sábado, 15 de setembro de 2012

Cosmópolis, de David Cronenberg


O canadense David Cronenberg trouxe a Cannes 2012 uma pancada em termos políticos e estéticos como há muito ele não fazia. Cosmopolis adapta com jeito todo particular o romance de Don DeLillo, em produção cirurgicamente econômica do português Paulo Branco. Em cena, Eric, um yuppie numa limusine dentro do coração econômico de Manhattan e às voltas com protestos populares que fazem ponte direta do filme com movimentos recentes de ocupação em Wall Street.

Todo filmado em Toronto, no Canadá, Cosmopolis exala uma artificialidade provocadora na recriação de ambiente, com evidente uso de chroma key visto pela janela nas cenas internas do carro em contraste à autêntica fortaleza tecnológica no interior do veículo. O mundo verdadeiro de Eric está basicamente naquela limusine; o que está fora não lhe diz respeito, ou pelo menos não lhe dizia respeito até ele tentar refletir sobre o que surge pelo caminho. Há a imagem muito forte dessa limusine completamente pichada e maltratada servindo de símbolo perfeito ao próprio descascamento do personagem.

Robert Pattinson encarna com propriedade e segurança o executivo-escovinha que cisma em cortar o cabelo do outro lado da cidade. A interpretação do ator tem a carga fascinante de indiferença vista, por exemplo, no Ryan Gosling de Drive. A quebra da casca e a viagem física e mental desse personagem são o mote de um filme surpreendentemente verborrágico e reflexivo, em que a construção das cenas tem uma precisão digna de te levantar da cadeira quanto algo se desestabiliza. Um tiro absolutamente inesperado coloca o espectador, até então siderado pelo tom hipnótico de Cosmopolis, numa zona de desconforto ainda maior, em que absolutamente tudo é passível de acontecer. Usando o próprio cinema de Cronenberg como referência, é algo similar à cena do café em Marcas da Violência, porém mais abrupta e direta.

Dentro da filmografia de Cronenberg, Cosmopolis tem um visual e uma energia que dialogam diretamente com suas produções de maior risco, especialmente dos anos 1990, como Crash, Mistérios e Paixões e eXistenZ. O experimentalismo do filme quebra a sequência de projetos de estrutura mais clássica que o realizador vinha desenvolvendo desde Marcas da Violência e mantém a obsessão pelo corpo (suas funcionalidades e limites). “Tem cheiro de sexo exalando de todos os seus poros”, diz uma personagem a Eric. Cronenberg leva curvas e movimentos humanos para a essência do filme. Ele sempre filmou sexo muito bem, e em Cosmopolis há o complemento de uma reflexão, em diálogos e provocações, do significado da sexualidade numa sociedade materialista e esvaziada de valores.

Outro aspecto fascinante são os “solos” de diversos atores (Samantha Morton, Juliette Binoche, Mathieu Amalric, Paul Giamatti) em interação com a angústia crescente do protagonista. Cada um representa um tipo de questionamento, uma outra forma de olhar as coisas, a problematização das certezas que a realidade daquele executivo construiu através de riqueza e regalias – e a exploração da mão de obra proletária. O desfecho, em especial (uma longa cena de diálogo em tensão total), põe abaixo as certezas e promove o encontro com o mundo “verdadeiro”.

É uma experiência curiosa ver Cosmopolis seguindo uma sequência de filmes particularmente instigantes (Like Someone in Love, de Abbas Kiarostami, e Holy Motors, de Leos Carax), que exigem adesão a mundos exclusivamente cinematográficos a partir de elementos como carros em deslocamento, diálogos filmados dentro de “bolhas” isoladas e a colocação em xeque da noção de representação e realidade. Uma trinca marcante, desde já.

*Publicado em "Filmes Polvo" em maio de 2012, na cobertura do Festival de Cannes

Febre do Rato, de Cláudio Assis


Os filmes do pernambucano Cláudio Assis sempre explicitaram a forte pessoalidade do trabalho de seu realizador, mas nenhum deles ("Amarelo Manga" em 2002, "Baixio das Bestas" em 2006, para ficar só nos longas-metragens) pareceu trazer um personagem tão visceralmente similar à figura de Cláudio do que o poeta Zizo, protagonista de "Febre do Rato". A relação era tanta que Beto Brant, diretor de "O Invasor" e "Crime Delicado", leu o roteiro e sugeriu que o próprio Cláudio interpretasse o papel.

No filme que estreia hoje em Belo Horizonte, porém, quem faz Zizo é Irandhir Santos, parceiro de longa data do cineasta. Desta vez, segundo Cláudio, o que ele fez foi poesia. "Queriam que eu contasse as minhas histórias de outro jeito. Pronto, aí está", dispara ele. "É um filme sobre o quanto você paga para ser quem você é".

Adepto de uma abordagem brutal da realidade no Recife - primeiro o aspecto urbano, em "Amarelo Manga", depois o rural, em "Baixio das Bestas" -, Cláudio Assis criou uma capital pernambucana atemporal em "Febre do Rato". A cidade é contemporânea, disso não há dúvidas, mas o tom, o fluxo das imagens, a maneira como o realizador a coloca na tela, vem de outro tempo - um tempo indefinido.

Daí que a escolha do preto e branco, magnificamente fotografado por Walter Carvalho, é tão importante. "Se eu filmasse em cores, não chamaria tanta atenção para alguns aspectos que eu quis reforçar. Fiz o filme como uma experiência sobre esse espaço que é o Recife de hoje".

O longa segue o dia a dia de Zizo, poeta marginal que imprime desenhos e escritos num panfleto distribuído pelas ruas. Ele brada a todo instante em nome da liberdade, do amor livre, do olhar poético sobre o mundo. "Sou fornecedor de sonhos", exalta.

Um grupo de amigos o acompanha em suas crenças. Entre eles, há o coveiro vivido por Matheus Nachtergaele, que tem uma relação malresolvida com um travesti; e as vizinhas adeptas do álcool e da sexualidade ardente, uma delas sendo Maria Gladys, musa "marginal" do cinema de Julio Bressane e Rogério Sganzerla e que, aos 72 anos, não economiza em desprendidas cenas de nudez. "É um filme de amor, acima de tudo, e é libertário", diz Cláudio.

Zizo transita levemente por Recife até se deparar com Eneida (vivida por Nanda Costa), que se torna a musa total do poeta na mesma intensidade com que insiste em rejeitá-lo. Essa relação nunca explicitamente consumada na tela entre Zizo e Eneida ganha os principais contornos efetivamente poéticos do filme, culminando num momento especialmente intenso envolvendo boca e urina. "Ousadia não se compra na esquina" é um dos gritos de Zizo e, não à toa, a frase favorita de Cláudio Assis dentre as várias do personagem.

O roteiro, escrito por Hilton Lacerda ao longo de anos e incorporado por colaborações de Cláudio e do escritor Xico Sá, parte de uma expressão popular do Nordeste que dá título ao filme. A "febre do rato" é o termo usado para definir o estado de uma pessoa fora de controle. Ao seu modo, Cláudio Assis se descontrolou como nunca no novo filme, no melhor de todos os sentidos. "É assim que o cinema é feito, ou pelo menos aquele em que acredito: com emoção, com sentimento, com vontade", afirma o diretor.

