Por diversas vezes ao longo do filme, e desde o primeiríssimo plano, alguns personagens de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios olham frontalmente para a câmera. O porquê disso é o que mais intriga a fruição deste novo trabalho de Beto Brant e Renato Ciasca. É como se, nesses olhares diretos, fosse buscado algum tipo de quebra da ilusão, de provocação da realidade, de sacudida para um fora-do-filme que parece gritar dentro de cada plano em que isso acontece. Faz sentido, portanto, que este seja o trabalho de maior “invasão” do real na carreira da dupla. À maneira de Roberto Rossellini, situações testemunhadas no local da filmagem (Santarém, em Belém do Pará) são incorporadas à narrativa, buscando um tipo de organicidade que se equilibra entre a história que se narra e o escopo e ambiente onde ela se situa.
Em Os Matadores (1997), primeiro longa de Beto Brant, existia um tom de realismo muito forte em toda a articulação daquela trama de traição na fronteira – realismo, este, que vinha menos de levar o “real” à tela e muito mais da maneira naturalista como se buscava representar o enredo. Cão sem Dono, feito dez anos depois, assumia a matiz naturalista em sua estética e na interpretação dos atores, em longos planos de diálogo ou de silêncios que tentavam reproduzir ao máximo uma certa “sensação” de realidade. Curioso perceber que este viera logo depois de Crime Delicado, o trabalho mais delirante de Brant.
Nenhum destes anteriores, porém, tinha não apenas a tal incorporação do ambiente, mas também o discurso sociológico de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Talvez sensibilizados pelo universo onde filmaram (marcado pelo desmatamento desenfreado), talvez já inspirados por elementos do romance de Marçal Aquino no qual o filme se baseia, os diretores se deixam seduzir pelo que se vê fora do roteiro e somam esses elementos ao fio condutor. São desde moradores locais ouvindo o ator Zécarlos Machado numa homilia a crianças acompanhando um espetáculo de circo, incluindo aí o discurso de um indígena em prol da salvação das madeiras amazônicas. Essa estrutura dúbia atinge o ápice num desvio narrativo e visual que o filme faz, em planos panorâmicos ora sobre o rio Amazonas, ora sobre moradores do lugar, tudo trabalhado na pós-produção de maneira a reforçar gritantemente as cores de cada elemento na tela, provocando um efeito de imediato estranhamento por aquilo não estar em absolutamente nenhum outro momento do filme.
A estrutura fragmentária de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios permite, assim, que momentos como este venham e vão com bastante liberdade no filme. Apesar de haver um mínimo de cronologia na narrativa central (o triângulo amoroso envolvendo um fotógrafo, uma ex-drogada e um pastor), os constantes fade-outs nos obrigam a nos rearticularmos a cada nova cena, nem sempre conseguindo nos ajustar no tempo (e, num determinado momento, nem mesmo no espaço, quando se salta para outro lugar e outra época). Essa percepção de transe de viés ritualístico está na chave de recepção do filme, dada desde o já citado plano inicial – uma nativa se exibindo à câmera, numa enigmática movimentação corporal num mangue ao som de batucadas externas nunca identificadas. É um plano que tanto não se relaciona com a narrativa como serve completamente à libertação que Brant e Ciasca tateiam.
Essa libertação tenta ser representada na própria trajetória dos personagens. Lavínia (Camila Pitanga), em especial, está sempre transitando em paroxismos de comportamento que a levam para os braços de algum homem em momentos distintos do filme; o corpo dela é o depositário dos desejos incandescentes que desencadearão os principais acontecimentos. Cauby (Gustavo Machado) se moverá sempre em prol do corpo de Lavínia (incluindo seu olhar de fotógrafo, que desde o início quer registrá-la), num misto de paixão e desejo intensos, também marcado pela ilusão de felicidade. O olhar frontal com o qual o filme se conclui é ao mesmo tempo outra quebra da ilusão imagética (como tanto se persegue em vários momentos) e uma piscada das infinitas possibilidades do que se pode esperar de uma ilusão amorosa. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é um filme de aparências (reais e fictícias), nem sempre muito coeso, mas com uma pulsão que pode nos desafiar à ambição de decifrá-lo.
