sexta-feira, 2 de março de 2012

Sobre "Drive", de Nicolas Refn

Marcelo Miranda

Enquanto o controverso Lars Von Trier driblava as consequências de suas diatribes no Festival de Cannes em maio do ano passado - onde competia com "Melancolia" e do qual foi pessoalmente expulso devido a comentários interpretados como pró-nazistas -, outro dinamarquês, este bem mais discreto e sereno, chamava atenção.

Ao fim do evento, a surpresa: numa competição com Pedro Almodóvar, irmãos Dardenne, Nani Moretti e o próprio Von Trier, foi Nicolas Winding Refn quem recebeu a Palma de melhor direção, por seu impressionante "Drive". Depois de muitos adiamentos, enfim o oitavo longa-metragem de Refn estreou no Brasil. Esqueça todo o papo de Oscar, filme mudo, nostalgia, indicados e derivados. "Drive" é o que haverá de mais surpreendente e vigoroso nas telas de Belo Horizonte nos próximos dias.

Inspirado no livro homônimo do norte-americano James Sallis, o enredo acompanha um mecânico e dublê de filmes de ação (Ryan Gosling) que, à noite, dirige carros de fuga para assaltantes em Los Angeles. Sério, ascético, lacônico e extremamente profissional, esse personagem parece surgido de lugar algum. "Eu apenas dirijo", diz, encerrando o assunto com um de seus contratantes.

Num determinado dia, esse motorista se encanta com a vizinha Irene, e os rumos dessa atração - que vão envolver o marido dela, recém-saído da prisão, e um golpe malfadado - modificam toda a rotina quase matemática do protagonista. Tudo é embalado numa atmosfera onírica e hipnotizante, com músicas de teor oitentista, cores ora berrantes, ora discretas e um ritmo e tempo próprios.

"A ambientação criminal é abordada de maneira ultraviolenta, muitas vezes mais sugerida do que explícita. E a galeria de tipos humanos de Refn é construída com raivosa atualidade", diz o crítico, professor e curador paranaense Carlos Eduardo Lourenço Jorge. "Nenhuma dúvida de que ‘Drive’ é um ‘neonoir’ dirigido com admirável destreza formal, justa noção espacial e, o que é melhor, sem nenhum descuido quanto ao enfoque psicológico".

Apesar de adaptar um livro publicado em 2005, Refn teve a fagulha para "Drive" enquanto lia histórias para sua filha mais nova. "Comecei a ter vontade de fazer um filme com a estrutura dos autênticos contos de fada", revelou, em entrevistas concedidas durante o Festival de Cannes. "Nessas histórias, acontecem coisas muito bonitas até que, no fim, tudo se torna bastante sombrio".

Mesmo que o romance de Sallis dê mais informações sobre o piloto (exceto o nome, omitido tanto no livro quanto no filme), Refn optou por esvaziar o personagem interpretado por Gosling - o que potencializa o impacto à medida que o filme vai revelando do que essa figura é capaz de fazer. "Não sabemos nada sobre ele, e ele só fala quando questionado ou se tem algo importante a dizer. Isso o torna uma figura mitológica e misteriosa".

Nesse sentido, trabalhar com Ryan Gosling foi revelador para Refn - o que torna o projeto de "Drive" muito significativo desde sempre, pois foi Gosling quem sugeriu o nome de Refn para assumir a direção. Para o professor Carlos Eduardo Jorge, "Ryan Gosling, de certa forma, recupera e faz a reposição de um tipo físico e ficcional que andava meio exilado das telas desde a morte de Steve McQueen, em 1980, e a aposentadoria do Alain Delon".

Trajetória.
Ao ganhar um prêmio importante em Cannes aos 41 anos, o diretor Nicolas Winding Refn coroou uma trajetória independente de sucesso, que começou ainda na Dinamarca, em 1996. Quando estava com 24 anos, tendo concluído cursos de cinema nos EUA e em sua terra natal, lançou "Pusher", thriller urbano sobre traficantes de drogas com altas doses de violência.

Na mesma época, eclodia no país o Dogma 95, movimento de diversos cineastas dinamarqueses que pregava regras para filmes considerados "mais realistas e menos comerciais". Os títulos "Festa de Família", de Thomas Vinterberg, e "Os Idiotas", de Lars Von Trier, foram os primeiros a se adequarem ao que acabou se tornando menos um movimento estético do que um modismo provocador.

Refn não aderiu. Cinéfilo insano, preferiu fazer uma espécie de homenagem autoral a nomes como Quentin Tarantino e Martin Scorsese em "Pusher", e assim seguiu nas produções que se sucederam. "Bleeder", seu segundo longa, foi exibido no Festival de Veneza em 1999, o que começou a fazer seu nome circular fora dos círculos dinamarqueses.

A estreia em língua inglesa se deu no suspense "Medo X" (2003), com John Turturro e tendo elementos próximos aos delírios de David Lynch. A recepção morna fez Refn voltar a filmar na Dinamarca, onde realizou duas sequências de "Pusher".

"Drive" o levou de volta aos EUA, desta vez mais próximo do centro das atenções, por trabalhar com orçamento maior (US$ 15 milhões) e ter atores reconhecidos no elenco. O filme tem a força e relevância de fazer o próprio Refn ser apresentado a plateias mais amplas.

*Publicado em "O Tempo" no dia 2.3.2012

Nenhum comentário: