terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mostra 2011: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Por diversas vezes ao longo do filme, e desde o primeiríssimo plano, alguns personagens de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios olham frontalmente para a câmera. O porquê disso é o que mais intriga a fruição deste novo trabalho de Beto Brant e Renato Ciasca. É como se, nesses olhares diretos, fosse buscado algum tipo de quebra da ilusão, de provocação da realidade, de sacudida para um fora-do-filme que parece gritar dentro de cada plano em que isso acontece. Faz sentido, portanto, que este seja o trabalho de maior “invasão” do real na carreira da dupla. À maneira de Roberto Rossellini, situações testemunhadas no local da filmagem (Santarém, em Belém do Pará) são incorporadas à narrativa, buscando um tipo de organicidade que se equilibra entre a história que se narra e o escopo e ambiente onde ela se situa.

Em Os Matadores (1997), primeiro longa de Beto Brant, existia um tom de realismo muito forte em toda a articulação daquela trama de traição na fronteira – realismo, este, que vinha menos de levar o “real” à tela e muito mais da maneira naturalista como se buscava representar o enredo. Cão sem Dono, feito dez anos depois, assumia a matiz naturalista em sua estética e na interpretação dos atores, em longos planos de diálogo ou de silêncios que tentavam reproduzir ao máximo uma certa “sensação” de realidade. Curioso perceber que este viera logo depois de Crime Delicado, o trabalho mais delirante de Brant.

Nenhum destes anteriores, porém, tinha não apenas a tal incorporação do ambiente, mas também o discurso sociológico de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Talvez sensibilizados pelo universo onde filmaram (marcado pelo desmatamento desenfreado), talvez já inspirados por elementos do romance de Marçal Aquino no qual o filme se baseia, os diretores se deixam seduzir pelo que se vê fora do roteiro e somam esses elementos ao fio condutor. São desde moradores locais ouvindo o ator Zécarlos Machado numa homilia a crianças acompanhando um espetáculo de circo, incluindo aí o discurso de um indígena em prol da salvação das madeiras amazônicas. Essa estrutura dúbia atinge o ápice num desvio narrativo e visual que o filme faz, em planos panorâmicos ora sobre o rio Amazonas, ora sobre moradores do lugar, tudo trabalhado na pós-produção de maneira a reforçar gritantemente as cores de cada elemento na tela, provocando um efeito de imediato estranhamento por aquilo não estar em absolutamente nenhum outro momento do filme.

A estrutura fragmentária de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios permite, assim, que momentos como este venham e vão com bastante liberdade no filme. Apesar de haver um mínimo de cronologia na narrativa central (o triângulo amoroso envolvendo um fotógrafo, uma ex-drogada e um pastor), os constantes fade-outs nos obrigam a nos rearticularmos a cada nova cena, nem sempre conseguindo nos ajustar no tempo (e, num determinado momento, nem mesmo no espaço, quando se salta para outro lugar e outra época). Essa percepção de transe de viés ritualístico está na chave de recepção do filme, dada desde o já citado plano inicial – uma nativa se exibindo à câmera, numa enigmática movimentação corporal num mangue ao som de batucadas externas nunca identificadas. É um plano que tanto não se relaciona com a narrativa como serve completamente à libertação que Brant e Ciasca tateiam.

Essa libertação tenta ser representada na própria trajetória dos personagens. Lavínia (Camila Pitanga), em especial, está sempre transitando em paroxismos de comportamento que a levam para os braços de algum homem em momentos distintos do filme; o corpo dela é o depositário dos desejos incandescentes que desencadearão os principais acontecimentos. Cauby (Gustavo Machado) se moverá sempre em prol do corpo de Lavínia (incluindo seu olhar de fotógrafo, que desde o início quer registrá-la), num misto de paixão e desejo intensos, também marcado pela ilusão de felicidade. O olhar frontal com o qual o filme se conclui é ao mesmo tempo outra quebra da ilusão imagética (como tanto se persegue em vários momentos) e uma piscada das infinitas possibilidades do que se pode esperar de uma ilusão amorosa. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é um filme de aparências (reais e fictícias), nem sempre muito coeso, mas com uma pulsão que pode nos desafiar à ambição de decifrá-lo.

Mostra 2011: O Garoto da Bicicleta

Se O Silêncio de Lorna (2008) já se apresentava como o filme mais “domesticado” dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, O Garoto da Bicicleta dá mostras de que os realizadores belgas podem ter realmente abdicado da câmera inquieta e movimentada de filmes anteriores seus (Rosetta e O Filho entre eles). O que de mais interessante se desprende dessa percepção é que eles talvez tenham mudado para continuarem os mesmos: apesar da estética mais comportada, seguem as narrativas sobre o “baixo clero” da comunidade europeia. Desta vez, o protagonista é um menino de uns dez anos, cujo pai o deixou indefinidamente num internato. Explosivo, passional e obcecado, este garoto não sossegará um só instante ao longo de quase 90 minutos de projeção – e realmente impressiona o quanto os Dardenne nos permitem estar juntos desse personagem, sofrer com ele, temê-lo, às vezes detestá-lo, outras tantas amá-lo.

Há algo de realmente mágico em como os diretores, em tão pouco tempo, criam um universo com o qual nos sentimos tão intimamente conectados. Os personagens são poucos, as situações são muitas e o cuidado na construção de cada momento da narrativa é de uma precisão sem igual. Não mais acompanhando seus protagonistas pelas costas, agora os Dardenne os olham de frente e lhes permitem ser tão ativos de seus atos quanto podendo ser julgados por eles. Devido à câmera mais afastada dos corpos dos atores, o espectador pode vislumbrar as situações menos como um cúmplice e mais como observador atento e curioso. Se isso dá ao filme os efeitos de uma narrativa um tanto mais tradicional, a direção dos Dardenne garante que, a certa altura, você não conseguirá estar fora: O Garoto da Bicicleta, na sua simplicidade de recursos, te arrasta pelos braços e, de uma outra maneira, te faz cúmplice também.

A política é ainda uma questão premente e pulsante para os Dardenne tanto quanto ela surge em camadas discretas e subterrâneas. Não há discursos nem sociologia: há o enfrentamento direto de uma situação delicada que diz muito da juventude europeia deixada à sua própria sorte por condições sociais pouco favoráveis à harmonia fraterna e familiar. Indiretamente, O Garoto da Bicicleta é uma espécie de sequência de outro trabalho dos irmãos belgas, A Criança. Neste, víamos um pai vendendo o filho recém-nascido para conseguir dinheiro. Agora assistimos a um pai (o mesmo ator de antes, Jérémie Renier – e essa escolha definitivamente não é aleatória) que vende a bicicleta do filho e se nega a encontrar o menino, porque essa convivência pode prejudicar sua tentativa de recomeçar a vida a partir de um emprego num restaurante.

Muito vinculados ao neorrealismo, os Dardenne fazem aqui sua versão de Ladrões de Bicicleta, com toques da nouvelle vague de Os Incompreendidos naquele vulcão que é um pré-adolescente rejeitado pela família, correndo pelas ruas e cujo afresco estará em algum símbolo de sua inocência (no caso aqui, a bicicleta), enquanto paira a proximidade sedutora da marginalidade. Os Dardenne narram um pequeno conto sobre uma trajetória possível rumo à perdição. Como é de praxe em seu cinema, esse caminho, fruto de um contexto muito maior do que simplesmente as escolhas dos personagens, terá um desvio, que pode ou não definir outros rumos. O Garoto da Bicicleta é tanto mais esteticamente clássico quanto funciona também de contraponto a Rosetta, outro trabalho da dupla sobre uma criança sem rumos. De um filme a outro, o olhar sobre o mundo mudou. De qualquer maneira, ainda humanistas, os Dardenne fazem da realidade a propulsora de suas capacidades como realizadores de cinema.

domingo, 16 de outubro de 2011

"Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios"

"O amor é sexualmente transmissível". A frase-síntese do romance de Marçal Aquino "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" pode muito bem ser acoplada também ao filme de Beto Brant e Renato Ciasca que adapta o livro às telas.

Aguardado desde quando o romance foi publicado pela editora Companhia das Letras, em 2005, o longa teve sua estreia mundial na noite de terça-feira, em sessão de gala da Première Brasil, no Festival do Rio. "Já não aguentávamos mais de vontade de mostrar esse trabalho, no qual estamos envolvidos há cinco anos", disse um empolgado Renato Ciasca, sobre o palco do Cine Odeon, na Cinelândia carioca. Parceiro habitual de Beto Brant desde os primeiros curtas de faculdade, Ciasca passou a assinar também a direção a partir de "Cão sem Dono" (2007), projeto anterior da dupla para cinema.

Ao microfone, também emocionado, Brant dedicou a sessão, de imediato, ao escritor Marçal Aquino. Ele é a terceira ponta de um triângulo que vem fazendo trajetória significativa nas telas desde 1997, quando se iniciou uma espécie de trinca "crime e castigo" formada por "Os Matadores", "Ação Entre Amigos" (1998) e "O Invasor" (2001) .

Para além de ser o fecho de um projeto de longa data, "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" é o quarto filme de outra fase de trabalho do trio, debruçada sobre as relações amorosas - caso de "Crime Delicado" (2005), o citado "Cão sem Dono" e "O Amor Segundo B. Schianberg" (2010), originalmente feito como série de TV.

Em todos os filmes de Brant, Marçal Aquino esteve no roteiro, sendo vários deles adaptações de textos seus. Curiosamente, esse novo trabalho marca a primeira vez que Brant efetivamente transpõe um romance do autor - antes foram contos e novelas.

"A gente vinha de uma vibração de violência que culminou em ‘O Invasor’. Em seguida, quisemos procurar outros caminhos e buscamos a intimidade das pessoas", define Renato Ciasca. No caso de "Eu Receberia...", o livro pareceu, aos realizadores, reunir uma mescla da primeira com a segunda fase de suas carreiras. "Esse livro estava completo dentro de tudo. Tem a história de amor, tem a intimidade, tem a violência e tem a questão política".

Paixão. Originalmente, a política estava presente no romance pela relação do protagonista - o fotógrafo Cauby, de passagem pelo interior do Pará num momento delicado socialmente - com as disputas do garimpo na região. No intuito de atualizar o enredo, decidiu-se por modificar o embate: dentro do filme, o que se enfrenta é o desmatamento de florestas na Amazônia.
Mas o que segue como verdadeiro atrativo de "Eu Receberia..." é o que já estava no livro: o ardente relacionamento entre Cauby (Gustavo Machado) e Lavínia (Camila Pitanga), e o estranho triângulo que se forma com o marido dela, o pastor Ernani (Zecarlos Machado).

Em tórridas cenas de sexo, a paixão do casal central se explicita na tela, assim como a derrocada do envolvimento, marcado por mistérios e também pela instabilidade de Lavínia. Entre cenas contemplativas da natureza, saltos temporais, olhares lascivos e tensão, "Eu Receberia..." modifica bastante o romance de Aquino, mas mantém sua essência de ser um mergulho passional perturbador.

*Publicado em "O Tempo" no dia 13.10.2011

Dario Argento

Muitas vezes relegado a segundo (ou terceiro) plano, o cinema de terror e suspense é colocado em devido e merecido status na 13ª edição do Festival do Rio, graças à retrospectiva da obra do diretor italiano Dario Argento. Numa parceria do evento com o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), mais de 20 filmes assinados pelo cultuado cineasta, entre trabalhos para cinema e TV, estão sendo exibidos até o dia 23 de outubro na capital carioca. Intitulada "Dario Argento e Seu Mundo de Horror", a mostra é inédita em terras brasileiras.

"Seus filmes se distinguem pelas várias sequências elaboradas com diversos planos inusitados, objetivando abordar os mistérios da mente humana e os transtornos propiciados pelo medo e angústia", escreve o curador, Mario Abbade, no material de divulgação da mostra. "Esse conceito é desenvolvido através de histórias policiais, políticas e até sobrenaturais, em que o sexo, o mistério e a violência são os responsáveis em conduzir a narrativa caracterizada pelo improvável".

