sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

"Suspiria" (Luca Guadagnino, 2018)

Valsa de corpo a corpo
Em polêmico remake do clássico de Dario Argento, o italiano Luca Guadagnino faz em Suspiria um horror austero e chocante, sustentado pelo olhar duro de Dakota Johnson e pela estética de um pesadelo com membros retorcidos

Vamos começar pelo elefante na sala: o Suspiria de Luca Guadagnino é a refilmagem de uma das maiores peças artísticas do século 20. Dirigido por Dario Argento e escrito em parceria com a atriz Daria Nicolodi, Suspiria chegou aos cinemas em 1977 depois do sucesso do giallo Prelúdio Para Matar (Profondo Rosso, 1975) e de uma série de outros filmes policiais do cineasta italiano. Apesar de sempre trafegar pelo gênero do suspense e do terror, Suspiria foi de fato a primeira grande incursão de Argento no horror propriamente dito, num enredo de bruxaria, ritos satânicos, casas assombradas, vermes caindo do teto e pesadelos transformados em imagens e sons. A trajetória da jovem bailarina Susie Bannion (Jessica Harper) indo estudar numa conceituada escola alemã e descobrindo o culto milenar de três bruxas-mães era só ponto de partida a um trabalho de abstração de formas e cores como nunca se vira daquela forma.

O referencial básico de Argento era o cinema delirante de Mario Bava, mas a câmera rocambolesca e a fotografia de Luciano Tovoli – praticamente coautor do filme, pela utilização de técnicas de sobreposição de películas e excesso de tons vermelho, azul e amarelo nas luzes – faziam de Suspiria um gigantesco passo rumo a um cinema de esfacelamento narrativo e de grandiosidade sensorial e afetiva. Não é que o espectador precisasse compreender os acontecimentos, e sim senti-los, absorvê-los, aceitar o convite de bailar junto com Susie pelas profundezas de seus medos e pesadelos, na sua fábula de amadurecimento e violência cujo deslumbre estava na geometria dos espaços e dos planos e nos mistérios de nunca se saber exatamente o que havia no fim do corredor. Entre Luis Buñuel e David Lynch, Argento fez de Suspiria o registro fílmico de uma noite maldormida. [Escrevi mais detidamente sobre o filme aqui.]

Comparar um Suspiria ao outro, além de improdutivo, seria lidar com duas medidas completamente diferentes. Luca Guadagnino circula com seu projeto de refilmagem desde 2007, quando adquiriu os direitos de refazer o original diretamente com Argento e Nicolodi. Dez anos (e o sucesso de Me Chame pelo Seu Nome) depois, o italiano estreou a sua versão no Festival de Veneza em setembro de 2018 e mostrou o consciente afastamento do que Argento fizera em 1977. O Suspiria de Guadagnino é como se um negativo ao de Argento (não uma negação, que fique claro). Sem deixar de ser tributário ao mesmo tempo em que não se permite ser refém do original, Guadagnino fez um filme estritamente seu, sem temer comparações e questionamentos. Se é para emular uma obra de arte, que se se afaste dela para, com isso, se aproximar.

Em certa medida, funcionou: Dario Argento criticou o filme por, segundo ele, “trair o espírito do original”. A declaração indica o pressuposto de que exista um “espírito” criativo a que Guadagnino deveria preservar e respeitar e ao qual deveria ser fiel. Tal percepção denota idealização um tanto cafona do cinema enquanto criação e tende a soar absolutista, no sentido de impor ao artista um limite de “respeito” a determinada aura que não pode ser ultrapassado, sob risco de traição e incapacidade. Que um gênio como Dario Argento nos permita discordar de sua premissa. Ela está errada, pelo simples fato de que o Suspiria de Guadagnino não precisava se comprometer a “respeitar” o que quer que fosse dentro de seu senso criativo. Se há um espírito a ser preservado, é o de si próprio. O novo Suspiria opta por se desgarrar do irmão mais velho – que sempre estará lá, no pedestal de um dos mais impressionantes filmes do mundo – e caminha solitário por vielas desconhecidas e arriscadas.

Ambientado no ano de 1977 (não é coincidência), Suspiria insinua, logo nas primeiras cenas, que vai tratar de uma história de bruxaria. A rápida participação de Chlöe Grace Moretz como a dançarina desgarrada que se confessa ao psicanalista estabelece a base da ação: ambiguidade, contradição, mistério. Por muito tempo, ao longo dos 150 minutos de duração de filme, o espectador fica alheio ao que realmente acontece no submundo da escola de dança alemã para onde vai a protagonista Susie Bannion (agora vivida por Dakota Johnson). Dessaturada e acinzentada, a fotografia de Sayombhu Mukdeeprom esconde quaisquer possíveis atrativos visuais que o ambiente pudesse oferecer. Trafegando pelas ruas e por dentro da escola, a câmera faz da sobriedade de registro o passo inicial para as distorções narrativas que logo vai expor. Porque Suspiria ainda permanece um pesadelo, seguindo lógicas próprias e convidando o espectador a adentrar no imaginário de mitos europeus que reconfiguram a noção de conto de fadas que era forte no roteiro original.