Cinema, literatura & quadrinhos
Criticas, resenhas, artigos e reportagens de Marcelo Miranda
terça-feira, 25 de outubro de 2011
Mostra 2011: O Garoto da Bicicleta
Se O Silêncio de Lorna (2008) já se apresentava como o filme mais “domesticado” dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, O Garoto da Bicicleta dá mostras de que os realizadores belgas podem ter realmente abdicado da câmera inquieta e movimentada de filmes anteriores seus (Rosetta e O Filho entre eles). O que de mais interessante se desprende dessa percepção é que eles talvez tenham mudado para continuarem os mesmos: apesar da estética mais comportada, seguem as narrativas sobre o “baixo clero” da comunidade europeia. Desta vez, o protagonista é um menino de uns dez anos, cujo pai o deixou indefinidamente num internato. Explosivo, passional e obcecado, este garoto não sossegará um só instante ao longo de quase 90 minutos de projeção – e realmente impressiona o quanto os Dardenne nos permitem estar juntos desse personagem, sofrer com ele, temê-lo, às vezes detestá-lo, outras tantas amá-lo.
Há algo de realmente mágico em como os diretores, em tão pouco tempo, criam um universo com o qual nos sentimos tão intimamente conectados. Os personagens são poucos, as situações são muitas e o cuidado na construção de cada momento da narrativa é de uma precisão sem igual. Não mais acompanhando seus protagonistas pelas costas, agora os Dardenne os olham de frente e lhes permitem ser tão ativos de seus atos quanto podendo ser julgados por eles. Devido à câmera mais afastada dos corpos dos atores, o espectador pode vislumbrar as situações menos como um cúmplice e mais como observador atento e curioso. Se isso dá ao filme os efeitos de uma narrativa um tanto mais tradicional, a direção dos Dardenne garante que, a certa altura, você não conseguirá estar fora: O Garoto da Bicicleta, na sua simplicidade de recursos, te arrasta pelos braços e, de uma outra maneira, te faz cúmplice também.
A política é ainda uma questão premente e pulsante para os Dardenne tanto quanto ela surge em camadas discretas e subterrâneas. Não há discursos nem sociologia: há o enfrentamento direto de uma situação delicada que diz muito da juventude europeia deixada à sua própria sorte por condições sociais pouco favoráveis à harmonia fraterna e familiar. Indiretamente, O Garoto da Bicicleta é uma espécie de sequência de outro trabalho dos irmãos belgas, A Criança. Neste, víamos um pai vendendo o filho recém-nascido para conseguir dinheiro. Agora assistimos a um pai (o mesmo ator de antes, Jérémie Renier – e essa escolha definitivamente não é aleatória) que vende a bicicleta do filho e se nega a encontrar o menino, porque essa convivência pode prejudicar sua tentativa de recomeçar a vida a partir de um emprego num restaurante.
Muito vinculados ao neorrealismo, os Dardenne fazem aqui sua versão de Ladrões de Bicicleta, com toques da nouvelle vague de Os Incompreendidos naquele vulcão que é um pré-adolescente rejeitado pela família, correndo pelas ruas e cujo afresco estará em algum símbolo de sua inocência (no caso aqui, a bicicleta), enquanto paira a proximidade sedutora da marginalidade. Os Dardenne narram um pequeno conto sobre uma trajetória possível rumo à perdição. Como é de praxe em seu cinema, esse caminho, fruto de um contexto muito maior do que simplesmente as escolhas dos personagens, terá um desvio, que pode ou não definir outros rumos. O Garoto da Bicicleta é tanto mais esteticamente clássico quanto funciona também de contraponto a Rosetta, outro trabalho da dupla sobre uma criança sem rumos. De um filme a outro, o olhar sobre o mundo mudou. De qualquer maneira, ainda humanistas, os Dardenne fazem da realidade a propulsora de suas capacidades como realizadores de cinema.
Há algo de realmente mágico em como os diretores, em tão pouco tempo, criam um universo com o qual nos sentimos tão intimamente conectados. Os personagens são poucos, as situações são muitas e o cuidado na construção de cada momento da narrativa é de uma precisão sem igual. Não mais acompanhando seus protagonistas pelas costas, agora os Dardenne os olham de frente e lhes permitem ser tão ativos de seus atos quanto podendo ser julgados por eles. Devido à câmera mais afastada dos corpos dos atores, o espectador pode vislumbrar as situações menos como um cúmplice e mais como observador atento e curioso. Se isso dá ao filme os efeitos de uma narrativa um tanto mais tradicional, a direção dos Dardenne garante que, a certa altura, você não conseguirá estar fora: O Garoto da Bicicleta, na sua simplicidade de recursos, te arrasta pelos braços e, de uma outra maneira, te faz cúmplice também.