Para o futuro, Cláudio tem dois projetos em andamento. Um deles é "Piedade", a partir de um texto inédito de Xico Sá. Outro é - surpresa - um filme infantil, a ser realizado a pedido do filho do diretor, Francisco. Intitulado "Chão de Estrelas", deverá se focar nos sonhos e desejos infantis e no olhar de descoberta de quem está começando a enxergar o mundo com mais afinco. "O cinema, para mim, é arte, é a construção de uma nação. Assim quero continuar", decreta o alter ego de Zizo.

*Publicado em "O Tempo" em 7.9.2012

"Pânico" em blu-ray


Em 1996, a chegada de "Pânico" aos cinemas representou o começo de um fenômeno. Primeiro, pela renovação de um gênero desgastado, o terror de assassinatos (ou "slasher movie"); segundo, pelo início de uma franquia que iria render ainda outros dois filmes nos cinco anos seguintes e ainda a sobrevida feita uma década depois, com "Pânico 4", exibido em 2011; e por fim, devido à quantidade até insuportável de cópias, pastiches e deboches que até hoje são feitos.

A quadrilogia original, toda ela dirigida pelo norte-americano Wes Craven, ganhou um elegante box lançado pela distribuidora Imagem. Há a opção dos quatro títulos em DVD e outra com os longas na alta definição do Blu-ray.

Entre vários elementos, um dos mais notáveis da franquia "Pânico" foi o quanto sua longevidade não a envelheceu. Se voltarmos ao filme de 1996, ele permanece um terror autêntico e surpreendente. Por mais que os elementos centrais tenham sido exaustivamente repetidos e referenciados, ainda permanecem com o frescor proporcionado pelo excepcional domínio de Craven na narrativa, na construção do suspense e no equilíbrio entre a trama propriamente (escrita pelo roteirista Kevin Williamson, que também se tornou uma grife) e as várias referências aos clichês do próprio gênero.

Com o sucesso, Craven melhorou o que parecia ótima e fez um filme ainda mais elaborado - e também ambicioso em "Pânico 2" (2000). Nada como a experiência de quem foi inventor de um dos mitos do horror no cinema, o assassino Freddy Krueger, bolado por Craven para seu "A Hora do Pesadelo" (1984). O personagem foi utilizado num sem-fim de sequências, recomeços e remakes.

No caso de "Pânico", a imagem icônica permanece a da fantasia do assassino (ou, em alguns casos, assassinos), uma roupa típica de festa do Dia das Bruxas que virou símbolo do filme. Alguns espectadores que viram os filmes há muito tempo podem ter dificuldade de lembrar quem matou e quem morreu, mas sempre vão ter aquela máscara como referência.

Depois de uma terceira parte menos expressiva (ainda que bem significativa), a franquia foi deixada de lado. Parecia concluída como trilogia, até que Craven decidiu voltar com "Pânico 4" e fez um dos filmes mais interessantes lançados no ano passado. Ao seu modo, o cineasta realizou o grande "testamento" da indústria de Hollywood para a era do excesso de exposição, da fofoca, do egocentrismo midiático. "Pânico 4" é uma reflexão madura do século XXI, travestido de terror "slasher" com sangue a rodo.

Coleção "Pânico"
Scream, EUA, 1996, 1998, 2000, 2011
ÁUDIO:
inglês e português
LEGENDAS: português, inglês
FORMATO DE TELA: widescreen 16:9 (filmes 1 e 4), tela cheia 4:3 (filmes 2 e 3)
Suspense/terror - Cor - Imagem
Direção: Wes Craven
Com Neve Campbell, Courteney Cox, David Arquette, Matthew Lillard, Skeet Ulrich, Liev Schreiber
PREÇO: R$ 74,90 (DVD), R$ 149,90 (blu-ray)

*Publicado em "O Tempo" em 16.8.2012

O vaivém nos curtas

Por muitos cantos, o clichê ainda é propalado: o curta-metragem é uma "escada" para o longa-metragem. Falsa premissa, já negada várias vezes ao longo da história por realizadores que, num movimento muitas vezes curioso, fizeram curtas, depois partiram para o longa e, em determinado momento, retornaram ao curta.

Recentemente, o vaivém ganhou pelo menos dois contendores de envergadura no panorama da produção audiovisual brasileira. Um é o gaúcho Jorge Furtado, com seu novo trabalho, "Até a Vista"; outro é a paulista Juliana Rojas (foto abaixo), cuja produção mais recente é "O Duplo". Ambos os títulos estão na programação da Mostra Brasil do 23º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo.

Furtado e Rojas são de gerações distintas. Ele, aos 53 anos, tornou seu nome conhecido no cinema brasileiro com o curta "Ilha das Flores" (1989), marco da produção do país ainda hoje reverenciado. Após vários outros trabalhos de pequena duração, o cineasta estreou no longa com "Houve uma Vez Dois Verões" (2002) e fez bastante sucesso com "O Homem que Copiava" (2003).

Mesmo assim, Furtado se rendeu às origens e lançou o curta "Até a Vista" no Cine PE, em Recife, em abril deste ano - e, de lá, saiu com os prêmios de melhor filme, roteiro, ator (Felipe de Paula) e trilha sonora. Realizado pela produtora de Furtado, a Casa de Cinema de Porto Alegre, originalmente para o projeto Fronteras, o filme é uma coprodução com a 100 Bares, pertencente ao argentino Juan José Campanella, conhecido pelos sucessos "O Filho da Noiva" (2001) e "O Segredo dos seus Olhos". O trânsito entre cinema e televisão sempre foi bastante comum para Furtado e o faz lidar naturalmente com a mudança de trajetos entre duração e formato dos filmes.

Os olhares de dúvida são uma constante para quem, especialmente no Brasil, se arrisca a sair de um longa-metragem para fazer mais curtas. Juliana Rojas, 31, confirma. "Há, sim, um estranhamento", conta ela, que fez dois filmes curtos ("Pra eu Dormir Tranquilo" e "O Duplo") depois de estrear em festivais e no circuito comercial seu primeiro longa, "Trabalhar Cansa" (2011), dirigido em parceria com Marco Dutra. "Existe um pensamento muito de 'carreira' que não costuma incluir o curta-metragem. Então muita gente acaba não entendendo por que você, depois de realmente iniciar uma 'carreira' ao fazer o longa, voltou a fazer curta".

A cineasta tem trajetória especial. Antes de "Trabalhar Cansa" - que competiu na mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes -, havia feito vários curtas-metragens. Dois deles, também com Dutra ("O Lençol Branco" e "Um Ramo"), foram exibidos em Cannes em 2004 e 2007, respectivamente. "O Duplo" levou Rojas novamente à França, em maio deste ano, e lhe rendeu um prêmio na competição de curtas da seção Semana da Crítica.

Mesmo assim, Rojas sente que, na hora de buscar apoios para a feitura de um longa-metragem, a "carreira" nos curtas é válida somente uma vez. "O 'Trabalhar Cansa' é o que passou a ser considerado na minha trajetória. Em geral, não faz diferença a um possível apoiador ou patrocinador o fato de a gente ter vários curtas ou que tenhamos ido a Cannes com eles. Isso servia antes da estreia do longa. Depois, é o 'Trabalhar Cansa' que vai importar no currículo".

É um raciocínio tipicamente comercial de um mercado de produção essencialmente voltado a "empreendimentos", na definição do cineasta e curador paulista Francisco César Filho - popularmente conhecido como Chiquinho. Com quase três décadas de dedicação absoluta ao cinema em diversas frentes, ele aponta meados da década de 1980 como a guinada à valorização do curta-metragem enquanto forma autônoma de linguagem.

"Naquela época, o curta se tornou um formato de ponta no audiovisual no mundo inteiro", conta Chiquinho. "Foi um período em que cineastas importantes descobriram que ali não estava apenas um formato, mas outra maneira de fazer filmes. Nomes como Jean-Luc Godard e Wim Wenders passaram a trabalhar com curtas mesmo depois de terem feito alguns longas-metragens", observa.

Liberdade.
O cineasta Francisco César Filho, que tem vários curtas-metragens no currículo, demorou quase 30 anos para se render à realização de um longa. Em janeiro deste ano, exibiu pela primeira vez "Augustas", no encerramento da Mostra de Cinema de Tiradentes. "Sob diversos aspectos, não me interessa. Existe um tipo de comprometimento, especialmente em relação a lançamento, que foge daquilo que eu gosto realmente de fazer", afirma.

Ele acredita que a liberdade proporcionada por um curta-metragem - tanto em termos estéticos e criativos quanto na mecânica financeira - torna a feitura algo bastante sedutor a realizadores de criatividade pulsante. "A ideia de comércio é inerente ao longa, e não há muito como escapar, ainda mais atualmente, em que se valoriza o grande espetáculo em detrimento da criação. Já o curta ainda preserva o descompromisso mercadológico, o que é muito libertador".

O cineasta aponta que, quando um realizador de longa se arrisca num curta, sai "oxigenado, revigorado, estimulado". "Em geral, os diretores passam tanto tempo preocupados com a realização de longas que não têm tempo de brincarem e se aproveitarem de outros formatos. Mas alguns tentam e, quando conseguem, sentem-se renovados para sempre".

Um exemplo foi o paulista Beto Brant - que veio do curta-metragem e depois enveredou em longas como "Os Matadores" (1995) e "O Invasor" (2001). No ano passado, ele participou do Cel.U.Cine, festival de micrometragens para o qual fez "Nicinha, um Transe Amazônico" em celular e com apenas três minutos de duração. Ficou encantado com as possibilidades proporcionadas, chegando a afirmar, na época, que tinha revolucionado sua maneira de pensar a liberdade numa realização.

Para Juliana Rojas, o maior motivador de permanecer fazendo curtas mesmo depois de "Trabalhar Cansa" é justamente os aspectos de formação e risco. "O processo de um longa, apesar de ser importante, é um tanto traumático. Tem uma complexidade grande e um ritmo desgastante física e emocionalmente, e você precisa estar muito apaixonado pelo projeto para se dedicar tanto a ele", diz ela. "Já o curta é diferente. Ele é um haikai, um recorte, não exige que você faça 'a grande ideia'. É outro tipo de aprendizado e permite que se experimente e se aprenda muita coisa que, no longa, não seria possível".

A realizadora pretende seguir transitando entre os formatos, o que lhe garante estar sempre em atividade. Rojas prepara um curta experimental, "Wild Track"; outro longa, "As Boas Maneiras", com o amigo Marco Dutra; e um telefilme para a TV Cultura, "Sinfonia da Necrópole", definido por ela como "um musical num cemitério".

*Publicado em "O Tempo" em 25.8.2012

Entrevista: Gonçalo Tocha

"É na Terra não É na Lua", do português Gonçalo Tocha, foi exibido no festival É Tudo Verdade deste ano. Em seu segundo longa-metragem, Tocha faz uma viagem sensorial e quase mística à ilha do Corvo, localizada nos Açores. "Ele e a equipe se instalam por lá e convivem por um longo tempo com seu meio milhar de habitantes. O filme que gravam é uma espécie de diário de bordo, em que a descoberta de um mundo isolado se faz a partir de seus reflexos numa subjetividade", destaca Amir Labaki, fundador e curador do festival. "São três horas absolutamente hipnóticas".

Leia abaixo uma conversa com Gonçalo Tocha, realizada por e-mail, sobre "É na Terra não É na Lua".

A partir de quais interesses surgiu a proposta de "É na Terra não É na Lua"? Surgiu da minha atracção pelo imaginário das ilhas, pela paixão que tenho com o arquipélago dos Açores (terra de família e memória de infância), do desejo de conhecer e descobrir a ilha mais afastada e pequena, da vontade de estar no meio do mar e na sequência do meu primeiro filme, o "Balaou" (2007), filmado a bordo de um veleiro ao largo da ilha maior dos Açores, S.Miguel.

Em que medida a experiência de ir até a ilha do Corvo foi se ajustando ao seu modo de filmar, de captar imagens e de documentar aquele espaço? Fui-me transmudando e influenciando na forma de viver e estar naquela ilha. Deixei que tudo pudesse influenciar a minha forma de filmar, de modo a que surgisse uma coisa nova entre mim, a ilha e os seus habitantes. A rodagem demorou perto de dois anos, entre idas e vindas. No meio desse tempo, tudo se foi adensando e alterando: as histórias, os mitos, a minha entrada neste microcosmo e, no final, a minha condição de habitante temporário da ilha.

O que foi mais marcante ao ter o filme pronto? O que mais me surpreendeu foi o quão podemos nos afastar da energia inicial que nos leva a começar um filme e do longo caminho que tive de fazer, fora da ilha, para a ela voltar e a este impulso inicial e supremo de descobrir as coisas do mundo pela primeira vez. Nisto, a montagem pode ser a nossa perdição. Para mim, não deveríamos falar de montagem de filme. Só há reorganização e sublimação da tua experiência prática e cinematográfica de rodagem.

Tenho a impressão de que existe uma visão quase "cósmica" da natureza na sua abordagem, algo próximo dos filmes de Terrence Malick e de Michael Cimino, que se apropriam de maneira muito forte dos espaços onde filmam. Ainda que goste, não são os meus autores de referência. Em todo o caso, eles têm uma dimensão panteísta que me interessa muito. O espaço onde vais filmar é tudo, o tal espaço fundador com que sonhaste, a que se junta o máximo tempo possível que tiveres para lá habitar. Os temas, ou assuntos, podem ser ratoeiras de um filme, mas o espaço é a sua verdadeira trama. A partir daí, tudo pode acontecer: as nuvens que passam, a onda que sobe o cais, o som da discoteca no meio da noite, o bezerro que acaba de nascer...

No Brasil, o circuito de documentários é restrito, apesar da grande produção. Em Portugal, existem muitos documentaristas em atividade? Eles conseguem exibir seus filmes? Em Portugal é capaz de haver, neste momento, mais pessoas a fazer documentário do que ficção. Isto porque os apoios para fazer filmes são mínimos, há cada vez menos, e algumas formas de documentário permitem-te ir à aventura com uma câmara, quase sozinho. Houve um grande "boom" de documentaristas portugueses a partir de meados dos anos 1990 e, a partir daí, tudo mudou. Há uma energia vital nos realizadores em que uns estimulam os outros. Em todo o caso, à quantidade não corresponde necessariamente a força dos filmes. Os casos de documentários portugueses de referência que inovaram o género vieram de cineastas que partem da ficção (Pedro Costa e Miguel Gomes). Exibir o filme comercialmente em sala é toda uma outra questão. O cinema norte-americano continua a monopolizar 95% das salas.

*Publicado em "O Tempo" em 28.8.2012

Quentin Tarantino em livro


Ainda que tão bem-sucedido em seus elementos visuais, o filme se parece como parte de um teste do diretor, uma ocasião para um novo cineasta mostrar seus talentos". A frase foi escrita pelo crítico Todd McCarthy, na ocasião do lançamento de "Cães de Aluguel" nos cinemas, em 1992. Na mesma época e do mesmo filme, Leonard Klady escreveu: "De sua cena de abertura pode-se imediatamente reconhecer que o roteirista/diretor Quentin Tarantino é um jovem talento dos bons".

Antologia, fortuna crítica, almanaque. Várias são as acepções possíveis para o ótimo "Quentin Tarantino", organizado por Paul A. Woods em 2005 nos EUA e lançado agora no Brasil pela Leya/Barba Negra. Vem em caprichada edição repleta de fotos e no simpático formato quadrado 23 x 20 cm.

Reunindo vasto material que abarca cada momento da trajetória do cineasta norte-americano, o livro tem desde críticas, reportagens e entrevistas a trechos de roteiro e textos assinados pelo próprio Tarantino. Para manter a atualidade do material, a editora brasileira incluiu três artigos inéditos assinados por Cassius Medauar e versando sobre os trabalhos lançados pelo realizador após 2005 (a saber: "Sin City", de Robert Rodriguez e no qual ele dirigiu uma única cena; e "À Prova de Morte" e "Bastardos Inglórios", que levam sua assinatura).

O que de mais estimulante sobressai em "Quentin Tarantino" é a viagem através de uma obra marcada pela violência, referências pop e cults e muita autoironia. O choque causado por "Cães de Aluguel" no Festival de Sundance é definido numa conversa telefônica entre a jornalista Ella Taylor e uma amiga: "Um filme indizivelmente violento tomou o festival como uma tempestade".

O sentido histórico de declarações como essa embalam a leitura, passando pelo impacto ainda maior de "Pulp Fiction" em 1994, quando levou a Palma de Ouro em Cannes. O trecho sobre "Jackie Brown" (1997) traz adendo delicioso escrito por Tarantino sobre o subgênero "blaxploitation", que tanto o inspira. O livro ainda inclui o artigo "Não Tente Isso em Casa", em que Ian Penman faz sérias restrições ao cinema "tarantinesco".

Filmes só roteirizados por ele (como "Amor à Queima-Roupa" e "Assassinos por Natureza") e outros em que também esteve no elenco principal ("Um Drink no Inferno") ganham devido espaço analítico. É tanta informação de fontes variadas que periga surgir uma certa sensação de repetição.

"Quentin Tarantino"
Organização. Paul A. Woods
Tradução. Santiago Nazarian
Editora. Leya/Barba Negra
Páginas. 384
Preço. R$ 49,90

*Publicado originalmente em "O Tempo" em 15.9.2012

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

"Aterrorizada" (The Ward), de John Carpenter

A frontalidade da encenação
De volta aos cinemas após dez anos, o mestre John Carpenter faz Aterrorizada, terror psicológico expressivo, mas aquém de seu talento


John Carpenter é o mestre da frontalidade no cinema: a sua obra é uma longa,
incontestável, indispensável e paciente insistência num mundo que já não se
quer reconhecer nela.

A afirmativa do crítico francês Julien Husson se refere à característica do diretor norte-americano de se colocar sempre firmemente diante daquilo que ele está filmando. Não num sentido puramente físico (como estar parado olhando para alguma coisa de frente). A noção de frontalidade, aqui, não se refere a um enfrentamento propriamente dito. Como o próprio Husson também escreve, “a frontalidade é a arte de pôr em relação e não tem nada a ver com um antagonismo ‘simplista’ nem com um dualismo ‘idealista’”.

Ora, “pôr em relação”, em se tratando de cinema, pode ser próximo de “pôr em cena”, termo possível de ser vinculado ao que se chama mise en scène. Portanto, o que está em jogo no cinema de Carpenter é como a encenação dará conta de um mundo regido por regras próprias e liberto das amarras de uma noção meramente realista do que está sendo apresentado na tela. “Serve-se da evidência, da potência e da imprevisibilidade da ficção”, completa Husson. Carpenter parte da ficção para extravasá-la e chegar ao real – ou, mais propriamente, a uma moral verdadeira daquilo que ele narra.

O mais recente filme do diretor, Aterrorizada (The ward, 2011), segue estes preceitos. A situação dada é típica dos melhores momentos de John Carpenter: sem memória e sem saber o motivo, a jovem Kristen (a atriz Amber Heard) é trancada num hospital psiquiátrico; lá dentro, relaciona-se com outras detentas e descobre que uma estranha força sobrenatural está eliminando cada uma das pacientes. A frontalidade de Carpenter já começa aqui. Em vez de um conflito inicial, o espectador se depara com dois – a falta de lembranças de Kristen e o mistério em torno das mortes no hospital. A chave de apreensão do filme estará sempre no equilíbrio entre essas instâncias narrativas; a cada novo dado do enredo ou algum susto repentino, a tensão terá vários caminhos pelos quais percorrer. A evidência de que há diversas possibilidades por onde o filme pode provocar medo ou suspense é frontal ao próprio mecanismo que realmente está movendo as peças em jogo.

A saber (se não viu o filme nem quer conhecer detalhes, pule este parágrafo): Carpenter encontra maneiras engenhosas de tentar subverter – ou pelo menos renovar – alguns clichês típicos de roteiros sobre  personagens com múltiplas personalidades. Emulando similares dos últimos anos, alguns bastante significativos, como Síndrome mortal (Dario Argento, 1996), Alta tensão (Alexandre Aja, 2003), Mad detective (Johnnie To, 2007) e Ilha do medo (Martin Scorsese, 2010), Aterrorizada faz com que sua protagonista não simplesmente lute ou aceite as outras faces de si mesma: ela própria é uma das várias faces de alguém. Em vez de se resignar com o que é, Kristen deverá sucumbir ao que não é. Diante disso, recisará deixar de existir, dando lugar a Alice, a pessoa que de fato a projetou para fora de uma mente perturbada.

Como proceder assim através da mise en scène? Ou como ser frontal a uma premissa cujo entendimento pleno depende de informações deliberadamente suprimidas e somente reveladas no momento considerado mais “apropriado” por quem escreveu a história? Se pensarmos na obra de John Carpenter, será fácil perceber que ele não é um cineasta propenso a enigmas ou omissões que sirvam de muleta para deixar o público esperando algo ser revelado.

Mesmo filmes cujos pontos de partida são situações sem “explicação” imediata (A bruma assassina, O enigma de outro mundo, O príncipe das trevas, À beira da loucura, Eles vivem ou A cidade dos amaldiçoados), a já citada frontalidade de Carpenter provoca rachaduras dentro do inexplicável e faz com que a atmosfera dos ambientes e a moralidade dos personagens conduzam a ação. Seguindo os melhores ensinamentos apreendidos com o mestre Howard Hawks, Carpenter desfia os conflitos de cada filme simultaneamente aos seus desdobramentos – daí o impacto provocado não só pelo crescendo dos filmes em si, mas pelos desfechos quase sempre acachapantes (e, várias vezes, em aberto). O choque vem porque tivemos acesso constante aos rumos que nos levaram (a nós e aos personagens) até ali. Não houve  segredos” ou “intrigas secretas”. Houve a coragem (e a moral) de nos abrir o leque de possibilidades e nos permitir segui-las.