Apesar de muitas vezes retratado como "o Hitchcock italiano" - o que o vincularia ao principal nome do gênero, Alfred Hitchcock (1899-1980) -, Argento tem formas bastante distintas de desenvolver seus filmes. Chamá-lo pelo nome do mestre inglês parece menos uma referência do que alguma tentativa torta de legitimar o italiano através de um nome reconhecível do grande público. Seu cinema tão particular pulsa, tem vida própria e sempre foi capaz de encantar a todos que se dispuseram ou puderam assisti-lo.

"A obra de Argento é essencial para se compreender o cinema de horror moderno", afirma o crítico Fernando V. Toste, um dos realizadores do RioFan - Festival Fantástico do Rio, que ocorre em julho. "Seus filmes não apenas amplificaram os níveis de choque e violência do cinema de horror de forma irreversível, mas elevaram a representação da violência a um nível de expressão poética nunca antes visto no gênero".

Origens. Filho do produtor italiano Salvatore Argento e da fotógrafa brasileira Elda Luxardo, Dario Argento nasceu em Roma há 71 anos. Iniciou a trajetória escrevendo críticas de cinema em jornais e depois se tornou roteirista. Seu principal trabalho nessa fase foi no monumental "Era uma Vez no Oeste" (1969), dirigido por Sergio Leone e o qual Argento escreveu junto com um também jovem Bernardo Bertolucci.

Em 1970, estreou como realizador, no desde sempre antológico "O Pássaro das Plumas de Cristal". Influenciado pelo conterrâneo Mario Bava (1914-1980), Argento renovou elementos do "giallo" (como são conhecidos, na Itália, filmes e livros policiais contendo histórias de mistério e assassinato) e chamou atenção pela sofisticação estética e visual. "O talento incomparável para a composição dos planos, a utilização inovadora das cores e elementos cênicos e o estilo de montagem inconfundível, de inspiração musical, são alguns dos traços que fazem de sua obra algo singular", enumera Fernando V. Toste.

Após "O Pássaro das Plumas de Cristal", seguiram-se diversos outros trabalhos, sendo os mais incensados "Prelúdio para Matar" (1975), "Suspiria" (1977) e "Phenomena" (1985). Seu trabalho mais recente, "Giallo - Reféns do Medo", foi lançado em 2009 - no Brasil, chegou apenas em DVD e Blu-ray. Argento está às voltas agora com as filmagens de "Drácula 3D", seu novo projeto. A ambição é recriar o seminal romance de Bram Stoker utilizando as novas possibilidades tecnológicas.

*Publicado em "O Tempo" no dia 9.10.2011

"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet

"Uma sessão de cinema é uma sessão de estupro". Assim se concluía um breve comentário de Jean-Claude Bernardet publicado em 1960 sobre o impacto que o cinema exercia sobre ele. O texto em questão abre a antologia "Trajetória Crítica", um dos trabalhos mais importantes na prolífica carreira deste intelectual do audiovisual, nascido na Bélgica e naturalizado brasileiro. Originalmente publicado em 1978 pela editora Polis, o livro ganha nova e caprichada edição via Martins Fontes (344 págs., R$ 39).

Na época da primeira versão de "Trajetória Crítica", Bernardet tinha 42 anos. Hoje, está com 75. Mesmo após décadas, optou por não mexer numa única vírgula daquele retrospecto de sua produção em jornais e revistas entre as décadas de 1960 e 70. Foi um período fértil, no qual ele se tornou voz relevante no pensamento cinematográfico brasileiro e revelou aspectos de militância que herdou do "padrinho" Paulo Emílio Sales Gomes - que o convidou para escrever críticas no Suplemento Literário do jornal "O Estado de S. Paulo".

O que se vê no livro, portanto, é uma espécie de balanço em progresso da evolução do próprio Bernardet através de seu pensamento crítico. O que diferencia o projeto de outras similares reuniões de textos é o caráter semiautobiográfico. Ao longo das páginas, não apenas são reproduzidos artigos da imprensa, mas registradas novas (e, na época, inéditas) reflexões do autor sobre seu ofício, suas crenças e dúvidas, sua experiência e a problematização do que representa ser crítico de cinema, em especial no Brasil, país subdesenvolvido.

Daí que Bernardet radiografa a transição entre ser o que ele chama de CCC ("crítico cinematográfico colonizado") - ou seja, aquele obsessivamente preocupado com a obra como "experiência artística pura", sem jamais inseri-la em contextos para além de si mesma - e o intelectual que, instigado pelas mudanças políticas e sociais no país, passa a se ater a elementos mais amplos e a se preocupar em conscientizar o leitor do significado implícito (ou explícito) de cada filme comentado dentro de um contexto bem maior ("uma cultura ‘participante’ que não permitia mais o culto da arte (...), para ter uma função não junto a uma camada, mas junto à sociedade global").

A ascensão do Cinema Novo, capitaneado por Glauber Rocha no começo dos anos 60, foi o estímulo necessário para essa mudança de postura diante da avaliação crítica proposta por Bernardet. Mesmo os textos sobre produções estrangeiras contidos no livro carregam uma gama infinita de valores a partir da exibição desses filmes num cenário como o brasileiro.

"Trajetória Crítica" também traz uma coletânea de artigos rigorosos de Bernardet contra a invasão, no Brasil, de filmes de outros países, em detrimento de maior espaço à produção local. Por vezes, ele parece estar escrevendo em 2011. Exemplos: "O público está dominado (...) por um imaginário que lhe propõe o filme estrangeiro, produto de uma realidade social e cultural que não é a sua"; "o problema do cinema brasileiro (...) é a ocupação do mercado interno pelo filme estrangeiro"; "exibidores e distribuidores nunca cuidaram de qualidade, mas de rentabilidade. De boa qualidade é o filme que tem boa bilheteria. Ou alguma vez um exibidor tirou de cartaz um filme de sucesso por achá-lo de má qualidade?".

Ainda que boa parte do interesse do livro esteja nas percepções de Jean-Claude Bernardet sobre seu ofício e na militância por uma melhor ocupação brasileira no mercado, o livro pode atrair quem simplesmente quer ler textos claros e feitos no calor da hora sobre determinados filmes.

Há artigos esclarecedores sobre "Viagem à Itália", de Roberto Rossellini, "Amantes" de Louis Malle, "Harakiri", de Masaki Kobayashi, e "Barravento", de Glauber Rocha – acompanhados dos comentários posteriores do autor sobre sua própria produção intelectual.

"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet
Editora Martins Fontes
344 páginas
R$ 39

*Publicado em "O Tempo" no dia 8.10.2011

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"Nêmesis", de Philip Roth

Na mitologia grega, Nêmesis seria filha do deus Zeus e passou a personificar a imagem da vingança. A palavra também é usada na descrição do que seria o pior inimigo, aquele que tem tanto o poder de nos enfrentar quanto de refletir nosso oposto.

Ao longo da leitura de "Nêmesis", 31º livro do norte-americano Philip Roth e recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras, a ficção parece nos levar a um sentido da palavra-título dentro da estrutura narrativa, até que, no desfecho, o leitor é atropelado pelo significado real do que Roth está dizendo. Preciso nas descrições, potente no desenvolvimento dos personagens e profundamente emocional na conclusão, Roth faz de "Nêmesis" um livro não apenas hipnótico, mas também avassalador.

O efeito não é novidade a quem vem acompanhando os últimos petardos de Roth, 78. Seu livro anterior, "A Humilhação", apesar de muito bem escrito, apelava para algumas soluções fáceis em suas pouco mais de cem páginas. Mas, antes, romances como "Indignação", "Fantasma Sai de Cena" e "Homem Comum" apresentaram uma espécie de "novo" Philip Roth - menos cáustico, mais psicológico, menos polemista, mais reflexivo, em histórias nas quais a morte se torna protagonista em situações variadas.

"Nêmesis" se ambienta na cidade de Newark (região metropolitana de Nova York), no verão de 1944. A guerra está em andamento na Europa. Porém, Bucky Cantor, 23, míope, não pôde acompanhar os amigos no front de batalha. Ficou em casa, trabalhando como vigia do pátio da escola de seu bairro (uma comunidade de judeus) e sendo admirado pelos alunos por seu vigor e coragem.

Mas eis que começa uma das piores epidemias de poliomielite já registradas nos EUA até aquela época. O cotidiano de Bucky se transforma completamente quando alunos seus passam a adoecer, com alguns morrendo pelos efeitos da doença.

A maneira como Roth vai desfiando as angústias de Bucky, através de um narrador que sempre tateamos para entender quem é e onde ele está, é a chave para o abalo que "Nêmesis" é capaz de provocar. Eis aqui um autor ainda no ápice.

"Nêmesis", de Philip Roth
Editora Cia das Letras
200 páginas
Tradução de Jorio Dauster
R$ 36

Trecho do livro
Certa tarde, no começo de julho, dois carros cheios de italianos do ginásio East Side, rapazes entre quinze e dezoito anos, estacionaram no alto da rua residencial que contornava os fundos do pátio de recreio. O East Side ficava no bairro de Ironbound, uma área de fábricas e cortiços onde até então havia sido registrado o maior número de casos de pólio. Tão logo o sr. Cantor os viu, largou a luva no chão — ele defendia a terceira base numa de nossas peladas — e deu uma corridinha até o lugar onde se encontravam os dez estranhos saídos dos carros. Seu estilo atlético de correr, com os pés virados para dentro, era imitado por todos os garotos que frequentavam o pátio, como também o modo decidido de elevar ligeiramente o corpo quando se movia quase na ponta dos pés e o leve balanço dos ombros musculosos ao andar. Toda a sua postura se tornara um modelo para alguns dos garotos tanto dentro quanto fora do campo de beisebol. "O que é que vocês querem aqui?", perguntou o sr. Cantor. "Estamos espalhando pólio", um dos italianos respondeu, o primeiro a sair do carro com ares de valentão.

*Publicado em "O Tempo" no dia 1.10.2011

Tonino Guerra

Aos 91 anos, o roteirista italiano Tonino Guerra está sendo homenageado pela quinta edição da CineBH - Mostra de Cinema de Belo Horizonte (29/4 até 4/11). Vários filmes que ele escreveu (de cineastas como Federico Fellini, Michelangelo Antonioni e Theo Angelopoulos) estão programados na mostra.

Numa entrevista a Gianfranco Zavalloni (diretor do Departamento de Educação e Cultura do Consulado da Itália), publicada na íntegra no catálogo da CineBH, Tonino Guerra fala sobre a carreira e suas lembranças. O Magazine adianta, com exclusividade, trechos da conversa.

Artes plásticas, cinema, poesia, literatura. É possível escolher uma arte? Com qual mais se identifica?O que o conduziu à arte?
Nunca há uma regra determinada. A arte é como quando você se aproxima de uma rosa para sentir o perfume. Quando eu era criança, eu queria desenhar, pintava pequenas aquarelas. Eu tinha um mestre chamado Moroni, um grande pintor com suas fantasias. Depois eu me matriculei na universidade e comecei a dar aulas. E então me fizeram uma proposta para escrever o roteiro de um filme por causa do sucesso que eu tinha obtido com minhas poesias. Se bem me lembro, foi o primeiro filme de Marcello Mastroianni. O título era "Ettero di Ciello", com um diretor que já morreu e fez só esse filme. Depois, me convidaram para ir a Roma, e ali passei dez anos de fome. Foram tempos muito duros, mas muito importantes. Depois começou o grande sucesso. Com Fellini, Antonioni, (irmãos) Taviani, (Andrei) Tarkovsky, (Francesco) Rosi, (Theo) Angelopoulos, (Vittorio) De Sica... Todos diretores e pessoas excepcionais. (...) O roteirista acha que inventa muita coisa, mas eu digo que, pessoalmente, nunca inventei nada. Eu me sentava diante do diretor e, juntos, nos perguntávamos o que podíamos fazer. É como fazer pão misturando farinha e água.

