sexta-feira, 9 de março de 2012

Marilyn Monroe

por Marcelo Miranda

A organização do Festival de Cannes divulgou nesta semana o cartaz da 65ª edição do evento francês, a ser realizado em maio. A imagem mostra Marilyn Monroe (1926-1962) assoprando as velas de um bolo de aniversário. O festejo é do festival, mas a fotografia tem outro sentido muito forte: em 2012, completam-se 50 anos da morte de Marilyn, encontrada já falecida em seu apartamento após uma overdose de barbitúricos.

Diva até hoje tão enigmática quanto fascinante, Marilyn Monroe mantém um culto interminável e intenso em torno de sua figura. A Fox aproveita a efeméride e relança no mercado brasileiro a Coleção Diamante, duas caixas de DVDs contendo o total de 11 longas-metragens protagonizados pela loira, nascida morena em Los Angeles e cujo nome de batismo era Norma Jean Mortensen.

Existe um mito em torno da ideia de que a atriz era o estereótipo da loira burra, atrapalhada e avoada, muito reforçado por seus papéis em "O Inventor da Mocidade" (1952), "Como Agarrar um Milionário" (1953), "Os Homens Preferem as Loiras" (1953) e "Quanto Mais Quente Melhor" (1959). Mas Marilyn não era a boba que sua imagem (e a mídia) vendia, e algumas de suas escolhas - na vida e na carreira - permitem perceber o quanto nem tão ingênua ela era.

A atriz se envolveu, por exemplo, em algumas raras incursões dramáticas, na maior parte das vezes de forma bem-sucedida. Menos conhecidos, "Almas Desesperadas" (1952) e "Torrentes de Paixão" (1953) revelaram uma faceta pouco explorada de seu talento: a da mulher perturbada e disposta a variadas loucuras para atingir objetivos. No primeiro, ela é uma babá obcecada em não permitir que a criança de quem cuida atrapalhe o romance que ela tenta engatilhar; no outro, próxima do "noir", ela é a esposa traidora que tenta fazer o amante assassinar seu marido.

Em participações menores, antes da fama, Marilyn já tinha tentado se firmar de forma mais séria e nada caricata - como nas breves aparições em "A Malvada" e "O Segredo das Joias", ambos de 1950.

Mas não teve jeito. A indústria de Hollywood se encantou com a jovem a ponto de querer apenas vê-la ora sorrindo, ora fazendo carinha de sapeca, ou tentando conquistar homens ricos ou querendo suprir carências físicas e afetivas ou se fazendo de difícil em nome de um amor mais puro, sincero e justo - ou simplesmente sendo aquela vizinha tentadora que desestabiliza um casamento.

A outra esperteza da atriz, portanto, foi saber se adequar ao que essa indústria pedia dela. E por mais que haja ressalvas a alguns de seus trabalhos, fato é que Marilyn Monroe era uma ótima comediante. Sabia trabalhar as expressões faciais, o corpo e a movimentação para fazer todo tipo de graça. A maldosa brincadeira recorrente de que ela nem precisava interpretar, bastando ser ela mesma na hora das filmagens para transmitir a característica da lerdinha, guarda muito da capacidade de Marilyn em saber fazer graça com a imagem que construíram dela.

A vida pessoal da atriz, repleta de desencontros e desilusões, contribuiu para sua persona cinematográfica. O público olhava o filme e enxergava Marilyn Monroe ela-mesma, devassada pela imprensa em detalhes sórdidos. Ela, midiática, também não se poupava. E não deu conta.

Os filmes, porém, estão aí. Alguns apenas regulares ("Nunca Fui Santa"), outros absolutamente geniais ("Quanto mais Quente Melhor", "O Inventor da Mocidade") e um que parecia antever o melancólico destino da atriz ("Os Desajustados", seu último trabalho lançado, um ano antes de ela morrer). A caixa ainda contém o documentário "O Fim dos Dias", com suas últimas imagens registradas para um filme inacabado.