A boa trapaça de Aterrorizada é que estamos no mesmo tipo de mecanismo – porém, desta vez, invertido. O filme se desenvolve dentro de si mesmo, a partir do momento em que Kristen – esta imagem mental cujo propósito é negar a evidência de que Alice seja uma garota com transtornos psíquicos – se manifesta. A primeira aparição da moça é correndo floresta adentro, rumo a um casarão que será incendiado sem motivo aparente. Quem vemos é Kristen, porque ela tomou conta de Alice. Dali em diante, o filme seguirá sob o ponto de vista dela, até o momento em que a verdade do que assistimos revela a farsa, algo que era também uma farsa à própria Kristen.

Em À beira da loucura (1994), o personagem vivido por Sam Neill também sofria de distúrbios mentais. Carpenter provocava um curto-circuito na realidade a partir das aflições do protagonista, obrigando-o a dar voltas e voltas, quase sempre fazendo-o retornar ao ponto de partida, num looping constante e angustiante cujo ápice é Neill assistindo a si próprio numa tela de cinema. A diferença para Aterrorizada, o único outro filme de Carpenter a se ambientar “dentro” da mente de alguém, é que, neste, há a tentativa de ambientar a trama numa chave mais distante do delírio. O fantástico está presente na imagem fantasmagórica de uma morta-viva que persegue as garotas, mas essa criatura do além surge como um dado concreto, com o qual o espectador se relaciona naturalmente, por saber de antemão estar presenciando uma história de terror.

Narrativamente, o filme é linear e clássico, e o que se espera dele é que logo surja alguma resolução para dar conta daquela aparição e do porquê Kristen estar presa. À beira da loucura era o contrário: não tínhamos para onde olhar nem o que focar, ou mesmo quais respostas procurar. Éramos arremessados na confusão interna de um mundo inteiro (e não apenas de um único espaço, ou numa única situação), mundo este sendo regido por alguma mente insana. Por se ater a um espaço específico cercado por alguma ameaça externa, Aterrorizada se vincula ao olhar hawksiano de Carpenter para um grupo de pessoas confinadas. O título original do filme, The ward, pode ser traduzido como “a ala”, em referência ao local onde Kristen está internada.

É neste lugar que ela e as outras garotas vão ser obrigadas a conviver e enfrentar, juntas e à revelia, os perigos que vêm não se sabe de onde. Ecos já dos primeiros filmes de Carpenter (Dark Star, Assalto à 13ª Delegacia e Halloween) podem ser sentidos aqui, vindos de ainda mais longe, lá do seu fascínio por Onde começa o inferno (1959), El Dorado (1966) e Rio Lobo (1970), nos quais Howard Hawks versa sobre sujeitos encurralados. Ao longo de duas dezenas de títulos, Carpenter quase sempre voltou a esse cerne, fazendo com que personagens antagônicos precisassem deixar de lado as controvérsias (mesmo que temporariamente) e se unissem contra um mal em comum.

UM RETORNO
Vão-se dez anos desde a incursão anterior de John Carpenter nos cinemas. Fantasmas de Marte foi lançado em 2001 e não teve a melhor das repercussões. Jean-Baptiste Thoret, num emocionado lamento pela frustração com o filme de um de seus cineastas de cabeceira, chegou a escrever: “A América mudou, ele [Carpenter] sabe-o melhor do que ninguém, e aquele que ontem era corajoso é hoje demagógico”. Nas bilheterias, o filme não se saiu muito melhor, sendo olhado com desconfiança por quase todo lado como mais um trabalho a explorar o filão de produções similares à época (1), sem o brilhantismo e a provocação inclusive dos longas imediatamente anteriores de Carpenter, Fuga de Los Angeles (1996) e Vampiros (1998).

Um pouco por isso e também por um assumido cansaço e desânimo (2), John Carpenter decidiu dar um  tempo do cinema. Entre 2001 e 2011, porém, registram-se incursões do diretor em projetos de televisão. Convidado por Mick Garris, o cineasta fez dois episódios para a série Masters of Horror, veiculado no canal Showtime. Pesadelo mortal (Cigarette Burns, 2005) e Pro-life (2006) foram as únicas oportunidades de se assistir a trabalhos inéditos de Carpenter na última década. Únicas e também bastante expressivas, é bom frisar. Pesadelo mortal retomou diversos elementos de À beira da loucura, inclusive o clima detetivesco mesclado ao sobrenatural na busca por uma obra de arte (no caso, um filme desaparecido) que teria provocado a morte de várias pessoas; por sua vez, Pro-life era uma espécie de versão de Onde começa o inferno ambientada numa clínica de abortos e tendo o capeta em pessoa como
antagonista.

Reanimado pela experiência televisiva, Carpenter decidiu retomar a carreira no cinema e disse ter se empolgado com a história de Michael e Shawn Rasmussen que originaria Aterrorizada. Vindo de um realizador de certeiros e provocativos olhares sobre a América e seus padrões e comportamentos (“um cineasta que segue modelos antigos, mas foi sempre tematicamente contemporâneo e, palavras suas, ‘profundamente político’”, como escreveu o crítico português Luís Miguel Oliveira), soa irônico que Carpenter tenha se seduzido por um argumento aparentemente tão banal, numa época em que o banal, para um artista como ele, não é (ou não deveria ser) suficiente, em vista de seu próprio histórico e do olhar crítico em relação ao espaço onde vive.

Se pensarmos em um ou dois nomes fortes do cinema de horror norte-americano cujas ascensões se deram a partir dos anos 1970, junto com John Carpenter – e os quais, em relação a ele, tendem a muitas vezes serem inferiorizados –, Aterrorizada pode parecer apenas um exemplar bem-executado do gênero. George A. Romero, por exemplo, entre 2005 e 2009, renovou-se na trinca Terra dos mortos, Diário dos mortos e Ilha dos mortos, captando todo um imaginário de vigilância, racismo e amoralidade pós-11 de Setembro. Wes Craven, depois de uma fase terrível na qual o título de seu último filme (Amaldiçoados) parecera se referir ao próprio cineasta, revigorou-se razoavelmente bem. Primeiro com o subestimado A sétima alma (2010), retomando muito do clima de horror juvenil que ele ajudou a inventar em A hora do pesadelo (1984), ainda seu grande clássico. Depois, veio a excelência surpreendente de Pânico 4 (2011), no qual  Craven demonstra estar completamente atento e vinculado não só às novas tecnologias (caminho mais fácil para se pensar o filme), mas a um certo mal estar em torno das ambições de ser importante, de aparecer na mídia, de ser alguém – e Craven leva isso para a encenação do filme de maneira quase literal, sem nunca omitir o fato de estar trabalhando na quarta parte de uma franquia de sucesso que parecia ter sido sepultada anos atrás.