Qual sua opinião sobre (Roberto) Rossellini?
Poderoso, poderoso, poderoso. Eu não entendo por que todos os italianos não se ajoelham diante dos grandes diretores que fizeram e criaram um novo olhar de simpatia e estima nos italianos. Que sucesso! Que criatividade! Que novidade! É um renascimento! E pensar que essas pessoas faziam tudo sem dinheiro, com poucas invenções, mas, quando conseguiam fazer, tinham a sorte do filme ser visto em todo o mundo. (...) Rossellini foi um gênio absoluto, uma homem que fez filme com a película vencida. E esta foi a sorte mágica dessas películas vencidas... que tinham um modo assim mágico como as telas sujas. Provavelmente foi o ponto mais alto do cinema italiano. Foi aquele que, em primeiro lugar, se permitiu criar estruturas novas. Ele triturou o modo velho de contar histórias. Ele mesmo tinha uma vida arriscada (...) E ele só dava uma olhada na palavra do roteiro, porque sabia que elas, as palavras, precisam ser molhadas diante da realidade que tinha diante de si e da história.

Dos grandes mestres e amigos que você teve, o que aprendeu? Quais foram as trocas nessa aprendizagem?
Trocamos muitas coisas. O mais importante é que, quando eles trabalhavam comigo, eram também roteiristas, não eram deuses. Me davam a sensação de igualdade, de estar no mesmo plano. Este é o grande ensinamento, o maior de todos! Havia coisinhas laterais que eu roubava da grandeza deles.

*Publicado em "O Tempo" no dia 30.9.2011
** Na foto acima, Tonino Guerra (à direita) está com Michelangelo Antonioni.

"Encruzilhada" e "Johnny Furacão"

O momento efervescente que vive o quadrinho brasileiro tem gerado trabalhos de envergadura, criados por nomes ainda em ascensão, nem por isso pouco significativos. São os casos de dois lançamentos quase simultâneos que andam circulando em boas livrarias e lojas virtuais - e fazendo bastante sucesso entre os fãs e especialistas do segmento.

Que o diga o paulista Marcelo D’salete. Seu "Encruzilhada" foi taxado pelo crítico Eduardo Nasi como "não só um dos melhores álbuns dos últimos tempos, mas também um dos mais importantes". Já o mineiro naturalizado carioca Sama, autor de "A Balada de Johnny Furacão", foi elogiado pelo também crítico Paulo Ramos: "É fácil entregar-se à obra e aos eficientes desenhos de Sama".

Em comum, as duas HQs têm pouca coisa. "Encruzilhada" trata do cotidiano urbano nas ruas paulistanas, com personagens decalcados do mundo real protagonizando pequenos contos sobre marginalidade, consumismo e violência. "A Balada de Johnny Furacão" é uma aventura de estrada (ou "road comic", como definiu Paulo Ramos) com toques fantásticos.

Para Marcelo D’salete, "Encruzilhada" - seu segundo trabalho, antecedido por "Noite Luz", de 2008 - serviu como forma de ele amadurecer um processo que já vinha desenvolvendo. "Retomei a ideia de trabalhar contos ambientados em grandes metrópoles, especialmente porque é onde eu vivo e por querer retratar situações muito próximas do meu cotidiano", diz ele. "Algumas das histórias que eu mostro foram testemunhadas por mim, outras me contaram e, numa delas, eu juntei alguns outros elementos".

O universo geográfico das ruas de São Paulo é mais um atrativo a D’salete. Ele conta sempre ter gostado de desenhar a cidade e retratar paisagens com as quais os moradores se habituaram - prédios infinitamente altos, ruas cheias, trânsito. "Tudo isso se junta no álbum numa série de encontros e desencontros, de cruzamentos e conflitos que acontecem no dia a dia das pessoas".

Por sua vez, Sama (pseudônimo de Eduardo Filipe) partiu de uma música de Erasmo Carlos que marcou sua infância para narrar a saga de três personagens perdidos numa autoestrada e caçados por um bando de motoqueiros valentões, em "A Balada de Johnny Furacão".

Sobram referências a filmes (como "O Selvagem da Motocicleta", de Francis Coppola) e bandas de rock (Matanza e Raimundos). "Nunca tive o roteiro completo do ‘Johnny’", revela Sama. "A história foi me levando mais do que eu levando a história, e acho que a grande força dela está nisso".

Com técnicas híbridas na concepção visual do álbum, Sama utiliza em seus desenhos predominantemente a aguada de nanquim, no intuito de dar o tom alucinado de sua história - o que se torna fundamental no terço final, quando a narrativa mergulha em outros meandros.

Perfis
Marcelo D'salete tem 31 anos. É pesquisador de arte afro-brasileira, ilustrador de livros infantojuvenis e lançou seu primeiro trabalho solo, "Noite Luz", em 2008, pela editora Via Lettera.

Sama tem 38 anos. É artista visual e autor premiado de charges, cartuns e ilustrações. Também é ator, tendo trabalho na televisão, no teatro e no cinema.

Referências.
Se há um fator em comum entre "A Balada de Johnny Furacão" e "Encruzilhada" (para além de ambos serem excelentes leituras), é a admiração de seus autores pelo mestre uruguaio (naturalizado na Argentina) Alberto Breccia (1919-1993), um dos grandes nomes da HQ mundial.

A influência, ainda que não explícita, pode ser percebida na forma de utilizar o preto e branco nos dois álbuns. Marcelo D’salete faz quadros pretos nas próprias páginas, inserindo o traço e os contornos dentro do "enquadramento", com todos os elementos dialogando. Já Sama faz páginas mais "brancas", mas não menos expressivas, usando silhuetas e sombras também em fundos escuros.

Não só Breccia move D’salete e Sama. Os dois são leitores vorazes de HQ. O primeiro curte também Laerte, Marcello Quintanilha e mangás; o segundo exalta Odyr Berardi, Hugo Pratt e a dupla Kazuo Koike e Goseki Kojima, responsáveis pela série "Lobo Solitário".

*Publicado em "O Tempo" no dia 30.9.2011

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Robert Louis Stevenson

É tão animador quanto relevante um livro do escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894) que trate sua obra de uma forma devidamente adulta. Devido à narrativa cristalina e às histórias de teor fantástico ou aventuresco, Stevenson ainda carrega, em alguns meios, a pecha de autor infantojuvenil e adequado só a bancos escolares. Nada mais falacioso. O lançamento de “O Clube do Suicídio e Outras Histórias” pela Cosac Naify pode colocar Stevenson numa posição mais justa ao seu gênio.

Para além da seleção de seis precisas histórias do autor, a edição (publicada dentro da coleção Prosa do Mundo) dá tratamento de luxo ao escocês, com a inclusão de um amplo prefácio de Davi Arrigucci Jr. e dois artigos fundamentais sobre Stevenson – um, mais geral, do norte-americano Henry James e publicado em 1888 numa revista; e outro, do russo Vladimir Nabokóv, a partir de uma aula de 1980, que versa especificamente sobre a mais famosa criação de Stevenson, a novela “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”.

Esta é, aliás, a sempre grande atração de qualquer antologia de Stevenson. Publicada pela primeira vez em 1886, a novela ficou mais conhecida no Brasil como “O Médico e o Monstro”, ainda que esse título seja uma liberdade poética bastante redutora ao teor da história.

“O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” é apenas outro demonstrativo do talento literário de Stevenson – também confirmado especialmente no conto “Markheim” e nas três partes distintas da novela “O Clube do Suicídio”. Arrigucci cita o poeta inglês John Keats para definir a mágica proporcionada pelo autor: “Aquilo que a imaginação capta como beleza deve ser verdade”. Logo em seguida, o próprio prefaciador completa o raciocínio, caracterizando a prosa do escocês como a mistura entre “a imaginação que inventa histórias parecidas aos sonhos e a aguçada sensibilidade visual”.

Por mais que Stevenson fale de crimes, duplas personalidades, suicidas, assassinos, cadáveres ambulantes, encontros com o demônio e ação em alto-mar (ele é autor do romance “A Ilha do Tesouro”), o escritor sempre narra os limites da natureza humana diante de situações de profunda complexidade moral e mesmo científica – o que, à sua maneira, o aproxima de nomes como Jorge Luis Borges e Dostoiévski.

Adaptações
“O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, a mais famosa e referencial história criada por Robert Louis Stevenson, entrou para o inconsciente coletivo de tal forma que é impossível alguém não saber do que a trama fala.

Na TV e no cinema, são mais de 120 adaptações desde o início do século passado (a primeira é de 1908, feita pelos estúdios Selig). Para teatro e rádio, perdeu-se a conta. Há ainda as versões indiretas, que se utilizam do enredo básico da novela para desenvolver uma história própria.

Na TV, é o caso de algumas animações famosas protagonizadas pela dupla Frajola e Piu-piu, nas quais o doce bichinho amarelo se torna um monstro selvagem; e, nos quadrinhos, Stan Lee provavelmente se inspirou em Stevenson para criar o Hulk – e seu alter ego, o cientista Bruce Banner.

Até os Trapalhões fizeram a sua versão, em 1980, na comédia “O Incrível Monstro Trapalhão”.

O CLUBE DO SUICÍDIO E OUTRAS HISTÓRIAS
Editora Cosac Naify
500 páginas
Tradução de Andréa Rocha
R$ 66

*Publicado em "O Tempo" no dia 17.9.2011

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

"Hellblazer" e John Constantine


Ainda no útero, ele estrangulou o irmão gêmeo com o cordão umbilical e matou a mãe no parto. Jovem, estudou artes arcanas e misticismo. Fumante inveterado, tocou na banda de rock Membrana Mucosa, enviou acidentalmente a alma de uma garotinha para o inferno e recebeu transfusão de sangue de um demônio.

Estes são apenas alguns elementos da concepção de John Constantine, o bruxo inventado pelo escritor inglês Alan Moore e protagonista da revista mensal "Hellblazer". O personagem completou 25 anos de criação em 2010. Para celebrar, a editora DC Comics lançou o álbum "Pandemônio", história na qual Constantine aparece numa trama envolvendo um atentado a bomba no museu de Londres e estranhos artefatos sumérios. Escrita por Jamie Delano - o primeiro roteirista de "Hellblazer" - e desenhada por Jock, a edição especial chegou às bancas brasileiras na última semana [em março de 2011], fechando o ciclo de aniversário do personagem.

Na verdade, Constantine surgiu pela primeira vez em 1985, na revista mensal do Monstro do Pântano, então escrita por Moore. Inicialmente apenas coadjuvante - ele surgia no enredo como um "guru" do Monstro, ensinando-lhe a usar seus poderes -, Constantine chamou atenção dos leitores desde o começo. O mistério em torno de seu passado, a ironia tipicamente britânica, o diálogo com criaturas sobrenaturais e o visual inspirado no cantor Sting, ex-vocalista da banda The Police, renderam ao personagem um título próprio.

Em janeiro de 1988, chegava às bancas a primeira "Hellblazer" (ou "desbravador do inferno", numa tradução aproximada), com roteiros de Delano e desenhos de John Ridgway. A HQ serviu de estopim para a fundação do selo Vertigo, em 1993, com histórias de teor adulto. Até hoje, "Hellblazer" segue como o título mais antigo ainda em publicação pela Vertigo, estando atualmente na edição 277 nos EUA. No Brasil, sua publicação é meio atrapalhada, mas tem sido ajustada pela Panini, que atualmente edita a série no mix mensal da revista "Vertigo". Por aqui, "Hellblazer" ainda está no número 190, com roteiros de Mike Carey.

