sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Crítica: Billi Pig, de José Eduardo Belmonte

A piada fácil surge logo na abertura de Billi Pig. A bela Grazi Massafera, ex-Big Brother Brasil, segura uma réplica da estatueta do Oscar no meio de um ritual. A personagem se chama Marivalda e pede a alguma entidade que lhe permita ser uma grande atriz. O humor da cena é tão óbvio quanto autossatírico: de imediato, o diretor José Eduardo Belmonte se coloca lado a lado com sua protagonista. Ambos têm desafios a partir dali. Ela quer ser atriz; ele quer fazer uma comédia popular, algo inédito numa trajetória que somava antes quatro longas-metragens, todos dramas de carga existencial (discreta exceção feita a Subterrâneos, o primeiro e que já guardava viés irônico e mordaz). Com o ritual de Marivalda, perpetrado em delírio por Milton Gonçalves, ícone do audiovisual brasileiro, Belmonte se permite mergulhar em quaisquer caminhos que lhe forem necessários. Mal ou bem, Billi Pig se sustentará todo a partir desse prólogo – que, apesar de fantasioso, não se difere em nada no tom geral e mágico empregado ao longo do filme. Sonho e realidade serão sempre a mesma coisa em Billi Pig, o que dá a Belmonte liberdade total para seus destrambelhos.

O filme é uma rara incursão do cinema brasileiro na comédia abertamente fantástica – aquela que não busca explicações metafísicas ou científicas para o humor a ser empregado. Não há conjunção de planetas (Se Eu Fosse Você), traumas amorosos (A Mulher Invisível) nem máquinas do tempo (O Homem do Futuro). A fantasia de Billi Pig é intrínseca a seu universo. Um porco cor-de-rosa fala com Marivalda; se por alguns instantes suspeitamos disso ser uma maluquice da cabeça dela, logo veremos que as coisas não são assim tão claras. Quando o padre vivido por Milton Gonçalves aparece com uma ave azul, já estamos no ponto de crer que o bicho é mesmo azul; minutos depois, a chuva retira a tinta que falseava o animal, revelando o truque que, dada a natureza do filme, não parecia ser truque.

É nesse equilíbrio entre real e fantástico que Billi Pig se desenvolve, acrescido das tentativas constantes de fazer todo tipo de humor: pastelão, oral, comportamental, corporal, mental, referencial. Não faltam possibilidades de piadas no filme – algumas funcionam muito bem, outras carecem de timing ou de cuidado na construção cênica e espacial para que o “efeito-riso” não seja apenas forçado, mas autêntico. O que encanta em Billi Pig é o jogo proposto por Belmonte – jogo este que talvez nem mesmo o cineasta tivesse consciência.

Cheio de arestas e pontas soltas, o filme por vezes transmite a sensação de que está completamente perdido, com personagens que surgem e desaparecem sem motivações aparentes (Preta Gil e Milhem Cortaz na funerária), diálogos fora do enredo central (o padre e a amante), desvios narrativos (a infância do padre em flashback). Por outro lado, Belmonte lança na tela o desafio de o espectador encarar a própria necessidade intrínseca de querer as pontas devidamente fechadas. A irregularidade de Billi Pig funciona também como uma proposta de cinema, naturalmente arriscada e também perigosa, pois passível de leituras apressadas e intolerantes. Como “convencer” qualquer público (leigo ou crítico) de engolir um filme aparentemente incompleto, que inclusive pode dar a impressão de ser também um filme vítima de inapetência? A armadilha de Billi Pig, portanto, está justamente na sua suposta ruindade.