Diante dos trabalhos mais recentes de Romero e Craven, Aterrorizada, por mais que carregue grande força expressiva, parece um filme menor. Se tivermos de parâmetro a filmografia de John Carpenter em pessoa, isso fica ainda mais evidenciado. O diretor aparenta, aqui, ser muito mais um artesão eficiente do que um mestre, menos um questionador das estruturas (do cinema e do mundo) do que um adepto delas. Carpenter está ali, presente em cada fotograma de Aterrorizada, e por isso mesmo o filme é bastante válido numa época em que o ideário do cinema de horror se pauta em gratuidades, franquias forçadamente intermináveis e refilmagens estapafúrdias. À sua maneira, Carpenter é o mesmo de sempre – o artista que vai contra o sistema e contra os padrões. Mas o filme pode soar também apenas como o tropeço ingênuo de quem sabe o que pensa e o quer dizer, mas se desviou das próprias crenças porque talvez se cansou da falta de resultado delas. O cinema deve celebrar a volta de John Carpenter tanto quanto deve torcer para que John Carpenter realmente volte.

POST-SCRIPTUM
Se John Carpenter esteve afastado das telas por dez anos, ao menos no Brasil isso vai continuar igual. A distribuidora Imagem Filmes decidiu lançar Aterrorizada apenas em DVD e Blu-ray, passando ao largo dos cinemas. É o mesmo destino de filmes recentes de outros nomes importantes do terror, como Dario Argento (Sleepless, O Jogador Misterioso e Giallo), George A. Romero (Diário dos mortos e Ilha dos mortos) e Joe Dante (O buraco). Wes Craven, por enquanto, tem conseguido ficar fora dessa indesejável relação.

NOTAS
(1) Um ano antes, outro cineasta de prestígio, Brian De Palma, lançara Missão: Marte, filme também mal recebido por crítica e público.
(2) Em entrevista ao site Collider, John Carpenter afirmou: “Em 2001, eu estava completamente cansado de dirigir. Precisava parar, dar um tempo e descansar disso tudo. Tinha prometido a mim mesmo que, quando parasse de amar o cinema e o trabalho, eu não o faria mais. Foi o que aconteceu”.

*Texto originalmente publicado na edição 18 da revista Teorema, em 2011

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Crítica: Billi Pig, de José Eduardo Belmonte

A piada fácil surge logo na abertura de Billi Pig. A bela Grazi Massafera, ex-Big Brother Brasil, segura uma réplica da estatueta do Oscar no meio de um ritual. A personagem se chama Marivalda e pede a alguma entidade que lhe permita ser uma grande atriz. O humor da cena é tão óbvio quanto autossatírico: de imediato, o diretor José Eduardo Belmonte se coloca lado a lado com sua protagonista. Ambos têm desafios a partir dali. Ela quer ser atriz; ele quer fazer uma comédia popular, algo inédito numa trajetória que somava antes quatro longas-metragens, todos dramas de carga existencial (discreta exceção feita a Subterrâneos, o primeiro e que já guardava viés irônico e mordaz). Com o ritual de Marivalda, perpetrado em delírio por Milton Gonçalves, ícone do audiovisual brasileiro, Belmonte se permite mergulhar em quaisquer caminhos que lhe forem necessários. Mal ou bem, Billi Pig se sustentará todo a partir desse prólogo – que, apesar de fantasioso, não se difere em nada no tom geral e mágico empregado ao longo do filme. Sonho e realidade serão sempre a mesma coisa em Billi Pig, o que dá a Belmonte liberdade total para seus destrambelhos.

O filme é uma rara incursão do cinema brasileiro na comédia abertamente fantástica – aquela que não busca explicações metafísicas ou científicas para o humor a ser empregado. Não há conjunção de planetas (Se Eu Fosse Você), traumas amorosos (A Mulher Invisível) nem máquinas do tempo (O Homem do Futuro). A fantasia de Billi Pig é intrínseca a seu universo. Um porco cor-de-rosa fala com Marivalda; se por alguns instantes suspeitamos disso ser uma maluquice da cabeça dela, logo veremos que as coisas não são assim tão claras. Quando o padre vivido por Milton Gonçalves aparece com uma ave azul, já estamos no ponto de crer que o bicho é mesmo azul; minutos depois, a chuva retira a tinta que falseava o animal, revelando o truque que, dada a natureza do filme, não parecia ser truque.

É nesse equilíbrio entre real e fantástico que Billi Pig se desenvolve, acrescido das tentativas constantes de fazer todo tipo de humor: pastelão, oral, comportamental, corporal, mental, referencial. Não faltam possibilidades de piadas no filme – algumas funcionam muito bem, outras carecem de timing ou de cuidado na construção cênica e espacial para que o “efeito-riso” não seja apenas forçado, mas autêntico. O que encanta em Billi Pig é o jogo proposto por Belmonte – jogo este que talvez nem mesmo o cineasta tivesse consciência.

Cheio de arestas e pontas soltas, o filme por vezes transmite a sensação de que está completamente perdido, com personagens que surgem e desaparecem sem motivações aparentes (Preta Gil e Milhem Cortaz na funerária), diálogos fora do enredo central (o padre e a amante), desvios narrativos (a infância do padre em flashback). Por outro lado, Belmonte lança na tela o desafio de o espectador encarar a própria necessidade intrínseca de querer as pontas devidamente fechadas. A irregularidade de Billi Pig funciona também como uma proposta de cinema, naturalmente arriscada e também perigosa, pois passível de leituras apressadas e intolerantes. Como “convencer” qualquer público (leigo ou crítico) de engolir um filme aparentemente incompleto, que inclusive pode dar a impressão de ser também um filme vítima de inapetência? A armadilha de Billi Pig, portanto, está justamente na sua suposta ruindade.

Mas, como defendia Jairo Ferreira, é de filmes imperfeitos que também se constrói uma cinematografia significativa. Billi Pig é a resposta imperfeita e repleta de vida a um caminho excessivamente “limpo” que o cinema brasileiro comercial vem construindo. Há poucos paralelos possíveis do filme de Belmonte com qualquer realização recente no país, especialmente no gênero da comédia. Num sentido geral, talvez apenas Falsa Loura poderia ser colocado em chave similar, especialmente pelo olhar profundamente bem-cuidado e honesto que tanto Belmonte quanto Carlos Reichenbach imprimem a personagens da periferia, quanto na sincera crença dos dois diretores de que a linguagem do filme pode acompanhar o compasso dos pensamentos de seus protagonistas – e a cena musical de Grazi no bar em Billi Pig não teria equivalência ao videokê de Rosanne Mulholland e Maurício Mattar em Falsa Loura? O desfecho “feliz” não guardaria muito do elogio da malandragem presente em filmes como Ladrões de Cinema (1977), de Fernando Coni Campos? Contemporaneamente, assim como para Os Normais (José Alvarenga) existe a contraparte Todo Mundo Tem Problemas Sexuais (Domingos de Oliveira), já se pode dizer que para coisas como Família Vende Tudo (Alain Fresnot) há Belmonte e Marivalda com seu porquinho serelepe. E assim a resistência vai surgindo, de onde pouco se quer olhar com atenção.

Essa característica de estar contra um sistema estabelecido aproxima Billi Pig dos filmes anteriores de José Eduardo Belmonte. De maneira independente e em pouco tempo, ele realizou Subterrâneos (2003), A Concepção (2005), Meu Mundo em Perigo (2007) e Se Nada Mais Der Certo (2008). Ao estrear na indústria em Billi Pig, com orçamento mais elevado e equipe melhor estabelecida (Vânia Catani o produziu), Belmonte não se permitiu ser pasteurizado. Há tanto de rendição quanto de suicídio em Billi Pig. O filme não foi bem de bilheteria nem recebeu críticas entusiasmadas – muito pelo contrário: na grande mídia, Belmonte tem sido tratado como uma espécie de traidor, alguém que teria aberto mão de um suposto viés autenticamente artístico para faturar com uma comédia sem graça em cima de nomes como Grazi Massafera, Selton Mello, Otávio Müller e a logomarca da Globo Filmes.