A política é ainda uma questão premente e pulsante para os Dardenne tanto quanto ela surge em camadas discretas e subterrâneas. Não há discursos nem sociologia: há o enfrentamento direto de uma situação delicada que diz muito da juventude europeia deixada à sua própria sorte por condições sociais pouco favoráveis à harmonia fraterna e familiar. Indiretamente, O Garoto da Bicicleta é uma espécie de sequência de outro trabalho dos irmãos belgas, A Criança. Neste, víamos um pai vendendo o filho recém-nascido para conseguir dinheiro. Agora assistimos a um pai (o mesmo ator de antes, Jérémie Renier – e essa escolha definitivamente não é aleatória) que vende a bicicleta do filho e se nega a encontrar o menino, porque essa convivência pode prejudicar sua tentativa de recomeçar a vida a partir de um emprego num restaurante.
Muito vinculados ao neorrealismo, os Dardenne fazem aqui sua versão de Ladrões de Bicicleta, com toques da nouvelle vague de Os Incompreendidos naquele vulcão que é um pré-adolescente rejeitado pela família, correndo pelas ruas e cujo afresco estará em algum símbolo de sua inocência (no caso aqui, a bicicleta), enquanto paira a proximidade sedutora da marginalidade. Os Dardenne narram um pequeno conto sobre uma trajetória possível rumo à perdição. Como é de praxe em seu cinema, esse caminho, fruto de um contexto muito maior do que simplesmente as escolhas dos personagens, terá um desvio, que pode ou não definir outros rumos. O Garoto da Bicicleta é tanto mais esteticamente clássico quanto funciona também de contraponto a Rosetta, outro trabalho da dupla sobre uma criança sem rumos. De um filme a outro, o olhar sobre o mundo mudou. De qualquer maneira, ainda humanistas, os Dardenne fazem da realidade a propulsora de suas capacidades como realizadores de cinema.
domingo, 16 de outubro de 2011
"Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios"
"O amor é sexualmente transmissível". A frase-síntese do romance de Marçal Aquino "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" pode muito bem ser acoplada também ao filme de Beto Brant e Renato Ciasca que adapta o livro às telas.
Aguardado desde quando o romance foi publicado pela editora Companhia das Letras, em 2005, o longa teve sua estreia mundial na noite de terça-feira, em sessão de gala da Première Brasil, no Festival do Rio. "Já não aguentávamos mais de vontade de mostrar esse trabalho, no qual estamos envolvidos há cinco anos", disse um empolgado Renato Ciasca, sobre o palco do Cine Odeon, na Cinelândia carioca. Parceiro habitual de Beto Brant desde os primeiros curtas de faculdade, Ciasca passou a assinar também a direção a partir de "Cão sem Dono" (2007), projeto anterior da dupla para cinema.
Ao microfone, também emocionado, Brant dedicou a sessão, de imediato, ao escritor Marçal Aquino. Ele é a terceira ponta de um triângulo que vem fazendo trajetória significativa nas telas desde 1997, quando se iniciou uma espécie de trinca "crime e castigo" formada por "Os Matadores", "Ação Entre Amigos" (1998) e "O Invasor" (2001) .
Para além de ser o fecho de um projeto de longa data, "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" é o quarto filme de outra fase de trabalho do trio, debruçada sobre as relações amorosas - caso de "Crime Delicado" (2005), o citado "Cão sem Dono" e "O Amor Segundo B. Schianberg" (2010), originalmente feito como série de TV.
Em todos os filmes de Brant, Marçal Aquino esteve no roteiro, sendo vários deles adaptações de textos seus. Curiosamente, esse novo trabalho marca a primeira vez que Brant efetivamente transpõe um romance do autor - antes foram contos e novelas.
"A gente vinha de uma vibração de violência que culminou em ‘O Invasor’. Em seguida, quisemos procurar outros caminhos e buscamos a intimidade das pessoas", define Renato Ciasca. No caso de "Eu Receberia...", o livro pareceu, aos realizadores, reunir uma mescla da primeira com a segunda fase de suas carreiras. "Esse livro estava completo dentro de tudo. Tem a história de amor, tem a intimidade, tem a violência e tem a questão política".