*Publicado em "O Tempo" no dia 1.3.2012

Parceiros da Noite, de William Friedkin

por Marcelo Miranda

Quando "Operação França" e "O Exorcista" fizeram de William Friedkin um dos nomes mais quentes de Hollywood, no começo dos anos 1970, tudo o que a indústria podia esperar era um cineasta disposto a seguir o caminho mais óbvio do sucesso. Mas Friedkin fazia parte de uma geração de jovens realizadores disposta a se arriscar em projetos o mais anticonvencionais possíveis (dessa leva ainda havia, entre outros, Martin Scorsese, Francis Coppola, Michael Cimino e Arthur Penn).

Por sua personalidade naturalmente truculenta e desafiadora, Friedkin se enveredou em trabalhos sempre arriscados - e que se tornaram fracassos comerciais, justamente por irem contra qualquer regra. Um deles foi "Parceiros da Noite" (1980), cujo lançamento em DVD no Brasil (via Lume) se deu apenas recentemente - o que diz bastante da má repercussão do filme na época e que ainda prejudica sua visibilidade.

Ainda é tempo de redimi-lo, e quem assiste a "Parceiros da Noite" se submete a um dos mergulhos psicológicos mais perturbadores daquele período. As várias sequências em clubes gays de Nova York, filmadas com espontaneidade, hoje provocariam bem menos celeuma do que a maneira seca, objetiva e distanciada com que Friedkin retrata as mudanças comportamentais do protagonista, interpretado por um jovem Al Pacino (aos 35 anos na época).

Ele é Burns, policial novato, ambicioso e heterossexual a quem é dada a missão de se infiltrar na noite gay nova-iorquina com o objetivo de servir de isca a um violento assassino de homossexuais. O filme acompanha inicialmente a investigação do personagem, mas, a certa altura, passa a radiografar os efeitos da ação na rotina e nos pensamentos do policial.

É nessa mudança de perspectiva do filme - que acompanha brilhantemente o mergulho cada vez mais fundo de Burns num mundo até então desconhecido a ele - que "Parceiros da Noite" mantém sua força. Quando vemos Burns drogado se lançando com completa liberdade numa pista de dança, sentimos haver algo de realmente esquisito acontecendo diante de nós, espectadores. Aquilo não é mais uma investigação policial. É o delineamento de uma possível nova realidade.

Friedkin sempre foi um cineasta interessado nesses processos em que alguém acaba por se tornar parte integrante daquilo que investiga ou testemunha. Já era assim mesmo antes de "O Exorcista" e continua sendo - vide seu último trabalho lançado no Brasil, a obra-prima "Possuídos" (2006). Resgatar "Parceiros da Noite" três décadas depois de seu banimento é fundamental.

Antes mesmo de estrear, em 1980, "Parceiros da Noite" foi alvo de protestos. A oposição vinha de movimentos GLS, que se opunham a uma suposta visão negativa do filme para com o universo gay – ou, mais que isso, acreditavam que um filme sobre a caçada a um assassino de homossexuais só podia ser alguma investida de Hollywood a favor do conservadorismo.

Ainda que, efetivamente, o filme não corrobore nenhum dos ataques da época, o diretor William Friedkin teve seu poder artístico radicalmente diminuído. Seu principal filme depois de "Parceiros da Noite" foi "Viver e Morrer em Los Angeles" (1985), feito com orçamento bastante modesto. E assim se seguiu. Friedkin continuou como um autor convicto, mas seus filmes amargaram ostracismos quase sempre injustos.

*Publicado em "O Tempo" no dia 23.2.2012

sexta-feira, 2 de março de 2012

Crítica de "Drive", de Nicolas Refn

Marcelo Miranda

A cada década, o cinema dos EUA nos oferece alguns tipos renovadores de um gênero. No caso dos filmes de ação e policial, há "Operação França" e "Viver e Morrer em Los Angeles" nos 1970, "Duro de Matar" nos 80, "Pulp Fiction", "Fogo Contra Fogo" e "Os Bons Companheiros" nos 90, "Os Donos da Noite" nos 2000. Com apenas dois anos da nova década em andamento, "Drive" já pode perfeitamente figurar na listagem desses renovadores.