Seria ingenuidade pensar que Billi Pig tenha sido pensado como outro dos projetos plenamente autorais de Belmonte. Seria, porém, igualmente ingênuo acreditar que um filme de tantos estranhamentos e de tamanhas recusas à deglutição fácil estivesse apenas interessado em fazer dinheiro. Há muito de Belmonte espalhado no filme inteiro. Um Belmonte em outra chave, mas não em outro planeta: ainda é aquele cineasta que deixa os atores improvisarem, que permite ao filme respirar por si mesmo, que mantém um olhar para o mundo como este sendo um lugar de provações e recomeços. Temos aqui um cineasta que coloca uma figura como Grazi Massafera para encabeçar o elenco e jamais faz da atriz uma “bandeira” de excitação viril ou um corpo gratuitamente lançado em cena para deleite de olhares voyeurs. Grazi está no filme justamente porque ela é Grazi Massafera, disso não há dúvidas. O artifício exemplar é que o filme está a serviço de sua presença, seu humor e seu corpo – e não o inverso (como, novamente, Carlos Reichenbach sabe fazer como poucos ao escolher suas atrizes). Não seria exagero dizer que Billi Pig existe de e para Marivalda, a personagem de Grazi. A vinculação de Belmonte a personagem tão adorável faz grande diferença para os significados possíveis de serem enxergados no filme.

Os tropeços de Billi Pig não o tornam um filme pior, assim como momentos mais inspirados não o fazem necessariamente melhor. Tornam-no, de fato, um desafio instigante e fascinante. Que troço é esse? E por que o cinema popular brasileiro não nos oferece troços tão intrigantes com mais frequência? Achar graça do filme ou achar graça do atrapalho de Belmonte em não conseguir sugar humor de determinadas situações podem ser experiências muito mais enriquecedoras e estimulantes do que se espera e se queira à primeira vista. Basta olhar sem o filtro da limpeza exacerbada e da busca por perfeição e se permitir ser tão inconsequente assistindo ao filme quanto José Eduardo Belmonte parece ter sido ao fazê-lo.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Crítica: O Cavaleiro das Trevas Ressurge


Se algo de muito bom vai ficar da trilogia feita por Christopher Nolan com o personagem Batman, é a forma como os três filmes narraram histórias a partir do Homem-Morcego, e não necessariamente sobre ele. No primeiro filme, "Batman Begins", isso só ganhava força na segunda metade, mas em "O Cavaleiro das Trevas" e "O Cavaleiro das Trevas Ressurge", foi um diferencial bastante forte.

No desfecho da trilogia, Nolan se dá ao luxo de praticamente tirar o ator Christian Bale de cena e deixar que coadjuvantes como o vilão Bane, os policiais Gordon e Blake e a ladra Selina ocupem todo o espaço da ação, e isso funciona muito bem. A tensão está presente principalmente na metade inicial, especialmente no equilíbrio entre as angústias de um combalido Bruce Wayne como ex-combatente do crime em Gotham e o planejamento ainda misterioso de Bane sobre o que ele pretende fazer na cidade. O suspense criado dessas tensões ganha força com a entrada de personagens secundários realmente interessantes (outra boa marca da trilogia).

A partir do momento em que Bane revela o plano, "O Cavaleiro das Trevas Ressurge" entra numa espiral de situações cozinhadas que muito pouco enriquecem a tensão tão bem desenvolvida antes. Entre discursos revelados do vilão, explicações excessivas sobre o que está acontecendo em cena e aqueles 20 minutos finais em que as resoluções se atropelam numa velocidade pouco condizente com o ritmo do filme até então, o longa parece não chegar a lugar algum e "conclui" a saga de maneira bastante questionável.

Pesa ainda que Nolan segue como mau diretor de cenas de ação física. O primeiro combate entre Batman e Bane, com toda a violência inerente a ele (e tão aguarda especialmente por fãs dos quadrinhos quanto construída pelo ritmo do filme), cai na velha armadilha de o espectador simplesmente não conseguir enxergar direito o que acontece, dado o excesso de picotes da imagem.

Nolan teve momentos mais inspirados no filme anterior, muito ajudado pelo magnetismo do Coringa de Heath Ledger (que parecia quase obrigar a câmera a ficar parada nele). Neste terceiro, mesmo entre cenas mais fortes, o tom "épico" e conclusivo está mais no marketing que no filme.

Publicado em "O Tempo" no dia 26.7.2012

Novo "Batman" nos cinemas


A ansiedade dos fãs, a publicidade grandiloquente ("o desfecho épico da trilogia") e o sucesso do episódio anterior, feito em 2008, tornaram a estreia de "Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge" algo próximo de um ritual litúrgico. Serão quase mil salas exibindo o longa. Todo mundo quer ver o novo filme com o Homem-Morcego dirigido por Christopher Nolan. O terrível massacre ocorrido no Colorado (EUA) na semana passada até deu uma tremida na expectativa, mas nada que não vá dar jeito de empurrar para lá.

Épico, de fato, o filme faz de tudo para ser. Não apenas pela música quase onipresente ao longo das 2h40 de duração, mas pelas situações apresentadas no enredo, que procuram amarrar elementos dos dois filmes anteriores feitos por Nolan e criar um desfecho à trilogia iniciada em 2005 por "Batman Begins".

Algo, porém, perdeu-se pelo caminho e fez da terceira parte da franquia um amontoado de acontecimentos pretensamente tensos e cujo núcleo se torna o desgastado e indefectível desafio de impedir que um bandido alucinado destrua toda a cidade com um artefato nuclear. Desafio este, aliás, que já estava presente em "Batman Begins" (com outro tipo de artefato) e serve de gancho para essa conclusão na figura de Bane, terrorista brutal e enigmático que chega a Gotham City disposto a tornar a cidade uma terra sem leis para, depois, explodi-la.

Christopher Nolan divulgou esta semana uma carta na qual se despede da franquia do Batman sendo bastante claro sobre nunca ter previsto fazer três filmes interligados. "As pessoas perguntam se sempre planejamos uma trilogia. É como ser perguntado se planejamos crescer, casar e ter filhos. A resposta é complicada", diz Nolan.

A boa recepção crítica e financeira do primeiro filme praticamente obrigou o diretor a realizar um segundo. Quando "O Cavaleiro das Trevas" ultrapassou a marca de US$ 1 bilhão no mundo, não havia a menor dúvida de que um terceiro viria naturalmente. Isso de forma alguma significa, como muita gente alardeou, que Nolan tivesse tudo preparado na cabeça, com a resolução da trama moldada desde sempre. A morte de Heath Ledger em 2008, meses antes da estreia de "O Cavaleiro das Trevas" - filme no qual o ator interpretava uma versão memorável e perturbadora do vilão Coringa - foi um baque que ninguém esperava e obrigou os produtores da Warner a mudarem eventuais planos de tê-lo numa terceira parte.