"O maior legado do John Constantine foi ter sido um dos primeiros personagens moralmente ambíguos dos quadrinhos, deixando completamente de lado o heroísmo clássico e permitindo uma ‘flexibilidade moral’ para os protagonistas das séries", diz Fabiano Denardin, atual editor da HQ no Brasil. "É difícil imaginar que teríamos algumas séries sem ter tido "Hellblazer" antes. ‘Preacher’, por exemplo, feita por Garth Ennis após ele ter trabalhado com "Hellblazer". Talvez nem tivéssemos ‘Sandman’, de Neil Gaiman, se não houvesse Constantine".

Para o crítico de HQs Eduardo Nasi, "é bastante surpreendente que a série tenha chegado até aqui tão intacta". "‘Hellblazer" não chega a ser um campeão de vendas, mas Constantine continua o mesmo mago inglês loiro arrogante, que bebe, vai a pubs e enfrenta demônios", destaca. Nasi acredita que a longevidade de "Hellblazer" se deva muito ao espírito jovem e ousado do protagonista. "Constantine inicia sua trajetória assim: um punk sem nada de especial que começa a explorar o mundo e vai muito além do que nós geralmente vamos. Ele conjura demônios, faz sexo sem pudores, usa todo tipo de droga e se mete em todo tipo de merda. Ele me parece muito mais um cara que busca experiências do que, de fato, um adulto formado".

Denardin crê que a maior diferença de Constantine em relação a seus colegas de HQ está justamente nessa liberdade. "Um herói tem os limites bem definidos. Um anti-herói permite o que a imaginação de um escritor quiser fazer sem descaracterizá-lo", diz.

Em 2005, e depois de anos de especulação, a revista em quadrinhos "Hellblazer" se tornou o filme "Constantine". Porém, quase nada do que se sabia da HQ foi para as telas. A começar pelo próprio personagem central. Britânico, loiro e mal encarado, John Constantine foi encarnado no cinema pelo norte-americano, moreno e rosto-de-bebê Keanu Reeves. A ambientação da trama saiu das ruas sombrias de Londres para o universo pop de Los Angeles.

Apesar de inspirado no arco de histórias "Hábitos Perigosos", publicado em 1991, o roteiro do longa de Francis Lawrence pouco guardou de semelhanças com o universo original de "Hellblazer". Mesmo assim, foi sucesso de bilheteria na época.

Publicação no Brasil
"Hellblazer" foi publicado pela primeira vez no país em 1990, na revista mensal "Monstro do Pântano", em formatinho, pela editora Abril. Em 1995, a Abril lançou a publicação mensal "Vertigo", contendo histórias com John Constantine escritas por Garth Ennis. A revista, porém, só durou um ano.

Em 1997, as HQs do bruxo inglês migraram para a editora Metal Pesado, que as publicaram de forma bastante irregular, até a Brainstore assumi-las em 2000. A Pixel editou a série no final da década passada, em diversos álbuns especiais. Atualmente, "Hellblazer" sai pela Panini em histórias mensais e encadernados esporádicos.

*Publicado em "O Tempo" no dia 27.3.2011

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Sobre "A Alegria", de Felipe Bragança e Marina Meliande

Mais de um ano após ser exibido na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela do Festival de Cannes, "A Alegria", dos cariocas Felipe Bragança e Marina Meliande, ganha o circuito comercial. O filme está em cartaz em Belo Horizonte desde sexta-feira [9 de setembro], em duas sessões no Usiminas Cineclube Savassi. Leia uma conversa que tive com o Felipe, por e-mail.

De que tipo de inquietação (pessoal, estética, narrativa, artística) nasce "A Alegria"? O filme nasce como projeto pensado a partir de uma dupla inquietação inicial - um incômodo grande em relação ao imaginário da grande mídia em torno do lugar político do jovem contemporâneo, sempre colocado como impotente e inerte, e um outro incômodo em relação à imagem do cinema brasileiro como algo aprisionado a uma pauta realista, reagindo apenas a impulsos temáticos e não se assumindo como criador de imagens e sensações e formas de vida. De alguma forma, toda a Trilogia Coração no Fogo é fruto de uma grande incapacidade de ficar parados que nos assolou em 2006 e que veio explodir agora com os filmes chegando nas salas de cinema.

O filme me parece refletir basicamente sobre como falar de juventude na ficção hoje, em especial no cinema brasileiro (devido às referências ao Rio e à violência). "A Alegria" é um filme jovem, sobre jovens ou um filme para jovens? Queríamos um filme adolescente: desejoso, forte, nervoso, calmo, sonhador e cheio de defeitos, incerto. Sendo assim - acho que é um filme que pode ser pensado tanto como um ser-vivo com o qual um adolescente pode se identificar, mas também um filme que coloca o lugar do adolescente como um lugar mítico de potência e criação, que vai além do adolescente como momento biológico, mas como contra-signo da apatia - e isso pode ser visto também como um filme "sobre adolescentes". Gostamos de confundir essas camadas. Entre John Hughes, Sganzerla, animé japonês e agendas adolescentes. E entre o que é discurso do autor e o que é vida independente do próprio filme, como algo que se movimenta à nossa revelia. Essa era a função dos não-atores no filme: deixar tudo prestes a desabar num mundo em ebulição.


"A Alegria" lida com questões muito realistas (adolescência, angústias, violência) num viés profundamente fabulista e lúdico. Como vocês conduziram o tom do filme dentro desse pensamento de dosar as duas "orientações"? Não gostamos de dividir as questões realistas das questões fabulares. Pensamos no filme como um fluxo de fantasmagorias criando imagens, discursos e sensações em torno daquilo do que queremos nos aproximar: esse lugar onde a realidade apática do Rio pudesse ser desafiada. A questão da violência entra, assim, também dentro desse imaginário de pesadelos e delírios da cidade que os personagens habitam. Então o tom fabular, pra gente, emerge de dentro do lugar realista, e vice-versa. Procuramos criar isso por dentro da fotografia e cenografia - em tons as vezes vibrantes e as vezes pastéis, em objetos realistas deslocados de sua normalidade em contraponto a momento de monstruosidade assumida. E também nos utilizando de um tom de diálogos que nos colocassem sempre num estado de dúvida, de alerta, de atenção.

O filme integra a chama Trilogia Coração no Fogo. No que ela consiste? Tudo gira em torno de um bilhete adolescente que encontrei em 2006 em uma pesquisa, já pensando em escrever um filme sobre juventude no Rio de Janeiro. Um bilhete anônimo de uma menina pela qual me apaixonei e dei um nome fictício: Luiza, por me fazer pensar em Luz. Daí, em conversas com Marina, pensamos numa trilogia sobre amores, utopias, aventura e risco por dentro desse olhar juvenil que estava no bilhete misterioso. Uma trilogia que girasse em torno da personagem da Luiza, despedaçada em três: no "A Fuga da Mulher Gorila" temos uma fábula feminina sobre o abandono e a transformação do corpo. A personagem de Flora Dias no Gorila é uma espécie de alter-ego sonhado pela Luiza, que sonha também com a Luiza do "A Alegria". O "Desassossego" é um filme em dez fragmentos de cinema, todos inspirados numa carta-manifesto assinada pela Luiza e por mim, e que mandei para 14 diretores. E "A Alegria" é o filme que narra algumas das aventuras da Luiza propriamente ditas, interpretada pela Tainá Medina que "incorporou" essa menina mítica como que incorpora um santo. Uma menina que eu nunca encontrei de verdade, mas que pra mim, pra nós, existe.

Você já foi definido como "um cineasta que faz críticas". No que sua experiência com crítica de cinema (e de cinefilia) te ajudou a desenvolver os filmes que vocês fizeram? Me chamavam assim porque eu nunca tive a mesma disciplina e dedicação para escrever sobre filmes que eu tenho para filmar e pensar filmes. Então eu escrevia nos entremeios das coisas que eu ia pensando, filmando. Em algum momento, eu já estava com 27 anos, resolvi deixar de vez de escrever resenhas de filmes e participar de revistas de críticas. Fazer filmes já me ocupava muito e eu achava que não era escrevendo sobre filmes que ia dar minha maior contribuição para o que eu via a meu redor, de bom e ruim. Conviver com aqueles críticos por 6 anos me deu uma carga cinéfila muito forte, e o hábito de mesclar filmes, referências e criar conexões entre elementos cinematográficos de forma criativa. Me ajudou também a aprender a pensar os filmes "dos outros", pela diferença e particularidade de cada proposta. Um filme como "Desassossego", onde tive que convidar e coordenar 13 diretores talentosos, ficou muito mais fácil de fazer por eu ter essa vasta experiência em observar o comportamento e as imagens de outros diretores.

Os curtas de Beto Brant

Às vésperas de apresentar pela primeira vez seu sétimo longa-metragem ("Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios", codirigido por Renato Ciasca, vai ter premiére no Festival do Rio em outubro), o cineasta paulista Beto Brant vem hoje [12 de setembro] a Belo Horizonte para, no projeto Curta Circuito, apresentar uma série de curtas-metragens que marcam uma antiga e uma nova fase na carreira.

A antiga se refere ao começo como realizador, representado por "Aurora" (1987), feito com Ciasca, "Dov’e Meneghetti" (1989) e "Jó" (1993), este em parceria com Ralph Strelow. "São projetos de uma época minha ligada à informação, quando eu estava me encontrando dentro do cinema, buscando as possibilidades de linguagem e algum tipo de amadurecimento", define Brant.

Na época da trinca acima, o cineasta acabara de se formar no curso de cinema da Faap, em São Paulo. Nesses pequenos filmes, é possível perceber elementos que depois seriam cada vez mais aperfeiçoados por Brant, entre eles o gosto por adaptações literárias ("Aurora" leva à tela um trecho de "O Céu em Minhas Mãos", do argentino Mempo Giardinelli) e a investigação de formas variadas de narrar - o que está bastante presente nas diferenças estéticas de longas como "O Invasor" (2001), "Crime Delicado" (2005) e "Cão sem Dono" (2007).

Já a segunda leva de curtas a serem apresentados fazem parte de uma busca mais atual de Beto Brant - a do experimentador de tecnologias, a do artista que descobre as infinitas possibilidades dos novos equipamentos de filmar. "Nicinha, um Transe Amazônico" (2011), "Cura Dor" (2006) e "Asas, Sombras, Bicos e Unhas de Sonhos" (2007) são filmetes de três a sete minutos feitos a partir de pesquisas para outros projetos ou diante do desafio de usar de câmeras de celular.

"Esse tipo de filme me permite uma independência muito grande", diz Brant. "Estou muito animado de continuar fazendo e trabalhando nisso sempre. Estou até me equipando melhor para dar seguimento".

Desde 1997, quando surgiu no circuito de longas-metragens com "Os Matadores", Beto Brant tem se reafirmado como um dos nomes mais expressivos do audiovisual de ficção brasileiro. Além da força dos filmes (vieram depois "Ação Entre Amigos", "O Invasor", "Crime Delicado", "Cão sem Dono" e "O Amor Segundo B. Schianberg"), o diretor tem se notabilizado pela bem-sucedida parceria com o escritor Marçal Aquino, autor do roteiro de quase todos os seus filmes e também de contos e romances que originaram boa parte dos trabalhos de Brant.

Aliás, "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" adapta romance homônimo de Aquino, publicado em 2005. É também o segundo longa que Brant assina com o velho amigo e parceiro Renato Ciasca.

"Sátántangó", de Béla Tarr

O acontecimento cinematográfico do ano em Belo Horizonte tem dia, hora, lugar e tempo de duração marcados. Amanhã [5 de setembro], às 14h30, no Oi Futuro Klauss Vianna, começa a projeção de "Sátántangó", filme monumental do diretor húngaro Béla Tarr, com 7 horas e 30 minutos de duração - divididas em 12 partes e dois intervalos.

O longa, em película 35mm, foi trazido à capital pela produtora Zeta Filmes para a retrospectiva de Tarr, uma das atrações da mostra Indie 2011, cuja programação segue até a próxima quinta-feira. Lançado em 1994, "Sátántangó" (em português, seria "o tango de Satã") adapta o romance de László Krasznahorkailogo. O autor colaborou no roteiro do filme.

