bom vai ficar da trilogia feita por Christopher Nolan com o personagem Batman, é a forma como os três filmes narraram histórias a partir do Homem-Morcego, e não necessariamente sobre ele. No primeiro filme, "Batman Begins", isso só ganhava força na segunda metade, mas em "O Cavaleiro das Trevas" e "O Cavaleiro das Trevas Ressurge", foi um diferencial bastante forte.

No desfecho da trilogia, Nolan se dá ao luxo de praticamente tirar o ator Christian Bale de cena e deixar que coadjuvantes como o vilão Bane, os policiais Gordon e Blake e a ladra Selina ocupem todo o espaço da ação, e isso funciona muito bem. A tensão está presente principalmente na metade inicial, especialmente no equilíbrio entre as angústias de um combalido Bruce Wayne como ex-combatente do crime em Gotham e o planejamento ainda misterioso de Bane sobre o que ele pretende fazer na cidade. O suspense criado dessas tensões ganha força com a entrada de personagens secundários realmente interessantes (outra boa marca da trilogia).

A partir do momento em que Bane revela o plano, "O Cavaleiro das Trevas Ressurge" entra numa espiral de situações cozinhadas que muito pouco enriquecem a tensão tão bem desenvolvida antes. Entre discursos revelados do vilão, explicações excessivas sobre o que está acontecendo em cena e aqueles 20 minutos finais em que as resoluções se atropelam numa velocidade pouco condizente com o ritmo do filme até então, o longa parece não chegar a lugar algum e "conclui" a saga de maneira bastante questionável.

Pesa ainda que Nolan segue como mau diretor de cenas de ação física. O primeiro combate entre Batman e Bane, com toda a violência inerente a ele (e tão aguarda especialmente por fãs dos quadrinhos quanto construída pelo ritmo do filme), cai na velha armadilha de o espectador simplesmente não conseguir enxergar direito o que acontece, dado o excesso de picotes da imagem.

Nolan teve momentos mais inspirados no filme anterior, muito ajudado pelo magnetismo do Coringa de Heath Ledger (que parecia quase obrigar a câmera a ficar parada nele). Neste terceiro, mesmo entre cenas mais fortes, o tom "épico" e conclusivo está mais no marketing que no filme.

Publicado em "O Tempo" no dia 26.7.2012

Novo "Batman" nos cinemas


A ansiedade dos fãs, a publicidade grandiloquente ("o desfecho épico da trilogia") e o sucesso do episódio anterior, feito em 2008, tornaram a estreia de "Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge" algo próximo de um ritual litúrgico. Serão quase mil salas exibindo o longa. Todo mundo quer ver o novo filme com o Homem-Morcego dirigido por Christopher Nolan. O terrível massacre ocorrido no Colorado (EUA) na semana passada até deu uma tremida na expectativa, mas nada que não vá dar jeito de empurrar para lá.

Épico, de fato, o filme faz de tudo para ser. Não apenas pela música quase onipresente ao longo das 2h40 de duração, mas pelas situações apresentadas no enredo, que procuram amarrar elementos dos dois filmes anteriores feitos por Nolan e criar um desfecho à trilogia iniciada em 2005 por "Batman Begins".

Algo, porém, perdeu-se pelo caminho e fez da terceira parte da franquia um amontoado de acontecimentos pretensamente tensos e cujo núcleo se torna o desgastado e indefectível desafio de impedir que um bandido alucinado destrua toda a cidade com um artefato nuclear. Desafio este, aliás, que já estava presente em "Batman Begins" (com outro tipo de artefato) e serve de gancho para essa conclusão na figura de Bane, terrorista brutal e enigmático que chega a Gotham City disposto a tornar a cidade uma terra sem leis para, depois, explodi-la.

Christopher Nolan divulgou esta semana uma carta na qual se despede da franquia do Batman sendo bastante claro sobre nunca ter previsto fazer três filmes interligados. "As pessoas perguntam se sempre planejamos uma trilogia. É como ser perguntado se planejamos crescer, casar e ter filhos. A resposta é complicada", diz Nolan.

A boa recepção crítica e financeira do primeiro filme praticamente obrigou o diretor a realizar um segundo. Quando "O Cavaleiro das Trevas" ultrapassou a marca de US$ 1 bilhão no mundo, não havia a menor dúvida de que um terceiro viria naturalmente. Isso de forma alguma significa, como muita gente alardeou, que Nolan tivesse tudo preparado na cabeça, com a resolução da trama moldada desde sempre. A morte de Heath Ledger em 2008, meses antes da estreia de "O Cavaleiro das Trevas" - filme no qual o ator interpretava uma versão memorável e perturbadora do vilão Coringa - foi um baque que ninguém esperava e obrigou os produtores da Warner a mudarem eventuais planos de tê-lo numa terceira parte.

Afinal, não deve ser coincidência que o Coringa não morra no segundo filme; menos acaso ainda deve ser o fato de que o personagem nem sequer é citado na terceiro parte, por mais referências que se tenha a diversos elementos dos episódios anteriores. A partida precoce de Ledger deve ter sido um choque tão grande que os roteiristas nem souberam (ou não quiseram) tratar do Coringa nesse desfecho.

*Publicado em "O Tempo" no dia 26.7.2012