Paixão. Originalmente, a política estava presente no romance pela relação do protagonista - o fotógrafo Cauby, de passagem pelo interior do Pará num momento delicado socialmente - com as disputas do garimpo na região. No intuito de atualizar o enredo, decidiu-se por modificar o embate: dentro do filme, o que se enfrenta é o desmatamento de florestas na Amazônia.
Mas o que segue como verdadeiro atrativo de "Eu Receberia..." é o que já estava no livro: o ardente relacionamento entre Cauby (Gustavo Machado) e Lavínia (Camila Pitanga), e o estranho triângulo que se forma com o marido dela, o pastor Ernani (Zecarlos Machado).
Em tórridas cenas de sexo, a paixão do casal central se explicita na tela, assim como a derrocada do envolvimento, marcado por mistérios e também pela instabilidade de Lavínia. Entre cenas contemplativas da natureza, saltos temporais, olhares lascivos e tensão, "Eu Receberia..." modifica bastante o romance de Aquino, mas mantém sua essência de ser um mergulho passional perturbador.
*Publicado em "O Tempo" no dia 13.10.2011
Dario Argento
Muitas vezes relegado a segundo (ou terceiro) plano, o cinema de terror e suspense é colocado em devido e merecido status na 13ª edição do Festival do Rio, graças à retrospectiva da obra do diretor italiano Dario Argento. Numa parceria do evento com o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), mais de 20 filmes assinados pelo cultuado cineasta, entre trabalhos para cinema e TV, estão sendo exibidos até o dia 23 de outubro na capital carioca. Intitulada "Dario Argento e Seu Mundo de Horror", a mostra é inédita em terras brasileiras.
"Seus filmes se distinguem pelas várias sequências elaboradas com diversos planos inusitados, objetivando abordar os mistérios da mente humana e os transtornos propiciados pelo medo e angústia", escreve o curador, Mario Abbade, no material de divulgação da mostra. "Esse conceito é desenvolvido através de histórias policiais, políticas e até sobrenaturais, em que o sexo, o mistério e a violência são os responsáveis em conduzir a narrativa caracterizada pelo improvável".
Apesar de muitas vezes retratado como "o Hitchcock italiano" - o que o vincularia ao principal nome do gênero, Alfred Hitchcock (1899-1980) -, Argento tem formas bastante distintas de desenvolver seus filmes. Chamá-lo pelo nome do mestre inglês parece menos uma referência do que alguma tentativa torta de legitimar o italiano através de um nome reconhecível do grande público. Seu cinema tão particular pulsa, tem vida própria e sempre foi capaz de encantar a todos que se dispuseram ou puderam assisti-lo.
"A obra de Argento é essencial para se compreender o cinema de horror moderno", afirma o crítico Fernando V. Toste, um dos realizadores do RioFan - Festival Fantástico do Rio, que ocorre em julho. "Seus filmes não apenas amplificaram os níveis de choque e violência do cinema de horror de forma irreversível, mas elevaram a representação da violência a um nível de expressão poética nunca antes visto no gênero".
Origens. Filho do produtor italiano Salvatore Argento e da fotógrafa brasileira Elda Luxardo, Dario Argento nasceu em Roma há 71 anos. Iniciou a trajetória escrevendo críticas de cinema em jornais e depois se tornou roteirista. Seu principal trabalho nessa fase foi no monumental "Era uma Vez no Oeste" (1969), dirigido por Sergio Leone e o qual Argento escreveu junto com um também jovem Bernardo Bertolucci.
Em 1970, estreou como realizador, no desde sempre antológico "O Pássaro das Plumas de Cristal". Influenciado pelo conterrâneo Mario Bava (1914-1980), Argento renovou elementos do "giallo" (como são conhecidos, na Itália, filmes e livros policiais contendo histórias de mistério e assassinato) e chamou atenção pela sofisticação estética e visual. "O talento incomparável para a composição dos planos, a utilização inovadora das cores e elementos cênicos e o estilo de montagem inconfundível, de inspiração musical, são alguns dos traços que fazem de sua obra algo singular", enumera Fernando V. Toste.