O enredo acompanha o cotidiano numa fazenda coletiva da Hungria que entra em colapso durante um rigoroso inverno. Ao mesmo tempo em que os trabalhadores recebem uma quantia financeira como indenização, eles ficam temerosos ao saberem que um antigo morador do local - com fama de feiticeiro e bruxo - estaria voltando.

"Sátántangó" foi considerado a obra-prima de Tarr, diretor cuja carreira se iniciara em 1977 com "Ninho Familiar" e tivera uma primeira grande guinada em 1987 com "Maldição" (também conhecido por "Danação" ou "Condenação"). O filme foi recebido com entusiasmo nos meios culturais, incluindo um ensaio elogioso da escritora Susan Sontag (1933-2004), no qual ela o considerava "devastador e apaixonante em cada minuto de suas sete horas". E completava: "Eu ficaria feliz em vê-lo todos os anos pelo resto da minha vida".

Para Ranieri Brandão, crítico de cinema e editor da revista eletrônica Filmologia (www.filmologia.com.br), é em "Sátántangó" que Tarr atinge a plenitude narrativa, tanto material quanto espiritual. "É aqui que, finalmente, aquela espécie de ‘frações de mundo’ de seus outros filmes se acomodam numa narração mais pautada, mais limpa e controlada pelo diretor", frisa Brandão.

O crítico aponta um caráter de apocalipse iminente em toda a obra de Béla Tarr, cujo ápice se dá em "Sátántangó". Brandão acredita que o tom de fim do mundo se deva à queda do comunismo na Hungria, ocorrida em 1989 após 42 anos de regime. "Essa mudança histórica serviu ao filme para o estabelecimento do cenário, o clima de abandono, a deterioração dos espaços no país", afirma o crítico. "O mundo que se abre para a Hungria de Tarr, depois do regime, é extremamente misterioso e material demais e está explicitado nas paredes descascadas e sujas".

Béla Tarr - hoje com 56 anos de idade e, segundo ele mesmo revelou no Festival de Berlim em fevereiro deste ano, aposentado do cinema depois de "O Cavalo de Turim", seu filme mais recente (e incluído no Indie) - diz ter se inspirado na cadência do tango para estruturar o filme, com a ideia de seis passos para a frente e seis para trás. O ritmo está impresso no desenvolvimento marcadamente redundante dos personagens e na própria separação em 12 capítulos.

Esteticamente, o filme leva ao ápice o rigor do cineasta. Não apenas pelas mais de sete horas de duração, mas pelo ritmo racionalista, de planos fixos e movimentos de câmera lentíssimos, enquadrados pela fotografia em preto e branco de Gábor Medvigy. "Tarr talvez queira dizer muito pouco, mas a intensidade do que diz faz valer cada minuto", escreve a curadora Francesca Azzi no catálogo do Indie. "Cada evento (no filme) é contado mais de uma vez, sob um outro ponto de vista, criando um quebra-cabeças engenhoso e soturno".

DVD. Uma boa notícia é de que a distribuidora Lume Filmes confirmou o lançamento, para 2012, do longa de Béla Tarr no formato DVD, em três discos. "É um filme ousado em todos aspectos, desde sua narrativa, os longos planos, seus silêncios e sua duração", diz Frederico Machado, proprietário da Lume. "Compartilhar esse trabalho para o grande público é uma satisfação que nos move".

domingo, 28 de agosto de 2011

Johnnie To pós-2005: domesticação com liberdade


O mundo dos festivais ocidentais de cinema descobre Johnnie To a partir de 2005. É o ano em que Eleição – O Submundo do Poder compete pela Palma de Ouro no Festival de Cannes. E é o ano em que o cineasta recebe olhares curiosos de diversas partes do mundo que permaneciam alheias à prolífica produção deste realizador de Hong Kong. Os downloads de seus filmes disparam nas comunidades virtuais, a cobrança para que distribuidoras o lancem nos circuitos locais aumenta e a curiosidade por cada novo trabalho é proporcional ao deleite com que são recebidos quando finalmente vistos (por vias oficiais ou não). Daquele seminal 2005 em diante, To vai aparecer em todos os outros grandes eventos de cinema do mundo – em Veneza, com Mad Detective (2007 – em parceria com Wai Ka-fai) e Exilados (2006); em Berlim, com Sparrow(2008); de volta a Cannes, tanto na mostra competitiva com Vengeance (2009) quanto em seleções paralelas, exibindo Eleição 2 (2006) e Triangle (2007 – em parceria com Tsui Hark e Ringo Lam).

Mudou To ou mudaram os festivais? Coincidência ou não, é nesta fase que o cinema dele se apresenta mais “domesticado” – e aqui não se quer colocar nenhum caráter pejorativo ao termo. Se até 2005 a estética de To se baseava num fluxo contínuo de ação e reação, com a câmera quase sempre captando o que era mais plausível de captar dentro do espaço, sem com isso parecer que a câmera soubesse onde deveria estar (pensemos na sequência final de A Hero Never Dies, de 1998), o To pós-Eleição vai deixar muito mais evidente a mise en scène: a movimentação dos corpos estará mais “bailada”, os enquadramentos serão milimetricamente construídos para aproveitar ao máximo o que permite o formatoscope, os atores estarão muito mais dependentes de marcação, as coreografias de lutas e tiroteios vão aparentar uma correção visual bem menos anárquica. Será – buscando aqui as definições de Rogério Sganzerla – uma câmera muito mais ideal do que possível, um tipo de cinema mais “limpo” do que “sujo”, uma disposição de elementos bastante mais explícita na medida em que surjam as necessidades e possibilidades do quadro.

Por esse processo de “limpeza”, o cinema de Johnnie To conquistou as plateias (e curadores de festivais) que até então não tinham olhado para ele com a devida atenção. Desde John Woo um cineasta de Hong Kong não era tão cultuado fora de seu território – e, ironicamente, os ocidentais só perceberam o que existia no passado de Woo quando, depois de anos de atividade na terra natal, ele foi filmar nos EUA, onde estreou em 1993 com O Alvo, protagonizado por Jean-Claude Van Damme. Mais irônico é que To tenha sido descoberto pelos festivais do Ocidente com um filme que nem possui as características mais notáveis de seu cinema. Eleição, ainda que de elaboradíssima conceituação formal, não tem tiros, aproveita-se do excesso de personagens para montar o drama central e se configura muito mais como um “filme de máfia”, no sentido tradicional do termo, do que necessariamente “um filme de máfia de Johnnie To”. Daí, talvez, a impressão (muitas vezes incômoda) de se estar assistindo, durante Eleição, a um piloto de série de televisão.

É na continuação do filme que To demonstra muito de seu modo de trabalho. Mesmo que permanecendo dentro das “regras” criadas por ele mesmo para o primeiro Eleição(nada de tiros, ênfase nas negociações e trapaças políticas, personagens que vão e vêm), Eleição 2 – A Tríade se sustenta menos nos meandros das artimanhas pelo controle da máfia de Hong Kong do que na trajetória do protagonista Jimmy Lee – o que se vê, de fato, é uma simbiose entre os dois temas do filme, um alimentando o outro. E, disso, To entrega algumas das cenas mais marcantes de todo o seu cinema. Transformando a morte num ritual de dolorosa penitência (a quem provoca e a quem é vítima), o diretor faz dos constantes instantes de assassinato de Eleição 2 grandes marchas fúnebres, via uso da música, da câmera que passeia pelas imagens com muita calma e da própria face de quem está na tela. O filme se torna um impressionante acúmulo de violência, algumas de um barbarismo primitivo (exemplo máximo: a cena dos cachorros). O inferno em Eleição 2 é bem ali, em Hong Kong.

Estão ausentes deste díptico ao menos dois elementos que apareciam com força em filmes anteriores. Um é a autoridade policial como instância reguladora e cumpridora das leis. A polícia fora fundamental em Jogo da Vingança(Running Out of Time, 1999), com o agente sendo um antagonista à altura do bandido, e em The Big Heat(1988), cujos créditos iniciais se dão durante um videoclipe da polícia em ação; e a imagem da justiça e autoridade foi figura-chave pelo menos em Fireline (1997), que narra o cotidiano de uma equipe de bombeiros, e em PTU – Police Tactical Unit (2003), sobre o qual o título já diz tudo. Já nos dois Eleição, existe a polícia, mas ela ou faz vista grossa para a ação das tríades, preferindo acordos informais em vez do enfrentamento puro e simples (primeiro filme), ou está quase completamente ausente, aparecendo protocolarmente em um ou dois momentos (segundo filme). O mundo existente nessa dupla de filmes está tomado pelas tríades, e elas comandam os rumos de todos – inclusive das próximas gerações, como se pode constatar no desfecho pessimista de Eleição 2, em que tanto um lado quanto o outro dos “guerreiros” que digladiam pelo poder é obrigado a condenar os filhos a um futuro de caos e violência.

A polícia surge com maior presença em outros filmes realizados por To depois de Eleição, ao menos de duas formas: ou na chave do deboche e da ironia, caso de Exilados, em que há um agente que sempre aparece na hora dos enfrentamentos entre bandidos, mas nunca interfere na ação – ele conta as horas para se aposentar, diz estar sempre “de passagem” e telefona pessoalmente ao líder mafioso, pedindo que o proteja; ou como instância da ingenuidade em meio ao fogo cruzado, como emTriangle, no qual o policial aparece pouco além da metade do filme e é fundamental para a redenção do trio protagonista, ainda que suas atitudes (enquanto autoridade) contem pouco para isso.

O outro elemento ausente do díptico Eleição – mas presente nos filmes posteriores e anteriores de To – é a camaradagem entre os personagens. O próprio diretor é ele mesmo adepto das amizades no âmbito profissional. Começou a carreira trabalhando com Tsui Hark, tem alguns filmes em parceria com Wai Ka-fai (o mais recente sendo Mad Detective, já da fase atual) e é daqueles cineastas que utilizam os mesmos atores em diversos títulos, à moda de John Ford, John Cassavetes, Ingmar Bergman, Woody Allen e Martin Scorsese – no caso de To, algumas figuras sempre reconhecíveis são Ching Wan Lau, Simon Yam, Francis Ng e Suet Lam. [Se os nomes são difíceis de vincular aos rostos, uma rápida pesquisa no Google Images esclarece quem é quem.] Recentemente, To voltou a dividir a direção com dois colegas de país e profissão – o supracitado Hark e Ringo Lam – num filme que celebra justamente esse companheirismo intrínseco ao universo de To.

Porque, por mais violentas que sejam as regras dos mundos de crime inventados por Johnnie To, elas estarão sempre um degrau abaixo da manutenção dos laços fraternos. Não é algo recente – na verdade, permeia a obra do cineasta, tornando-se mesmo uma questão emThe Mission (1999) e atingindo tons míticos na carnificina final de Exilados. O passado, nestes filmes, se transforma em propulsor para o presente. Os filmes se rendem ao amor existente entre os personagens e não precisam se justificar enquanto obra artística para reforçar as relações: em Exilados, a imagem que revela o antigo envolvimento do quinteto protagonista aparece por duas vezes, numa mesma foto, e essa imagem pipoca na tela sem qualquer “motivo” da diegese. Ela é a representação pura e simples da principal questão do filme, e a força “superiora” do realizador a insere entre uma cena e outra, completando o ciclo daqueles amigos malfadados. Em Sparrow, os batedores de carteira deixam um pouco de lado o “ofício” e se unem para auxiliar uma bela mulher a escapar de um homem que insiste em persegui-la – e levam ao limite máximo não apenas a fidelidade uns aos outros, mas o compromisso informal de proteger a mulher.