Thom Yorke canta na música-tema: “This is a waltz thinking about our bodies/ What they mean for our salvation” (esta é uma valsa pensando nos nossos corpos/ o que eles significam para nossa salvação). O verso é carta de intenções de Suspiria. São corpos os protagonistas do filme, ou mais que isso: a deterioração dos corpos. O desencadeamento dos conflitos se dá pela morte iminente de uma das bruxas, cujo corpo envelhecido é agora apenas uma massa de pele sobreposta, como se derretida. Acredita-se que ela seja a encarnação da mítica Mãe Suspiriorum, espécie de deusa protetora que de tempos em tempos reaparece. É preciso que um receptáculo se faça disponível para a chegada de Suspiriorum. Susie é a escolhida, aquela cuja dança ativa as potencialidades do ritual de transferência. A força dessa dança – desse corpo que existe para se tornar outro – aparece na primeira grande cena de Suspiria: enquanto Susie faz uma audição diante de Madame Blanc ((Tilda Swinton), a enigmática diretora da escola, seus movimentos afetam diretamente a estudante Olga (Elena Fokina), castigada por gritar contra as atividades ocultas do lugar, que teriam provocado o desaparecimento de Patricia (Chlöe Grace Moretz). O triunfo de Susie é o castigo de Olga, a aflição e plasticidade dos movimentos resfolegantes da primeira resulta na torção e retorção da segunda. Suspiria se apresenta sem sutileza pela primeira vez: para um corpo eternizar a beleza, é preciso que outro desapareça na feiura.

Não se trata do “body horror” eternizado pelo cinema de David Cronenberg, nem das chagas e castigos contra a pele vistos nos gialli que são base do primeiro Suspiria. O filme de Guadagnino se aproxima mais da abstração da violência e do não-visto de O Inquilino (Roman Polanski, 1976) ou de Possessão (Andrzej Żuławski, 1981), com protagonistas convidados a adentrar mundos estranhos e ambíguos, nos quais caminhos labirínticos levam a encontros consigo mesmos e com seus próprios fantasmas. A fantasmagoria do eu se projeta no outro, num choque à distância que logo se revela, de fato, dentro de quem olha. Nestes filmes, o corpo é passagem à abstração; sua destruição no contato com o sobrenatural se dá na transição para um suposto superior construído pelos arquitetos da metamorfose.

No caso de Suspiria, a transfiguração se encaminha para uma coisa e se torna outra – ou seja, Susie se transfigura duplamente. O embate entre ela e Madame Blanc, tão competitivo quanto sexual, desvia a atenção para a verdade: o corpo a ser ocupado por uma entidade mítica já está ocupado pela própria Suspiriorum. Novamente como no cinema de Polanski, o “eterno retorno” nietzschiano faz com que o ponto de partida seja, desde sempre, o ponto de chegada. O corpo de Susie, escolhido pelas bruxas para receber o espírito de uma das Três Mães, já estava ele mesmo dominado por ela. A revelação, trabalhada ao longo do filme pela forma precisa com que Guadagnino dirige Dakota Johnson e pelo semblante austero da atriz, se dá num espetáculo escarlate de muito sangue e música, em imagens alucinadas de uma ritualística de morte que parece misturar Ingmar Bergman e José Mojica Marins.

Em meio a tudo, Luca Guadagnino e o roteirista David Kajganich contextualizam Suspiria no chamado Outono Alemão, período iniciado em 5 de setembro de 1977 com o sequestro do empresário Hanns Martin Schleyer pelo grupo guerrilheiro RAF (Fração do Exército Vermelho). As desventuras de Susie e das bruxas na escola de dança acontecem em paralelo à tensão que perdurou por 44 dias e terminou com a execução de Schleyer. Outro elemento de teor político inserido no enredo é o psicanalista Josef Klemperer, interpretado por Lutz Ebersdorf, pseudônimo de outra pessoa (cujo nome você vai ter que procurar na internet para saber quem é, caso não saiba). Sobrevivente do Holocausto, ele se envolve no culto das Três Mães para descobrir a verdade sobre uma paciente e acaba por reviver um passado de perda e luto.

Estes “desvios” do filme amplificam seu espectro e retiram-no da alegoria e da sutileza para inseri-lo dentro de um mal-estar profundo que mobilizava o país naquele momento histórico. Os mistérios em torno de Susie, Madame Blanc, Patricia, Olga, a dança e as investigações de Klemperer não se desconectam do noticiário (sempre apresentado tangencialmente, mas nunca desatentamente), e sim refletem ou mesmo ilustram um estado de espírito nacional. A Berlim em polvorosa de Suspiria cabe inteira na escola de dança de Madame Blanc. A entidade que se quer resgatar do mito para trazê-la ao concreto é a utopia de alguma harmonização monocrática (pelo caminho do sangue e do viés totalitário) e de um sentido amplo (e arriscado) de confraternização que o coven de bruxas quer sustentar. As dores da guerra ainda a reverberarem em Klemperer fazem com que ele, próximo do fim da vida, busque alguma redenção pelo olhar de alguém a quem conhece intimamente – e, se salvar pelo menos a memória de Patricia, talvez ele reconfigure a lembrança da esposa assassinada pelos nazistas e também a si mesmo.

A narrativa de Suspiria se divide em seis partes e um epílogo, emulando o tom de conto de fadas que se tinha no filme de Dario Argento, porém usando essa compartimentação de ações para se distanciar emocionalmente do material. O filme se desenvolve num afastamento de sentimentos, na crueza da abordagem, na câmera tão dura e sustentada quanto o olhar de Susie Bannion. Só no epílogo, com parcimônia, surge um instante de lágrima e comoção, não diretamente relacionado à trama central do filme, o que reforça a escolha de Guadagnino por expor o pesadelo muito mais do que tentar compreendê-lo. Esse já era o espírito do Suspiria de Argento e ganha aqui um herdeiro a renegar o pai ao mesmo tempo em que o admira sem pudores. O espírito do Suspiria de Luca Guadagnino é o da inquietação e da perturbação, ou como canta Thom Yorke: “Bathed in lightness, bathed in heat/ All is well, as long as we keep spinning” (Banhado em leveza, banhado em calor/
Tudo está bem, contanto que continuemos girando
).

*Publicado na revista "Teorema"#31 em setembro de 2019