Após "O Pássaro das Plumas de Cristal", seguiram-se diversos outros trabalhos, sendo os mais incensados "Prelúdio para Matar" (1975), "Suspiria" (1977) e "Phenomena" (1985). Seu trabalho mais recente, "Giallo - Reféns do Medo", foi lançado em 2009 - no Brasil, chegou apenas em DVD e Blu-ray. Argento está às voltas agora com as filmagens de "Drácula 3D", seu novo projeto. A ambição é recriar o seminal romance de Bram Stoker utilizando as novas possibilidades tecnológicas.
*Publicado em "O Tempo" no dia 9.10.2011
"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet
"Uma sessão de cinema é uma sessão de estupro". Assim se concluía um breve comentário de Jean-Claude Bernardet publicado em 1960 sobre o impacto que o cinema exercia sobre ele. O texto em questão abre a antologia "Trajetória Crítica", um dos trabalhos mais importantes na prolífica carreira deste intelectual do audiovisual, nascido na Bélgica e naturalizado brasileiro. Originalmente publicado em 1978 pela editora Polis, o livro ganha nova e caprichada edição via Martins Fontes (344 págs., R$ 39).
Na época da primeira versão de "Trajetória Crítica", Bernardet tinha 42 anos. Hoje, está com 75. Mesmo após décadas, optou por não mexer numa única vírgula daquele retrospecto de sua produção em jornais e revistas entre as décadas de 1960 e 70. Foi um período fértil, no qual ele se tornou voz relevante no pensamento cinematográfico brasileiro e revelou aspectos de militância que herdou do "padrinho" Paulo Emílio Sales Gomes - que o convidou para escrever críticas no Suplemento Literário do jornal "O Estado de S. Paulo".
O que se vê no livro, portanto, é uma espécie de balanço em progresso da evolução do próprio Bernardet através de seu pensamento crítico. O que diferencia o projeto de outras similares reuniões de textos é o caráter semiautobiográfico. Ao longo das páginas, não apenas são reproduzidos artigos da imprensa, mas registradas novas (e, na época, inéditas) reflexões do autor sobre seu ofício, suas crenças e dúvidas, sua experiência e a problematização do que representa ser crítico de cinema, em especial no Brasil, país subdesenvolvido.
Daí que Bernardet radiografa a transição entre ser o que ele chama de CCC ("crítico cinematográfico colonizado") - ou seja, aquele obsessivamente preocupado com a obra como "experiência artística pura", sem jamais inseri-la em contextos para além de si mesma - e o intelectual que, instigado pelas mudanças políticas e sociais no país, passa a se ater a elementos mais amplos e a se preocupar em conscientizar o leitor do significado implícito (ou explícito) de cada filme comentado dentro de um contexto bem maior ("uma cultura ‘participante’ que não permitia mais o culto da arte (...), para ter uma função não junto a uma camada, mas junto à sociedade global").
A ascensão do Cinema Novo, capitaneado por Glauber Rocha no começo dos anos 60, foi o estímulo necessário para essa mudança de postura diante da avaliação crítica proposta por Bernardet. Mesmo os textos sobre produções estrangeiras contidos no livro carregam uma gama infinita de valores a partir da exibição desses filmes num cenário como o brasileiro.
"Trajetória Crítica" também traz uma coletânea de artigos rigorosos de Bernardet contra a invasão, no Brasil, de filmes de outros países, em detrimento de maior espaço à produção local. Por vezes, ele parece estar escrevendo em 2011. Exemplos: "O público está dominado (...) por um imaginário que lhe propõe o filme estrangeiro, produto de uma realidade social e cultural que não é a sua"; "o problema do cinema brasileiro (...) é a ocupação do mercado interno pelo filme estrangeiro"; "exibidores e distribuidores nunca cuidaram de qualidade, mas de rentabilidade. De boa qualidade é o filme que tem boa bilheteria. Ou alguma vez um exibidor tirou de cartaz um filme de sucesso por achá-lo de má qualidade?".
Ainda que boa parte do interesse do livro esteja nas percepções de Jean-Claude Bernardet sobre seu ofício e na militância por uma melhor ocupação brasileira no mercado, o livro pode atrair quem simplesmente quer ler textos claros e feitos no calor da hora sobre determinados filmes.
Há artigos esclarecedores sobre "Viagem à Itália", de Roberto Rossellini, "Amantes" de Louis Malle, "Harakiri", de Masaki Kobayashi, e "Barravento", de Glauber Rocha acompanhados dos comentários posteriores do autor sobre sua própria produção intelectual.