Os filmes de Johnnie To a partir de 2005 são quase todos passíveis de se enquadrar no gênero da ação. O diretor sempre trabalhou nessa seara, mas tomou rumo contínuo, talvez influenciado pela receptividade pós-Eleição. E To, assim como o conterrâneo John Woo (mas de maneira bem distinta), faz da ação – corpos, tiros, movimentação no espaço – pura arte. É significativa e fundamental sua preferência por locais fechados, o que lhe permite dominar com mais apuro cada gesto dos atores e do próprio lugar. Exilados, nesse sentido, é uma de suas realizações mais notáveis, pois não apenas desenvolve todas as grandes cenas em ambientes hermeticamente trancados, como utiliza o que estiver à disposição no próprio espaço – portas, tapetes, janelas, macas de enfermaria, cortinas, mesas, latas de RedBull. Mad Detective, por outro lado, tem um dos mais belos plongées da carreira de To, justamente o plano final, em que assistimos ao protagonista, num galpão, realizar um autêntico quebra-cabeças no troca-troca de armas – um quebra-cabeças só compreensível pelo personagem, mas uma maravilha de ser testemunhado pelo espectador.

Mesmo quando a ação se obriga a ser num local externo, como é no fim de Triangle, To dá um jeito: a sequência (dirigida por ele, dentro do trabalho dividido no qual se constitui o filme) é toda num milharal de altas folhagens, onde é impossível enxergar para além do próprio nariz – o que permite, por exemplo, alguém poder engatinhar e entregar uma arma a outra pessoa sem que o inimigo, posicionado a poucos metros de distância, consiga perceber a movimentação. Sparrow também tem o clímax em lugar aberto – uma travessia de rua com dezenas de pessoas caminhando –, e novamente To realiza um feito brilhante, ao “fechar” os personagens debaixo de guarda-chuvas e fazê-los se confrontarem dentro dos limites possíveis de se enxergar ou se movimentar devido ao uso da bugiganga. Até a água da chuva, aqui, ganha importância salutar. É desse uso do espaço como aliado da ação – ou, mais que isso, como participante ativo – que a forma dada por Johnnie To em seus filmes a um gênero tão combalido consegue extrapolar a mera categorização.

E essas cenas são todas de um realismo exemplar – um realismo que não quer ser realidade (vide o sangue digital que estoura dos corpos de Exilados), mas, sim, expor na imagem uma forma de ser real através de si mesma, fazendo o espectador acreditar na possibilidade de aqueles homens e mulheres existirem dentro da tela. A representação na tela serve ao filme muito mais do que a realidade serviria aos personagens – e eles, obviamente, são integrantes dessa representação. Com tal liberdade de atuação, Johnnie To faz a selvageria correr solta. Não há tempo para muita estratégia a quem se arrisca a ser cria do cinema de To. Ainda nessa urgência, a montagem é movida a cortes que dão atenção suficiente a cada movimento, a toda a compreensão do fato, ao respiro necessário para que não se atropele a própria beleza daqueles bailados, na maioria das vezes, à base de pólvora (mas também de sopapos, cacetadas, afanações e respingos d’água).

No único filme desta fase do diretor em que há elementos sobrenaturais (Mad Detective), o que conta não é a verossimilhança típica de um mundo dito “normal” (portanto, nossos amigos verossímeis, como diria Hitchcock, não serão atendidos por To). Vale é o uso da ficção no desenvolvimento de um universo moldado para aqueles sujeitos enquadrados pela câmera, a total imersão na movimentação e o extravasamento da lógica como meio de se atingir o sentido e a catarse da cena. Fazer isso com coesão, elegância, beleza, maravilhamento e completo prazer – eis o que torna Johnnie To um grande artista de imagens e sons.

*Publicado na edição 94 da revista "Contracampo"

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Vincenzo Amato e "Sobre a Neblina"

"Hoje não teve carrapatos", comemora Vincenzo Amato, protagonista de "Sobre a Neblina", o primeiro longa de ficção de Paula Gaitán. Num intervalo das filmagens, na sexta-feira passada, o ator italiano, ainda trajando vestes de seu personagem, conversou com o Magazine defronte à cabana de beira de estrada, perto de Cataguases, que serviu de cenário ao filme.

Vincenzo, 45, é conhecido de quem acompanha a produção de seu país. Encabeçou o elenco de "Respiro" (2002) e "Novo Mundo" (2006 - na foto), ambos dirigidos por Emanuele Crialese, um dos mais expressivos nomes do atual cinema italiano. Nos EUA, onde mora, fez outros trabalhos, como "Cadê os Morgan?" (2009).

É a primeira vinda de Vincenzo a Minas Gerais – mas não ao Brasil. "Estive outras três vezes, sempre no Rio de Janeiro", conta. Foi na capital carioca que ele jantou com Paula Gaitán, ocasião na qual ela apresentou ao ator o roteiro de "Sobre a Neblina", há dois anos. "Fiquei encantado com o que li. Já estava querendo filmar na América Latina, e esse projeto surgiu de maneira perfeita. Recusei dois trabalhos na Itália para estar aqui".

Ele não pretende ler o livro de Christiane Tassis enquanto filma. "O que me interessou foi a história daquele roteiro. É ela que vou viver, e acho que seria muito confuso enxergá-la como alguma outra coisa".

O português perfeito de Vincenzo Amato surpreende a qualquer interlocutor. Parece não haver palavra que ele não saiba, e mesmo seu sotaque fica abafado pela fluência na língua. Qual o segredo? "Música", responde, de imediato. "Aprendi português ouvindo cantores brasileiros. Caetano Veloso, por exemplo, é o maestro da minha vida. Ouço o tempo todo".

Igualmente fã de Noel Rosa, Vincenzo é embalado pelas canções do país também durante as criações em sua área de origem, as artes plásticas. Foi para desenvolver técnicas com ferro que ele se mudou para Nova York em 1993. Num puro acaso – saiu para fumar na escadaria do prédio onde morava –, conheceu Crialese, seu vizinho e então jovem cineasta em busca do primeiro projeto.

Perguntado qual o diretor italiano que mais lhe agrada, Vincenzo também é rápido e cita Vittorio De Sica (1901–1974). "É o melhor, não é? Sempre me emociona", assume.

Já animado com a paisagem e as pessoas que têm conhecido em Minas Gerais, Vincenzo se prepara para vir filmar nos arredores de Belo Horizonte. Será um ar novo depois de várias cenas em meio à natureza, incluindo serras, barrancos, lagoas e matagais. Na verdade, a capital mineira será só a base para que ele siga a locais como a serra do Curral, onde há cenas previstas.

A grande preocupação de Vincenzo, porém, é uma só: "Em Belo Horizonte tem carrapatos?". Ao ouvir um "não", ele fica aliviado.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 26.8.2011

"Sobre a Neblina": no set com Paula Gaitán

No pequeno distrito de Aracati, a 23 Km de Cataguases (por sua vez, distante 305 Km de Belo Horizonte), uma equipe de filmagem ocupa uma pequena casa à beira da ainda ativa linha férrea. O trem passa três a quatro vezes ao dia. Numa de suas idas e vindas, o veículo foi filmado pela equipe. "Ficou um plano muito lindo", diz alguém à cineasta Paula Gaitán.

É ela a coordenadora de tudo ali, no set de seu primeiro longa-metragem de ficção, "Sobre a Neblina". O Magazine acompanhou com exclusividade um dia de trabalho de Paula e companhia, na última sexta-feira. Todos estão na região de Cataguases desde o dia 12 de agosto e seguem por lá até 3 de setembro, quando virão a Belo Horizonte para fazerem cenas na serra do Curral.

"Sobre a Neblina" será totalmente filmado em Minas Gerais, com apoio da Energisa. O longa adapta o primeiro romance da escritora Christiane Tassis, natural de Governador Valadares. Tassis lançou o livro em 2006, após ganhar a Bolsa Flip de Criação Literária.

"Sempre achei o livro muito cinematográfico", conta Paula Gaitán, experiente em documentários. "A leitura de ‘Sobre a Neblina’ me deflagrou algo que é diferente dele mesmo".

Essa deflagração a qual alude a diretora foi o estopim para ela assumir que precisava se afastar da adaptação pura e simples da narrativa de Tassis e mergulhar em caminhos artísticos próprios. "O argumento foi uma inspiração, a partir de personagens exilados de seu próprio espaço. A neblina é a representação desse exílio", reflete Paula.

O livro conta a história de Henrique, fotógrafo doente e prestes a perder a memória. Na ânsia por não se deixar desaparecer pelo esquecimento, ele pede a uma jornalista (e ex-amante) que escreva sua biografia a partir de conversas com quatro mulheres com quem ele se relacionou no passado.

Com equipe reduzida (aproximadamente 30 pessoas) e orçamento igualmente mínimo de R$ 500 mil, Paula Gaitán tem levado a experiência de filmes miuras para um projeto que lhe demanda outros tipos de atenção - como lidar com atores, maquiadores e figurinistas. Mesmo assim, ela não vê tantas diferenças na sua forma de enxergar o que está criando.

"Eu já fazia ficção, como ‘Diário de Sintra’, mas insistem em chamar de documentário. Então muda pouca coisa", desabafa. E brinca: "Na verdade, me sinto mais confortável, sou paparicada de todos os lados e consigo almoçar na hora certa!".

Paula se cercou de profissionais de sua estima para realizar "Sobre a Neblina". Nascida em Paris em 1952 e radicada na América Latina (filha de um colombiano com uma brasileira, cresceu e fez carreira circulando no continente), ela sabe como reunir uma equipe "interglobal". O protagonista, Vincenzo Amato, é italiano (veja na página 2); o diretor de fotografia, Inti Briones, nasceu no Peru e se radicou no Chile, onde fez vários projetos com o recém-falecido Raúl Ruiz; e o produtor do filme, Eryk Rocha, é filho de Paula com o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) e igualmente um apaixonado pela América Latina e pela mistura de povos e culturas.

Além disso, Paula segue fazendo filmes de forte feminilidade - como eram "Diário de Sintra", "Vida" e "Agreste" - e conta com diversas atrizes no elenco de "Sobre a Neblina", entre elas Simone Spoladore, Bel Garcia e Clara Choveaux.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 26.8.2011

**Na foto, de Igor Pontini, está a atriz Clara Choveaux

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

30 depois de Glauber - parte 3: Ruy Gardnier

Entrevista com Ruy Gardnier, crítico de cinema e pesquisador do Tempo Glauber.

O que ficou ou permanece da passagem de Glauber pela cultura brasileira?
Do ponto de vista da cultura dominante, não permanece basicamente nada. Ideologicamente vivemos uma cultura do consenso, e Glauber Rocha vivia pela controvérsia e confrontação. Vivemos um período racionalista (apesar dos obscurantismos religiosos), e Glauber vivia em estado profético, delirante. No mundo do cinema, também não poderia estar mais longe. A estratégia estatal corrente de dar dinheiro majoritariamente para projetos grandes, com tramas vulgares e linguagem subtelevisiva, certamente lhe daria nojo. Ele acreditava na força do cinema e da arte em geral para friccionar a sensibilidade do espectador através de experiências audiovisuais que ultrapassam as percepções cotidianas.

Qual foi a importância de Glauber para o momento histórico no qual ele atuou?
Ele foi fundamental como cineasta, como ideólogo de cinema, de cultura brasileira e de política. Suas ostensivas ações na imprensa, como articulista ou entrevistado, sempre com declarações bombásticas, o situavam como um pensador original, que não se aliava nem às posições reinantes da esquerda comunista ou ex-comunista nem tampouco às posições da direita. Foi sua ação como ideólogo do Cinema Novo que impulsionou os intelectuais brasileiros a discutir nosso cinema a sério. Como cineasta, Glauber Rocha segue sendo o mais importante que o Brasil já teve. Ele foi o primeiro intelectual brasileiro a apostar na abertura (em vocabulário da época, "distensão") política vinda a partir da presidência de Ernesto Geisel e criou, com suas inserções no programa "Abertura", um verdadeiro fórum para discutir catarticamente sobre cultura e política no Brasil, algo sem par até hoje.