Mas, como defendia Jairo Ferreira, é de filmes imperfeitos que também se constrói uma cinematografia significativa. Billi Pig é a resposta imperfeita e repleta de vida a um caminho excessivamente “limpo” que o cinema brasileiro comercial vem construindo. Há poucos paralelos possíveis do filme de Belmonte com qualquer realização recente no país, especialmente no gênero da comédia. Num sentido geral, talvez apenas Falsa Loura poderia ser colocado em chave similar, especialmente pelo olhar profundamente bem-cuidado e honesto que tanto Belmonte quanto Carlos Reichenbach imprimem a personagens da periferia, quanto na sincera crença dos dois diretores de que a linguagem do filme pode acompanhar o compasso dos pensamentos de seus protagonistas – e a cena musical de Grazi no bar em Billi Pig não teria equivalência ao videokê de Rosanne Mulholland e Maurício Mattar em Falsa Loura? O desfecho “feliz” não guardaria muito do elogio da malandragem presente em filmes como Ladrões de Cinema (1977), de Fernando Coni Campos? Contemporaneamente, assim como para Os Normais (José Alvarenga) existe a contraparte Todo Mundo Tem Problemas Sexuais (Domingos de Oliveira), já se pode dizer que para coisas como Família Vende Tudo (Alain Fresnot) há Belmonte e Marivalda com seu porquinho serelepe. E assim a resistência vai surgindo, de onde pouco se quer olhar com atenção.

Essa característica de estar contra um sistema estabelecido aproxima Billi Pig dos filmes anteriores de José Eduardo Belmonte. De maneira independente e em pouco tempo, ele realizou Subterrâneos (2003), A Concepção (2005), Meu Mundo em Perigo (2007) e Se Nada Mais Der Certo (2008). Ao estrear na indústria em Billi Pig, com orçamento mais elevado e equipe melhor estabelecida (Vânia Catani o produziu), Belmonte não se permitiu ser pasteurizado. Há tanto de rendição quanto de suicídio em Billi Pig. O filme não foi bem de bilheteria nem recebeu críticas entusiasmadas – muito pelo contrário: na grande mídia, Belmonte tem sido tratado como uma espécie de traidor, alguém que teria aberto mão de um suposto viés autenticamente artístico para faturar com uma comédia sem graça em cima de nomes como Grazi Massafera, Selton Mello, Otávio Müller e a logomarca da Globo Filmes.

Seria ingenuidade pensar que Billi Pig tenha sido pensado como outro dos projetos plenamente autorais de Belmonte. Seria, porém, igualmente ingênuo acreditar que um filme de tantos estranhamentos e de tamanhas recusas à deglutição fácil estivesse apenas interessado em fazer dinheiro. Há muito de Belmonte espalhado no filme inteiro. Um Belmonte em outra chave, mas não em outro planeta: ainda é aquele cineasta que deixa os atores improvisarem, que permite ao filme respirar por si mesmo, que mantém um olhar para o mundo como este sendo um lugar de provações e recomeços. Temos aqui um cineasta que coloca uma figura como Grazi Massafera para encabeçar o elenco e jamais faz da atriz uma “bandeira” de excitação viril ou um corpo gratuitamente lançado em cena para deleite de olhares voyeurs. Grazi está no filme justamente porque ela é Grazi Massafera, disso não há dúvidas. O artifício exemplar é que o filme está a serviço de sua presença, seu humor e seu corpo – e não o inverso (como, novamente, Carlos Reichenbach sabe fazer como poucos ao escolher suas atrizes). Não seria exagero dizer que Billi Pig existe de e para Marivalda, a personagem de Grazi. A vinculação de Belmonte a personagem tão adorável faz grande diferença para os significados possíveis de serem enxergados no filme.

Os tropeços de Billi Pig não o tornam um filme pior, assim como momentos mais inspirados não o fazem necessariamente melhor. Tornam-no, de fato, um desafio instigante e fascinante. Que troço é esse? E por que o cinema popular brasileiro não nos oferece troços tão intrigantes com mais frequência? Achar graça do filme ou achar graça do atrapalho de Belmonte em não conseguir sugar humor de determinadas situações podem ser experiências muito mais enriquecedoras e estimulantes do que se espera e se queira à primeira vista. Basta olhar sem o filtro da limpeza exacerbada e da busca por perfeição e se permitir ser tão inconsequente assistindo ao filme quanto José Eduardo Belmonte parece ter sido ao fazê-lo.

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