"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet
"Trajetória Crítica", de Jean-Claude Bernardet
Editora Martins Fontes
344 páginas
R$ 39
*Publicado em "O Tempo" no dia 8.10.2011
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
"Nêmesis", de Philip Roth
Na mitologia grega, Nêmesis seria filha do deus Zeus e passou a personificar a imagem da vingança. A palavra também é usada na descrição do que seria o pior inimigo, aquele que tem tanto o poder de nos enfrentar quanto de refletir nosso oposto.
Ao longo da leitura de "Nêmesis", 31º livro do norte-americano Philip Roth e recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras, a ficção parece nos levar a um sentido da palavra-título dentro da estrutura narrativa, até que, no desfecho, o leitor é atropelado pelo significado real do que Roth está dizendo. Preciso nas descrições, potente no desenvolvimento dos personagens e profundamente emocional na conclusão, Roth faz de "Nêmesis" um livro não apenas hipnótico, mas também avassalador.
O efeito não é novidade a quem vem acompanhando os últimos petardos de Roth, 78. Seu livro anterior, "A Humilhação", apesar de muito bem escrito, apelava para algumas soluções fáceis em suas pouco mais de cem páginas. Mas, antes, romances como "Indignação", "Fantasma Sai de Cena" e "Homem Comum" apresentaram uma espécie de "novo" Philip Roth - menos cáustico, mais psicológico, menos polemista, mais reflexivo, em histórias nas quais a morte se torna protagonista em situações variadas.
"Nêmesis" se ambienta na cidade de Newark (região metropolitana de Nova York), no verão de 1944. A guerra está em andamento na Europa. Porém, Bucky Cantor, 23, míope, não pôde acompanhar os amigos no front de batalha. Ficou em casa, trabalhando como vigia do pátio da escola de seu bairro (uma comunidade de judeus) e sendo admirado pelos alunos por seu vigor e coragem.
Mas eis que começa uma das piores epidemias de poliomielite já registradas nos EUA até aquela época. O cotidiano de Bucky se transforma completamente quando alunos seus passam a adoecer, com alguns morrendo pelos efeitos da doença.
A maneira como Roth vai desfiando as angústias de Bucky, através de um narrador que sempre tateamos para entender quem é e onde ele está, é a chave para o abalo que "Nêmesis" é capaz de provocar. Eis aqui um autor ainda no ápice.
"Nêmesis", de Philip Roth
"Nêmesis", de Philip Roth
Editora Cia das Letras
200 páginas
Tradução de Jorio Dauster
R$ 36
Trecho do livro
Certa tarde, no começo de julho, dois carros cheios de italianos do ginásio East Side, rapazes entre quinze e dezoito anos, estacionaram no alto da rua residencial que contornava os fundos do pátio de recreio. O East Side ficava no bairro de Ironbound, uma área de fábricas e cortiços onde até então havia sido registrado o maior número de casos de pólio. Tão logo o sr. Cantor os viu, largou a luva no chão — ele defendia a terceira base numa de nossas peladas — e deu uma corridinha até o lugar onde se encontravam os dez estranhos saídos dos carros. Seu estilo atlético de correr, com os pés virados para dentro, era imitado por todos os garotos que frequentavam o pátio, como também o modo decidido de elevar ligeiramente o corpo quando se movia quase na ponta dos pés e o leve balanço dos ombros musculosos ao andar. Toda a sua postura se tornara um modelo para alguns dos garotos tanto dentro quanto fora do campo de beisebol. "O que é que vocês querem aqui?", perguntou o sr. Cantor. "Estamos espalhando pólio", um dos italianos respondeu, o primeiro a sair do carro com ares de valentão.
Certa tarde, no começo de julho, dois carros cheios de italianos do ginásio East Side, rapazes entre quinze e dezoito anos, estacionaram no alto da rua residencial que contornava os fundos do pátio de recreio. O East Side ficava no bairro de Ironbound, uma área de fábricas e cortiços onde até então havia sido registrado o maior número de casos de pólio. Tão logo o sr. Cantor os viu, largou a luva no chão — ele defendia a terceira base numa de nossas peladas — e deu uma corridinha até o lugar onde se encontravam os dez estranhos saídos dos carros. Seu estilo atlético de correr, com os pés virados para dentro, era imitado por todos os garotos que frequentavam o pátio, como também o modo decidido de elevar ligeiramente o corpo quando se movia quase na ponta dos pés e o leve balanço dos ombros musculosos ao andar. Toda a sua postura se tornara um modelo para alguns dos garotos tanto dentro quanto fora do campo de beisebol. "O que é que vocês querem aqui?", perguntou o sr. Cantor. "Estamos espalhando pólio", um dos italianos respondeu, o primeiro a sair do carro com ares de valentão.