Renovação talvez nem seja a palavra exata. O que o dinamarquês Nicolas Winding Refn faz é reconfigurar elementos e estruturas fartamente reconhecíveis pelos espectadores e lhes dar uma roupagem que, antes de tentar aparentar novidade ou inovação, transmite a sensação de um novo vigor e um outro tipo de impacto.

"Drive" será imediatamente encaixado na prateleira dos filmes de ação, o que é tão verdadeiro quanto falacioso. O personagem central é devedor dos tipos caladões e ágeis criados por Clint Eastwood, Charles Bronson e Steve McQueen, mas é um ser tipicamente do século XXI, transitando por ruas e prédios hiperiluminados em Los Angeles. A trama sobre assaltos, golpes e atos de vingança e violência emula os filmes mais banais da década de 1980, mas faz de um simples ponto de partida de roteiro o trampolim para uma narrativa etérea, rarefeita, movida por sentimentos genuínos de afeto e cuidado e carregada de uma aura de sonho que quase te faz esquecer do que, afinal, é a história.

O detalhe de o protagonista interpretado por Ryan Gosling trabalhar como dublê de filmes de ação insere um elemento discretamente revelador em "Drive". Ao mesmo tempo em que há um realismo muito arraigado no desenvolvimento da trama, a todo instante há a sabotagem dessa própria impressão de verdade - seja na suspensão do tempo e espaço vista numa cena de elevador (que mescla lirismo e brutalidade numa medida magnífica), seja no colorido artificial de alguns ambientes, no uso dos corpos como moldura de enquadramentos e num jeito algo caricatural (mas jamais banal ou indiferente) de representar a violência.

Nisso o canadense Ryan Gosling é fundamental para a fruição. Um dos atores mais expressivos de atual geração - recentemente visto em "Tudo pelo Poder", de George Clooney -, ele entrega a encarnação gélida de um anti-herói cuja segurança no trato com as agruras urbanas é abalada pela simples visão de uma garota encantadora (vivida por Carey Mulligan). Gosling faz de seu motorista uma criação arquetípica da frieza e indiferença necessárias ao efeito buscado por Refn.

É um filme, afinal, que existe apenas no e para o cinema. O livro de James Sallis está por aí, e é bom (acaba de ser lançado no Brasil pela editora Leya), mas funciona só de camada superficial para "Drive" existir. O que está nas telas não permite muitas palavras. São as sensações, os choques e o encantamento que importam.

*Publicado em "O Tempo" no dia 2.3.2012

Sobre "Drive", de Nicolas Refn

Marcelo Miranda

Enquanto o controverso Lars Von Trier driblava as consequências de suas diatribes no Festival de Cannes em maio do ano passado - onde competia com "Melancolia" e do qual foi pessoalmente expulso devido a comentários interpretados como pró-nazistas -, outro dinamarquês, este bem mais discreto e sereno, chamava atenção.

Ao fim do evento, a surpresa: numa competição com Pedro Almodóvar, irmãos Dardenne, Nani Moretti e o próprio Von Trier, foi Nicolas Winding Refn quem recebeu a Palma de melhor direção, por seu impressionante "Drive". Depois de muitos adiamentos, enfim o oitavo longa-metragem de Refn estreou no Brasil. Esqueça todo o papo de Oscar, filme mudo, nostalgia, indicados e derivados. "Drive" é o que haverá de mais surpreendente e vigoroso nas telas de Belo Horizonte nos próximos dias.

Inspirado no livro homônimo do norte-americano James Sallis, o enredo acompanha um mecânico e dublê de filmes de ação (Ryan Gosling) que, à noite, dirige carros de fuga para assaltantes em Los Angeles. Sério, ascético, lacônico e extremamente profissional, esse personagem parece surgido de lugar algum. "Eu apenas dirijo", diz, encerrando o assunto com um de seus contratantes.