É possível "separar" a obra de Glauber em fases?
É possível perceber uma incrível consistência na trajetória de Glauber, que muda a partir de certas coordenadas, mas sempre baseadas num mesmo tipo de premissa ou clareza de pensamento. Igualmente fascinado por Jorge Amado e pelo formalismo cinematográfico, Glauber desde cedo teve algo de catártico, de operístico, de grandioso em seu estilo e, ao mesmo tempo, acreditava nas experiências de linguagem de modo a friccionar a percepção de seus espectadores. Essa primeira parte era o que consistia o "épico", e a segunda o "didático" do modelo "épico-didático" que ele tanto admirava em Brecht. Mas claramente existe uma intensificação, ou um radicalismo, a partir de 1969.

Seria possível imaginarmos Glauber Rocha no cinema brasileiro de hoje?
Não. Mesmo os grandes cineastas contemporâneos que poderíamos longinquamente associar são bastante civilizados. Glauber tinha um componente de selvageria, de violência da linguagem, que inexiste no cinema de hoje. Mas, também, os tempos são outros.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011

30 anos depois de Glauber - parte 2: Eduardo Escorel

Dos filmes que tornaram Glauber Rocha um nome internacionalmente conhecido, "Terra em Transe" e "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (ambos premiados no Festival de Cannes, com troféu de júri da crítica e melhor direção, respectivamente) foram feitos no Brasil; "O Leão de Sete Cabeças", na África; e "Cabeças Cortadas" (1970), na Espanha.

Todos os quatro filmes - cuja evolução de um a outro marca uma ruptura dentro da obra de Glauber - foram montados por Eduardo Escorel. Aos 66 anos, o paulista radicado no Rio de Janeiro é um dos nomes mais importantes em atividade no audiovisual do país. Ele teve um breve primeiro contato com Glauber em 1962, quando o diretor já havia feito seu primeiro longa na Bahia, "Barravento". Escorel tinha 17 anos e fazia um curso de cinema.

Tempos depois, ambos firmaram a bem-sucedida parceria. "Voltei a me relacionar com ele, já profissionalmente, em janeiro de 1966, quando fui ao Maranhão fazer o som direto do curta ‘Maranhão 66’, que ele dirigiu", relembra Escorel, que tinha acabado de montar "O Padre e a Moça" (1965), seu primeiro trabalho em ficção, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.

Provavelmente devido a isso (Glauber admirava o filme de Joaquim), Escorel foi convidado a participar de "Terra em Transe". O período de Escorel e Glauber juntos foi relativamente curto: quatro filmes em três anos. "O Leão de Sete Cabeças" foi montado em Roma (Itália); "Cabeças Cortadas", em Barcelona (Espanha).

Escorel lembra que o processo de montagem de "Terra em Transe", ao longo de seis meses na ilha de edição, foi distinto dos demais, tanto na presença mais maciça de Glauber quanto na maneira de o cineasta organizar o filme. "Havia um campo aberto para experimentar, fazer tentativas e traçar caminhos. O Glauber sempre queria inventar alguma coisa. O roteiro era um filme, a filmagem se tornava outro filme e a montagem criava um terceiro, bem diferente".

Para o montador, algo que fazia de Glauber um artista era a insatisfação e a recusa com as formas narrativas convencionais. "Ele estava sempre buscando algo que fosse transgressivo e contra os padrões".

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011

30 anos depois de Glauber - parte 1


"O Terceiro Mundo está de luto". Assim iniciava um dos artigos mais viscerais já publicados na imprensa brasileira. Era 24 de agosto de 1981, e Rogério Sganzerla assinava na "Folha de S.Paulo" o texto "Necrológio de um Gênio", emocionado obituário de Glauber Rocha, morto dois dias antes, aos 42 anos. Amanhã completam-se 30 anos desde o falecimento do cineasta. E o Terceiro Mundo continua de luto.

A lacuna de Glauber jamais foi preenchida. Na verdade, a se considerar o impacto de sua obra e a constante rememoração de seus trabalhos, ele nunca precisou de um substituto. Como diz Joel Pizzini, que trabalhou na restauração de vários filmes do diretor, "não foram 30 anos sem Glauber. Foram 30 anos depois de Glauber".

A imagem icônica do baiano nascido em 1939 no município de Vitória da Conquista nunca foi despregada do olhar e sensibilidade de centenas de brasileiros. Glauber não foi só o realizador de trabalhos fundamentais como "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e "Terra em Transe" (1967). Foi também um agitador cultural dos mais ativos. Controverso, falastrão, excessivo, genial e genioso - ou, novamente por Sganzerla, "concertista-mor, artífice de brilhantes obras cinematográficas, arranjador, encenador e coreógrafo do estranho balé do subdesenvolvimento". Em 1975, o ensaísta Paulo Emílio Sales Gomes vaticinou: "Glauber Rocha é profeta alado. Ele é uma de nossas forças, e nós, Brasil, a sua fragilidade".

"Glauber trabalhou com os mitos fundadores da nossa cultura, da nossa identidade e do poder", define o cineasta Joel Pizzini. "Seus filmes continuam na ordem do dia, pois o cinema dele aborda questões que ainda não foram digeridas, atravessando vários registros num diálogo contínuo com todas as outras artes".

Para o crítico e pesquisador Ruy Gardnier - que trabalhou como arquivista no Tempo Glauber (leia mais no quadro abaixo) -, a pecha de artista de difícil entendimento (que insiste em permanecer em muitos círculos quando se sequer se pronuncia o nome de Glauber Rocha) aconteceu de repente, de 1970 em diante, a partir do lançamento de "O Leão de Sete Cabeças".

"De um ano para outro, ele perde o status de um dos cineastas mais badalados do jovem cinema de autor contestador (junto com Jean-Luc Godard e Pier Paolo Pasolini, entre outros) e se transforma num diretor de ‘linguagem difícil, árida’, que é como o considerarão, a partir daí, os admiradores de seus filmes dos anos 60", comenta Gardnier. "Era uma tendência, mas a regressão foi brutal. Glauber se radicalizou e o público encaretou".

A efeméride pela partida de Glauber Rocha há três décadas será celebrada amanhã à tarde no plenário do Senado Federal, a pedido da senadora Lídice da Mata (PSB-BA). A mãe do cineasta, dona Lúcia Rocha, 92, confirmou presença. Em outra homenagem pública, a TV Senado vem exibindo, desde o último dia 7, vários longas-metragens de Glauber, sempre aos domingos, às 21h. Hoje é a vez de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Na semana que vem, passa "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969).

Acervo está com a Cinemateca Brasileira
Na última semana, o Tempo Glauber passou por um sufoco. Devido a um erro burocrático, a Secretaria do Audiovisual (SAV) cancelou o convênio firmado para manter a instituição em funcionamento.

Somente na quinta-feira a situação de alarme teve um respiro, quando Paloma Rocha, 51, primogênita de Glauber, recebeu novas informações do Ministério da Cultura. "Temos garantia de manutenção para pelo menos até dezembro. Depois, ainda é incerto", disse ela, que precisou demitir funcionários por conta da confusão da SAV.

O Tempo Glauber é o principal espaço a preservar e difundir tudo relacionado ao cineasta baiano. Localizado no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, foi fundado em 1989, depois de árdua batalha de seis anos da mãe de Glauber, dona Lúcia Rocha, no intuito de manter a memória do filho e abrir seus arquivos a quem se interessasse.

Recentemente, a Cinemateca Brasileira comprou boa parte do material do Tempo Glauber, incluindo os filmes e mais 22 mil documentos, entre roteiros, peças, romances e anotações. "É uma maneira de dar sobrevida aos originais e ampliar a difusão, numa data importante como a de agora", diz Paloma. "A memória de meu pai está garantida e tenho o sentimento de dever cumprido".

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 21.8.2011

"Lola", de Brillante Mendoza

Por nunca ter estreado antes no circuito brasileiro, o cinema do filipino Brillante Mendoza é pouco conhecido no país. Uma pena, visto ser não apenas um cineasta de forte expressividade, mas também porque o universo abordado por ele tem muitas semelhanças com a realidade brasileira. "Kinatay" (2009), premiado em Cannes, poderia perfeitamente ser ambientado em alguma metrópole brasileira, se os realizadores daqui bancassem uma produção tão brutal.

Mas é de "Lola" que cá estamos a falar. Exibido em 2010 no Festival de Veneza, trata-se do mais recente filme de Mendoza, e talvez o mais doce. A família, centro nervoso de "Serbis" (2008), ganha novos contornos, desta vez sob o olhar vivido e sofrido de duas senhoras que parecem sobreviventes de uma Manila sempre sob chuva, violência e incerteza.

Uma delas é avó de um rapaz morto a facadas nas ruas da cidade; a outra tem o mesmo laço sanguíneo justamente com o assassino do garoto. Serão caminhos cruzados pela tragédia e pelo acaso, atados por circunstâncias econômicas e sociais que fazem com que a dor das duas, apesar das diferenças de situação (uma está em luto; a outra, em vigília), aproxime-se de desesperos muito parecidos.

Um dos encantamentos de "Lola", mesmo diante de momentos tão tristes e imagens tão doídas, é a interpretação das atrizes Anita Linda e Rustica Carpio. Ambas são as "lolas" (termo usado nas Filipinas como tratamento a senhoras de terceira idade, equivalente a "vovó"), que servem de catalisador para Mendoza retratar um mundo palpável e cheio de arestas e nuances difíceis de definir. A linguagem beira o documental, sem nunca deixar de ser ficção, encenação, criação de realidade. Será da transparência do procedimento que emergirá a verdade vinda da tela, como se aquilo tudo estivesse acontecendo no exato instante em que assistimos ao filme.

Mendoza é desses cineastas que utilizam o máximo de artifícios cênicos para dar a ilusão de que nenhum artifício foi utilizado. É a forma de nos fazer mergulhar numa narrativa de complexidade puramente humana, na qual tomamos contato com figuras que não conhecemos nem nunca vimos antes, mas, de repente, percebemos o quanto nos importamos com elas.

Daí vêm cenas pequenas e muito significativas, como a fotografia de olhos fechados, as conversas na prisão, o velório do neto numa cerimônia em cima de botes e a conversa definitiva, que dará o desenlace de um conflito aparentemente banal e, tanto por isso, profundamente relevante dentro de um contexto muito maior.

Sem a busca pelo choque que marcou "Tirador" (2007), "Serbis" e "Kinatay", Brillante Mendoza não deixa de lado a brutalidade, desta vez inserindo-a menos nas imagens do que no contexto, menos nos recursos audiovisuais do que na face enrugada de duas idosas ainda à deriva no mundo.

*Publicado no jornal "O Tempo" no dia 22.8.2011

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

"Giallo", de Dario Argento

Profondo giallo
Filme mais recente de Dario Argento, Giallo (2009) reconfigura para o século XXI o estilo de suspense típico do cinema da Itália nos anos 70

No italiano, a palavra “giallo” significa “amarelo”. Livrinhos de bolso contendo histórias de crime e mistério eram apelidados de “giallos”, por conta das capinhas amarelas que os caracterizavam e facilitavam serem reconhecidos nas bancas italianas onde foram vendidos por muitos anos. E, a partir dos anos 70, “giallo” passou a definir um subgênero do filme policial popular italiano que se desenvolvia sob as “regras” das tramas narradas nos tais livrinhos: assassinos misteriosos, vítimas desesperadas, investigadores tentando desvendar o enigma, sexo, mortes múltiplas e bastante violência. Mario Bava foi um dos precursores dessa linhagem (1). Dario Argento fez o subgênero se firmar e se expandir para além das fronteiras do país.