*Publicado em "O Tempo" no dia 1.10.2011
Tonino Guerra
Aos 91 anos, o roteirista italiano Tonino Guerra está sendo homenageado pela quinta edição da CineBH - Mostra de Cinema de Belo Horizonte (29/4 até 4/11). Vários filmes que ele escreveu (de cineastas como Federico Fellini, Michelangelo Antonioni e Theo Angelopoulos) estão programados na mostra.
Numa entrevista a Gianfranco Zavalloni (diretor do Departamento de Educação e Cultura do Consulado da Itália), publicada na íntegra no catálogo da CineBH, Tonino Guerra fala sobre a carreira e suas lembranças. O Magazine adianta, com exclusividade, trechos da conversa.
Artes plásticas, cinema, poesia, literatura. É possível escolher uma arte? Com qual mais se identifica?O que o conduziu à arte?
Nunca há uma regra determinada. A arte é como quando você se aproxima de uma rosa para sentir o perfume. Quando eu era criança, eu queria desenhar, pintava pequenas aquarelas. Eu tinha um mestre chamado Moroni, um grande pintor com suas fantasias. Depois eu me matriculei na universidade e comecei a dar aulas. E então me fizeram uma proposta para escrever o roteiro de um filme por causa do sucesso que eu tinha obtido com minhas poesias. Se bem me lembro, foi o primeiro filme de Marcello Mastroianni. O título era "Ettero di Ciello", com um diretor que já morreu e fez só esse filme. Depois, me convidaram para ir a Roma, e ali passei dez anos de fome. Foram tempos muito duros, mas muito importantes. Depois começou o grande sucesso. Com Fellini, Antonioni, (irmãos) Taviani, (Andrei) Tarkovsky, (Francesco) Rosi, (Theo) Angelopoulos, (Vittorio) De Sica... Todos diretores e pessoas excepcionais. (...) O roteirista acha que inventa muita coisa, mas eu digo que, pessoalmente, nunca inventei nada. Eu me sentava diante do diretor e, juntos, nos perguntávamos o que podíamos fazer. É como fazer pão misturando farinha e água.
Qual sua opinião sobre (Roberto) Rossellini?
Poderoso, poderoso, poderoso. Eu não entendo por que todos os italianos não se ajoelham diante dos grandes diretores que fizeram e criaram um novo olhar de simpatia e estima nos italianos. Que sucesso! Que criatividade! Que novidade! É um renascimento! E pensar que essas pessoas faziam tudo sem dinheiro, com poucas invenções, mas, quando conseguiam fazer, tinham a sorte do filme ser visto em todo o mundo. (...) Rossellini foi um gênio absoluto, uma homem que fez filme com a película vencida. E esta foi a sorte mágica dessas películas vencidas... que tinham um modo assim mágico como as telas sujas. Provavelmente foi o ponto mais alto do cinema italiano. Foi aquele que, em primeiro lugar, se permitiu criar estruturas novas. Ele triturou o modo velho de contar histórias. Ele mesmo tinha uma vida arriscada (...) E ele só dava uma olhada na palavra do roteiro, porque sabia que elas, as palavras, precisam ser molhadas diante da realidade que tinha diante de si e da história.
Dos grandes mestres e amigos que você teve, o que aprendeu? Quais foram as trocas nessa aprendizagem?
Trocamos muitas coisas. O mais importante é que, quando eles trabalhavam comigo, eram também roteiristas, não eram deuses. Me davam a sensação de igualdade, de estar no mesmo plano. Este é o grande ensinamento, o maior de todos! Havia coisinhas laterais que eu roubava da grandeza deles.
*Publicado em "O Tempo" no dia 30.9.2011
** Na foto acima, Tonino Guerra (à direita) está com Michelangelo Antonioni.
*Publicado em "O Tempo" no dia 30.9.2011
** Na foto acima, Tonino Guerra (à direita) está com Michelangelo Antonioni.
"Encruzilhada" e "Johnny Furacão"
O momento efervescente que vive o quadrinho brasileiro tem gerado trabalhos de envergadura, criados por nomes ainda em ascensão, nem por isso pouco significativos. São os casos de dois lançamentos quase simultâneos que andam circulando em boas livrarias e lojas virtuais - e fazendo bastante sucesso entre os fãs e especialistas do segmento.
