Cinema, literatura & quadrinhos
Criticas, resenhas, artigos e reportagens de Marcelo Miranda
sexta-feira, 4 de janeiro de 2013
Sergei Loznitsa: mapas da vida na Rússia
O movimento mais característico no cinema de Sergei Loznitsa é a panorâmica lateral, em que a câmera se move lentamente para a direita e exibe a mescla entre paisagens naturais e urbanas e rostos de pessoas anônimas. "A face humana é o mapa da vida", resume o cineasta ucraniano de 48 anos, homenageado neste ano pela Mostra de Cinema de São Paulo. Loznitsa está na cidade acompanhando a retrospectiva de sua obra, formada em maior parte por documentários.
São duas ficções, porém, que, ao competirem à Palma de Ouro em Cannes nos anos de 2010 e 2012, tornaram o nome de Loznitsa mais badalado no circuito mundial. "Minha Felicidade" e "Na Neblina" apresentaram a muitos críticos e espectadores o talento de um realizador cuja visão crua e brutal da Rússia é elemento fundador de um trabalho realmente especial. Ao se tomar contato com os documentários do diretor, a impressão se expande e revela um cineasta de observação singular e sensibilidade a tudo que esteja ao seu redor.
"Gosto muito de viajar e, em todos os lugares para onde vou, sempre olho e os considero potencialmente como lugares para fazer um filme", conta ele, em bate-papo num hotel em São Paulo. "Essa minha atenção acontece automaticamente, eu simplesmente penso oh, aqui tem uma situação fantástica para observar. Enquanto viajo, procuro lugares que me soem impactantes para filmar e que funcionem como um microcosmo, um espaço concentrado de alguma coisa ou de algum mistério de quem circula por ali".
Os títulos de alguns documentários de Loznitsa revelam o procedimento. Filmes como "Fábrica", "Paisagem", "Retrato", "A Colônia" e "A Estação de Trem" reúnem fragmentos de espaços para onde ele decidiu apontar a câmera e simplesmente captar o fluxo, o movimento, as conversas, os olhares, as complexidades de ambientes nem sempre devidamente percebidos pela pressa cotidiana. Loznitsa conta ter influências da literatura de Franz Kafka e Marcel Proust na busca por paradoxos e por ambientes "onde estamos, mas não deveríamos estar".
Outro aspecto essencial na obra do cineasta - tanto documental quanto ficcional - é a desilusão com os rumos políticos e sociais da Rússia. Loznitsa nasceu em Baranovitchi, território da Bielorrúsia, ex-república soviética. Ainda jovem, mudou-se para Kiev, na Ucrânia, onde estudou matemática e exerceu trabalhos na área de tecnologia, antes de decidir fazer cinema. Em 1991, foi estudar em Moscou e se formou no Instituto de Cinematografia, estreando em 1996 com o curta-metragem "Hoje Vamos Construir uma Casa".
A vivência nas três cidades - antes de se mudar para Berlim, na Alemanha, onde reside com a família - lhe deu formação sólida e aprimorou a desilusão de seu olhar em relação à Rússia pós-comunista. Em "Cinejornal" (2008) e "Bloqueio" (2005), Loznitsa fala diretamente, com profundo teor crítico e às vezes sarcástico, de movimentos históricos e políticos do país. "A Rússia está num processo talvez irreversível de degradação", dispara.
Loznitsa não teme represálias do governo Vladimir Putin devido às suas críticas, mas reconhece que o atual regime não lida bem com opositores que reclamam de suas políticas - outro aspecto a indignar o cineasta. "Minha Felicidade", filme de uma violência latente que brota gratuitamente de pequenas instituições de poder (especialmente a polícia), nasceu de noticiários de jornal. "Tentei, com o filme, apresentar a estrutura da nossa sociedade hoje e como ela está condenada a desaparecer", comenta. Não à toa, a produção de "Minha Felicidade" (foto acima) foi negada pelo comitê de cinema do país e precisou ser financiada por investidores da Alemanha e da Ucrânia.
Na segunda ficção, "Na Neblina" - vencedora do júri da crítica em Cannes, em maio -, Loznitsa volta ao passado. Adaptando o romance de Vasili Baykov, o diretor vai à 2ª Guerra Mundial para acompanhar a trajetória de três soldados às voltas com uma traição, durante a ocupação alemã na União Soviética. "A história não é um evento, mas o reflexo de um evento. O que aprendemos é sempre a cronologia da história, é aquilo que veio antes, durante e depois de alguma situação histórica. Porém, quando aconteceram, todos os fatos de determinada época eram simultâneos. A cronologia é uma invenção nossa", reflete Loznitsa.
A ambição do cineasta, portanto, é mostrar no cinema o emaranhado de acontecimentos que culminam no que ele chama de "consequências da história". Daí seus filmes serem essencialmente sobre grupos ou situações múltiplas, tendo vários personagens envolvidos em diversas ações ao mesmo tempo e em épocas distintas. Para Loznitsa, nada é mensurável pela ordem, mas pelo tempo. Ele leva o conceito para a própria estética. "Gosto de planos longos, sem cortes, porque eles permitem a você captar o tempo enquanto assiste às imagens e transmitem um senso de realidade muito grande".
*Originalmente publicado em "O Tempo" no dia 1.1.2012
* A foto de Sergei Loznitsa é de Mário Miranda/Agência Foto.
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