É das lentes de Argento – com 69 anos e insistentemente ativo – que nasceu uma quarta acepção para “giallo”. Não poderia ser de forma menos sutil: o filme mais recente do diretor, lançado nos cinemas em 2009 (e apenas em DVD no Brasil(2)), tem justamente como título “Giallo” [por aqui, ainda recebeu o desnecessário adendo “Reféns do Medo”]. Pela escolha do nome do projeto e pelos instigantes cartazes apresentados durante a divulgação (um deles mostrava cinco enormes facas, sendo quatro em tom amarelo e uma, no meio das outras, de cor vermelha com gotas de sangue), a impressão era de que Argento estava voltando ao estilo que o consagrou – especialmente por O Pássaro das Plumas de Cristal (1971), Prelúdio para Matar (1975) e Tenebre (1982) – e o qual ele não visitava desde 2004, quando lançou o pouco compreendido O Jogador Misterioso.

Transcorridos alguns minutos de Giallo, percebe-se que o interesse de Argento não é exatamente revisitar o que fez em épocas passadas. Há diversos detalhes que negam o essencial: as mãos do assassino não têm as famosas luvas pretas; as vítimas não são mortas no local onde foram capturadas, sendo torturadas num esconderijo; a identidade do culpado é revelada com menos da metade da duração do longa. O próprio encaminhamento narrativo permite sentir o descarte do cineasta para com o tradicional “giallo”. Há, é certo, cenas e imagens que nos remetem àquele imaginário, como as armas perfurantes (facas e agulhas), os enquadramentos e travellings rigorosos e mesmo alguns instantes decalcados de outros filmes de Argento (a garota que sai atabalhoadamente na chuva, atrás de um táxi, lembra momento similar nos primeiros minutos de Suspiria, filme de 1977). Afinal, o que faz Argento em Giallo?

O suspense criado ao longo do filme é, ao mesmo tempo, a subversão da expectativa em torno do mito de Argento e uma sofisticada, e também grosseira, ironia do cineasta consigo mesmo e com o que ele tão bem fez em outros tempos. A grosseria, aqui, não tem conotação negativa. Um especialista em horror como Argento tem seus arroubos de grande esteta do mesmo jeito como é igualmente capaz de colocar em cena o vilão do filme se masturbando, de chupeta infantil na boca, enquanto assiste a fotos de suas vítimas com o rosto dilacerado.

A face e a beleza são as chaves para a compreensão e impacto de Giallo. Nos primeiros minutos de filme, um desfile de moda em Milão é contraposto a uma garota amordaçada e machucada num lugar fétido. Argento contrasta a noção sempre moderna do belo (moças bem vestidas e magras em cima de uma passarela) à feiura de um mundo sob o jugo constante da violência. Tanto no tema quanto na forma, Giallo será todo pautado pela noção do que seja bonito e feio. “Ele odeia coisas bonitas”, sussurra Enzo Avolfi, o detetive interpretado por Adrien Brody, referindo-se ao assassino serial que sequestra e mata belas estrangeiras de passagem pela Itália.

Não deixa de ser uma das várias ironias de Dario Argento. Durante muito tempo, ele foi apontado como um diretor misógino, devido à “preferência” em matar mulheres nos filmes, das formas mais variadas e cruéis. Em entrevistas, negou a acusação, afirmando que as mulheres (e sua beleza natural) são, na verdade, o combustível da criatividade. Em Giallo, Argento cria um matador que se move pela raiva ao belo: ele leva garotas ao covil e as “enfeia” antes de desovar os corpos. O cineasta, assim, assume uma carapuça que sempre refutou, dando ao espectador a figura assumidamente misógina de um criminoso perturbado.

Este matador é, por si só, essencial na concepção de Giallo. Chamado Flavio Volpe, o personagem sofre de uma doença hepática que dá um tom amarelado à sua pele, gerando o trauma de, desde criança, ser considerado feio e “amarelo” pelos colegas de escola. Ora, a referência é absolutamente explícita: num filme de nome Giallo, dirigido por um cineasta notabilizado pelo subgênero homônimo, o artífice da violência em cena é, ele mesmo, “giallo” [amarelo]. Trata-se de uma justificativa fantasiosamente científica para tornar o antagonista a encarnação física de uma forma de cinema. Argento consegue, sem criar “ruídos” estéticos ou narrativos, fazer metalinguagem com sutil eficácia. Por essa chave, subverte a própria trajetória sem, por isso, deixar de falar de si mesmo e dos filmes que realizou. Como acontece em relação aos melhores momentos da obra de Quentin Tarantino (vide o sublime Bastardos Inglórios), não é essencial conhecer a fundo os caminhos anteriores de Dario Argento para a fruição do filme. Sabê-los, porém, torna a experiência não apenas mais interessante, mas especialmente estimulante.

Um outro elemento de contraposição em Giallo é Avolfi, o investigador encarregado de achar o assassino. Na sua primeira aparição, ele está numa sala com paredes cobertas por fotografias de mulheres brutalmente assassinadas. Enquanto olha o espaço, Avolfi aperta uma bolinha, certamente para espantar a tensão. Eis a essência do personagem: um homem angustiado cercado pelo horror do sangue das vítimas do criminoso e pela impossibilidade de capturá-lo. O detetive é uma criação fundamentalmente de cinema: não tem vida para além do serviço e possui um passado traumatizante narrado em flashback via imagens de tons fotográficos perturbadoramente amarelos [de novo] e cujo estopim é uma faca de açougueiro guardada na gaveta do escritório.

A evidência do quanto Argento faz de Avolfi um ser moldado única e exclusivamente para estar no filme – e nunca a serviço de algum discurso exterior à imagem – é que o trauma da juventude e a existência da faca na gaveta não propriamente servem ao enredo de Giallo. Então, para que mostrá-los? Porque Argento acredita na vivacidade de Avolfi, na necessidade dele existir enquanto representação imagética possuidora de temperamento, visão, inteligência e um passado – mas não necessariamente um futuro, já que o filme vai acabar em algum momento e, junto disso, esvai-se esse personagem.

O procedimento de dar a Avolfi uma existência que serve menos à narração do que à organicidade de um universo puramente imagético e sonoro denota um dos elementos mais encantadores em todo o cinema de Dario Argento, e o qual Giallo resgata com brilhantismo: a crença total e irrestrita no poder da ficção. Por mais que tangencialmente reflita sobre a violência, a moda e os padrões de beleza, Argento não mergulha nesses temas com tanta voracidade como o faz na forma de colocá-los em cena. Ao diretor, interessa criar uma atmosfera de tensão a cada novo desdobramento do enredo, mesmo que tal enredo abuse dos tropeços e barrigas narrativas.

Basta pensar em como Giallo, mesmo subvertendo determinados elementos do suspense de serial killer e do próprio subgênero “giallo”, rende-se a alguns clichês vagabundos. Os mais gritantes são a tradicionalíssima perseguição (frustrada) do policial atrás do assassino, a pé; e uma montagem paralela que insinua um encontro entre os dois para, logo em seguida, revelar que ambos estão em espaços distintos e distantes [recurso muito bem trabalhado, por exemplo, no clímax de O Silêncio dos Inocentes]. Ainda assim, a construção das cenas, em todo o cuidado com o espaço como elemento constituinte do suspense, não parece um clichê puro e simples. Está mais para uma visita à tradição do filme policial como um gênero específico. Para se inserir e bagunçar essa tradição, é preciso deixar claro o fato de estar dentro dela. A diferença de Argento para outros cineastas que tentariam o mesmo tipo de “estratégia” é que o italiano não tem a menor vergonha de parecer ridículo ou retrógrado, pois tem consciência suficiente de até onde pode ir e conta com a cumplicidade do público em mergulhar junto dele num verdadeiro lamaçal de procedimentos levados à exaustão em mais de um século de história do cinema.

O desfecho de Giallo é também uma piscadela para a provocação. Flavio Volpe escondeu uma garota e pressiona a irmã da moça, Linda (Emmanuelle Seigner), a ajudá-lo a fugir do país. Avolfi segue atrás de Volpe e o encurrala. O criminoso despenca para a morte sem revelar o paradeiro da vítima. Tem-se uma primeira quebra: Avolfi e Linda discutem, ela chama o detetive de assassino e o compara ao vilão recém-falecido. “Você é igual a ele”, vocifera(3). Transtornado, ele sai andando de frente à câmera. Num longo plano frontal, a tela lentamente escurece, a trilha sonora vai num crescendo e, de repente, para, junto com o negro que toma a imagem. Poderia ser o fim (e vamos admitir: seria um final perfeito). Só que Argento insere um epílogo, no qual revela o destino da moça.

A imagem definitiva do filme, congelada durante os créditos, lembra alguns dos finais mais impactantes do cineasta, como os de Prelúdio para Matar e Tenebre. A essência é a mesma: o mal foi desfeito e a esperança renasceu, mas a dor e a violência (sempre representadas pela presença do sangue, de um vermelho profundo(4)) são dados onipresentes, dos quais ninguém consegue escapar, mesmo numa conclusão aparentemente bem resolvida.

Talvez a pouca inventividade visual mostrada aqui por Argento – se o parâmetro de comparação for a obra pregressa do italiano, cheia de instantes inesquecíveis, muitos deles geniais – possa ser prejudicial à boa fruição de Giallo. A péssima recepção ao anterior O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007) pode ter ajudado num possível desânimo com o que viria a seguir. Não raras vezes, desde quando começou a ser visto, Giallo tem sido taxado de “burocrático”, palavra meio maldita no universo das artes, por conotar falta de esmero e paixão durante o ato de criação e realização do trabalho em questão.

Seria injusto, porém, não se deter mais calmamente no que Argento nos oferece. Giallo extrai vida e prazer das quebras de expectativas, do excesso de pretensões e dos aparentes empurrões que vai dando no espectador. É um filme, à sua maneira, torto e manco, e tira das imperfeições a força de um cinema autêntico e preocupado com a potencialidade de uma imagem e de um corte de montagem. Numa contemporaneidade cinematográfica na qual o público parece vibrar mais com supostas espertezas de roteiro (Charlie Kaufman, Zach Braff, Diablo Cody, Guillermo Arriaga, Paul Haggis, Christophe Honoré) do que com o brilhantismo possível de ser atingido na mais límpida e aparente simplicidade (James Gray e Amantes, Clint Eastwood e Gran Torino, Alain Resnais e Medos Privados em Lugares Públicos, Paul Verhoeven e A Espiã, Olivier Assayas e Horas de Verão), contarmos com um cineasta como Dario Argento, ainda capaz de nos provocar dessa forma, de nos fazer vibrar por sua paixão em empunhar a câmera e de transmitir, mesmo que por vezes aos solavancos, a empolgação de narrar visualmente – tudo isso é um grande privilégio.

NOTAS

  1. Mario Bava (1914-1980) foi autor de uma filmografia fundamental na Itália e realizou alguns excepcionais exemplares do “giallo”, entre eles Seis Mulheres para o Assassino (1964) e Banho de Sangue (1971).

  2. A Califórnia Filmes, distribuidora de Giallo no Brasil, aparentemente no intuito de evitar pirataria, a empresa relegou o filme apenas às locadoras do país. Tiveram o mesmo destino os dois projetos anteriores do cineasta exibidos por aqui. O Jogador Misterioso (2004) saiu só em DVD pela Fox, e O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (2007) ganhou exclusiva edição digital da Swen.

  3. A frase de Linda tem um segundo sentido de provocação. Em Giallo, o ator Adrien Brody interpreta não apenas o investigador Enzo, mas também o próprio “assassino amarelo”, usando pesada maquiagem e sob o pseudônimo Byron Deirdra (anagrama de seu nome verdadeiro). Brody é ainda produtor executivo do filme.

  4. Prelúdio para Matar, considerado por muitos como a obra-prima de Argento (ou, no mínimo, o mais perfeito de todos os “giallos” italianos) é originalmente intitulado Profondo Rosso – em português, “vermelho profundo”. O sangue de fortíssima coloração, quase escarlate, é característico do subgênero.

    *Publicado na revista "Teorema" em dezembro de 2009