Que o diga o paulista Marcelo D’salete. Seu "Encruzilhada" foi taxado pelo crítico Eduardo Nasi como "não só um dos melhores álbuns dos últimos tempos, mas também um dos mais importantes". Já o mineiro naturalizado carioca Sama, autor de "A Balada de Johnny Furacão", foi elogiado pelo também crítico Paulo Ramos: "É fácil entregar-se à obra e aos eficientes desenhos de Sama".
Em comum, as duas HQs têm pouca coisa. "Encruzilhada" trata do cotidiano urbano nas ruas paulistanas, com personagens decalcados do mundo real protagonizando pequenos contos sobre marginalidade, consumismo e violência. "A Balada de Johnny Furacão" é uma aventura de estrada (ou "road comic", como definiu Paulo Ramos) com toques fantásticos.
Para Marcelo D’salete, "Encruzilhada" - seu segundo trabalho, antecedido por "Noite Luz", de 2008 - serviu como forma de ele amadurecer um processo que já vinha desenvolvendo. "Retomei a ideia de trabalhar contos ambientados em grandes metrópoles, especialmente porque é onde eu vivo e por querer retratar situações muito próximas do meu cotidiano", diz ele. "Algumas das histórias que eu mostro foram testemunhadas por mim, outras me contaram e, numa delas, eu juntei alguns outros elementos".
O universo geográfico das ruas de São Paulo é mais um atrativo a D’salete. Ele conta sempre ter gostado de desenhar a cidade e retratar paisagens com as quais os moradores se habituaram - prédios infinitamente altos, ruas cheias, trânsito. "Tudo isso se junta no álbum numa série de encontros e desencontros, de cruzamentos e conflitos que acontecem no dia a dia das pessoas".
Por sua vez, Sama (pseudônimo de Eduardo Filipe) partiu de uma música de Erasmo Carlos que marcou sua infância para narrar a saga de três personagens perdidos numa autoestrada e caçados por um bando de motoqueiros valentões, em "A Balada de Johnny Furacão".
Sobram referências a filmes (como "O Selvagem da Motocicleta", de Francis Coppola) e bandas de rock (Matanza e Raimundos). "Nunca tive o roteiro completo do ‘Johnny’", revela Sama. "A história foi me levando mais do que eu levando a história, e acho que a grande força dela está nisso".
Com técnicas híbridas na concepção visual do álbum, Sama utiliza em seus desenhos predominantemente a aguada de nanquim, no intuito de dar o tom alucinado de sua história - o que se torna fundamental no terço final, quando a narrativa mergulha em outros meandros.
Perfis
Perfis
Marcelo D'salete tem 31 anos. É pesquisador de arte afro-brasileira, ilustrador de livros infantojuvenis e lançou seu primeiro trabalho solo, "Noite Luz", em 2008, pela editora Via Lettera.
Sama tem 38 anos. É artista visual e autor premiado de charges, cartuns e ilustrações. Também é ator, tendo trabalho na televisão, no teatro e no cinema.
Referências.
Referências.
Se há um fator em comum entre "A Balada de Johnny Furacão" e "Encruzilhada" (para além de ambos serem excelentes leituras), é a admiração de seus autores pelo mestre uruguaio (naturalizado na Argentina) Alberto Breccia (1919-1993), um dos grandes nomes da HQ mundial.
A influência, ainda que não explícita, pode ser percebida na forma de utilizar o preto e branco nos dois álbuns. Marcelo Dsalete faz quadros pretos nas próprias páginas, inserindo o traço e os contornos dentro do "enquadramento", com todos os elementos dialogando. Já Sama faz páginas mais "brancas", mas não menos expressivas, usando silhuetas e sombras também em fundos escuros.
Não só Breccia move Dsalete e Sama. Os dois são leitores vorazes de HQ. O primeiro curte também Laerte, Marcello Quintanilha e mangás; o segundo exalta Odyr Berardi, Hugo Pratt e a dupla Kazuo Koike e Goseki Kojima, responsáveis pela série "Lobo Solitário".
*Publicado em "O Tempo" no dia 30.9.2011
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