Num determinado dia, esse motorista se encanta com a vizinha Irene, e os rumos dessa atração - que vão envolver o marido dela, recém-saído da prisão, e um golpe malfadado - modificam toda a rotina quase matemática do protagonista. Tudo é embalado numa atmosfera onírica e hipnotizante, com músicas de teor oitentista, cores ora berrantes, ora discretas e um ritmo e tempo próprios.

"A ambientação criminal é abordada de maneira ultraviolenta, muitas vezes mais sugerida do que explícita. E a galeria de tipos humanos de Refn é construída com raivosa atualidade", diz o crítico, professor e curador paranaense Carlos Eduardo Lourenço Jorge. "Nenhuma dúvida de que ‘Drive’ é um ‘neonoir’ dirigido com admirável destreza formal, justa noção espacial e, o que é melhor, sem nenhum descuido quanto ao enfoque psicológico".

Apesar de adaptar um livro publicado em 2005, Refn teve a fagulha para "Drive" enquanto lia histórias para sua filha mais nova. "Comecei a ter vontade de fazer um filme com a estrutura dos autênticos contos de fada", revelou, em entrevistas concedidas durante o Festival de Cannes. "Nessas histórias, acontecem coisas muito bonitas até que, no fim, tudo se torna bastante sombrio".

Mesmo que o romance de Sallis dê mais informações sobre o piloto (exceto o nome, omitido tanto no livro quanto no filme), Refn optou por esvaziar o personagem interpretado por Gosling - o que potencializa o impacto à medida que o filme vai revelando do que essa figura é capaz de fazer. "Não sabemos nada sobre ele, e ele só fala quando questionado ou se tem algo importante a dizer. Isso o torna uma figura mitológica e misteriosa".

Nesse sentido, trabalhar com Ryan Gosling foi revelador para Refn - o que torna o projeto de "Drive" muito significativo desde sempre, pois foi Gosling quem sugeriu o nome de Refn para assumir a direção. Para o professor Carlos Eduardo Jorge, "Ryan Gosling, de certa forma, recupera e faz a reposição de um tipo físico e ficcional que andava meio exilado das telas desde a morte de Steve McQueen, em 1980, e a aposentadoria do Alain Delon".

Trajetória.
Ao ganhar um prêmio importante em Cannes aos 41 anos, o diretor Nicolas Winding Refn coroou uma trajetória independente de sucesso, que começou ainda na Dinamarca, em 1996. Quando estava com 24 anos, tendo concluído cursos de cinema nos EUA e em sua terra natal, lançou "Pusher", thriller urbano sobre traficantes de drogas com altas doses de violência.

Na mesma época, eclodia no país o Dogma 95, movimento de diversos cineastas dinamarqueses que pregava regras para filmes considerados "mais realistas e menos comerciais". Os títulos "Festa de Família", de Thomas Vinterberg, e "Os Idiotas", de Lars Von Trier, foram os primeiros a se adequarem ao que acabou se tornando menos um movimento estético do que um modismo provocador.

Refn não aderiu. Cinéfilo insano, preferiu fazer uma espécie de homenagem autoral a nomes como Quentin Tarantino e Martin Scorsese em "Pusher", e assim seguiu nas produções que se sucederam. "Bleeder", seu segundo longa, foi exibido no Festival de Veneza em 1999, o que começou a fazer seu nome circular fora dos círculos dinamarqueses.

A estreia em língua inglesa se deu no suspense "Medo X" (2003), com John Turturro e tendo elementos próximos aos delírios de David Lynch. A recepção morna fez Refn voltar a filmar na Dinamarca, onde realizou duas sequências de "Pusher".

"Drive" o levou de volta aos EUA, desta vez mais próximo do centro das atenções, por trabalhar com orçamento maior (US$ 15 milhões) e ter atores reconhecidos no elenco. O filme tem a força e relevância de fazer o próprio Refn ser apresentado a plateias mais amplas.

*Publicado em "O Tempo" no dia 2.3.2012