Afinal, não deve ser coincidência que o Coringa não morra no segundo filme; menos acaso ainda deve ser o fato de que o personagem nem sequer é citado na terceiro parte, por mais referências que se tenha a diversos elementos dos episódios anteriores. A partida precoce de Ledger deve ter sido um choque tão grande que os roteiristas nem souberam (ou não quiseram) tratar do Coringa nesse desfecho.

*Publicado em "O Tempo" no dia 26.7.2012

sábado, 21 de julho de 2012

André Diniz


Animado com a ótima repercussão de sua história em quadrinhos "Morro da Favela", publicada pelo selo Barba Negra, da Leya, André Diniz decidiu arriscar e oferecer o trabalho à editora francesa Des Rond Dans l’O. Sem falar uma única palavra da língua de Moebius, Diniz apelou aos recursos salvadores do Google Translate.

O método virtualmente mambembe funcionou. A editora não só adorou "Morro da Favela" como a colocou no mercado francófono e levou Diniz a uma turnê na Europa. Ele aportou de volta ao Brasil no final de junho, cheio de elogios e propostas. Mal respirou e, no dia 30, seguiu para o Cinesesc, na capital paulista, onde recebeu dois troféus HQ Mix - o de melhor álbum nacional, por "Morro da Favela", e o de roteirista nacional (categoria na qual já tinha ganhado nos anos de 2004 e 2010).

O reconhecimento ratifica o que os leitores de HQs têm acompanhado desde o começo da década passada. Nascido no Rio de Janeiro e radicado em São Paulo desde novembro de 2010, André Diniz é hoje, como apontou o crítico Sidney Gusman, o quadrinhista mais prolífico do Brasil. Nos últimos anos, além de "Morro da Favela", outros destaques foram "A Cachoeira de Paulo Afonso", "O Quilombo Orum Aiê" e "O Negrinho do Pastoreio" - para ficar apenas nos que ele fez tanto roteiro quanto desenho. Num mercado como o nosso, em que trabalhar com HQs ainda é um perrengue, ter produção constante (e de qualidade) é raro.

Aos 36 anos, Diniz vem de uma caminhada que nem ele mesmo sabe definir onde começou. "Desde criancinha gosto de ler e desenhar muito", relembra. Na juventude, após a inevitável fase de acompanhar Turma da Mônica, foi leitor das aventuras de Tintim e do Tio Patinhas escrito pelo conceituado Carl Barks. Diniz conseguiu a façanha de passar incólume pelo universo dos super-heróis. "Ah, aquilo nunca me seduziu. Acho que os desenhos não me atraíam", comenta. Por outro lado, alimentou-se vorazmente da satírica "Mad". "Se tem alguma coisa na vida que posso dizer que fui fã, é da ‘Mad’

Fanzines. Talvez o jeito despojado da publicação editada no Brasil pelo mítico Ota tenha inspirado Diniz a bolar seus fanzines. A partir de 1994, sozinho, desenhava e escrevia histórias em papéis A4, com tiragens independentes de 500 exemplares que distribuía em lojas de quadrinhos. Num certo período, imprimindo em gráficas de jornal, chegou a tiragens de 3.000 exemplares.

"O fanzine foi a minha faculdade, o meu doutorado, foi tudo", conta ele, que chegou a cursar um ano de desenho industrial e desistiu. "Não me somou nada".

Em 1999, Diniz fundou a própria editora, a Nona Arte, e publicou dois trabalhos que considera sua estreia como quadrinhista profissional: "Subversivos", com desenhos de Laudo Ferreira, e "Fawcett", cujos traços foram do mestre Flavio Colin (1930-2002). "Ganhei alguns prêmios e tive muita visibilidade na mídia", conta ele. Dinheiro? "Nem pensar. Se for contar por isso, só agora estou me tornando profissional", brinca.

Já naqueles dois primeiros títulos, um elemento muito característico do trabalho artístico de André Diniz podia ser notado: a preocupação com a pesquisa. Seus roteiros sempre partem de elementos do mundo real, ou pelo menos tratam de questões palpáveis. A ditadura militar, por exemplo, rendeu ao menos duas histórias - a citada "Subversivos" e a subsequente "Ato 5", desenhada por José Aguiar.

"Ao diversificar minhas leituras, desde muito jovem, percebi que várias coisas que eu lia dariam histórias fascinantes. Gosto de manter a conexão com o que não é apenas uma ideia ou só imaginação", diz.

Desenhos.
Apesar de arriscar desenhos desde criança, André Diniz demorou a assumir os traços de seus próprios trabalhos. A segurança foi reforçada quando ele tomou contato com elementos da arte africana. Ao produzir "Chico Rei" (2006) para a Franco Editora, Diniz se fascinou com a trajetória do protagonista - Galanga, rei do Congo, capturado para trabalhar como escravo quando o Brasil ainda era colônia portuguesa.

"A estilização do desenho africano tem muito a ver com a minha forma de olhar, porque eu não sou de detectar sutilezas, prefiro as formas exageradas. Então incorporei isso aos meus desenhos e me senti mais preparado", conta. A técnica da xilogravura também se tornou uma referência.

Tecnicamente, o computador se tornou a ferramenta ideal para André Diniz. Se antes ele fazia rascunhos a mão e depois escaneava para a tela, agora ele faz diretamente no PC. "É maravilhoso poder ajustar o desenho ainda no processo. E ainda tem ainda o CTRL-Z (atalho para desfazer uma ação)".

No caso de "Morro da Favela", Diniz foi a campo. A HQ narra a vida do fotógrafo Maurício Hora, que vive no Morro da Providência (a primeira favela carioca) desde quando nasceu e nunca quis sair de lá. O autor se interessou pela biografia de Hora ao conhecê-lo através de um comentário do cunhado. "Quando liguei para o Maurício para dizer que gostaria de contar a história dele em quadrinhos, senti um estranhamento. Mas logo ele entendeu".

Diniz fez várias visitas ao Morro da Providência e conheceu de perto um cotidiano no morro bem distante dos clichês de favela. "Tive surpresas boas e ruins, é claro, mas vi tudo por mim mesmo, sem o filtro da mídia". Ele ainda absorveu muito da ambientação captada por Hora em suas fotografias - várias delas reproduzidas num adendo do álbum lançado pela Leya.

Além de ter garantido a publicação de "Morro da Favela" na França, André Diniz também terá o trabalho vertido para o inglês, sob o título "Picture a Favela". Vai sair na Inglaterra e nos EUA, pela editora SelfMadeHero. Há algo de bastante irônico no fato de que Diniz, pouco afeito a quadrinhos de super-heróis e cuja trajetória começou entregando fanzines, seja publicado fora do país por uma empresa intitulada "herói por si mesmo".

*Originalmente publicado em "O Tempo" no dia 11.7.2012

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Cannes 2012: Entre filmes e textos

Escrevi de vários filmes exibidos no 65° Festival de Cannes na revista eletrônica Filmes Polvo. A cobertura completa está aqui:
http://www.filmespolvo.com.br/site/eventos/index/65

Cannes 2012: Dario


Dario Argento, 71, chega para sessão especial de Dracula ovacionado no Grand Theatre Lumiére.

Cannes 2012: Asia


Asia Argento, 36, adentro o Grand Theatre Lumiére para acompanhar a exibição de Dracula, dirigido pelo papai.

Cannes 2012: O vampiro da noite


Uma subida no tapete vermelho, em primeira pessoa, para assistir a Dracula, de Dario Argento, na sessão de meia-noite.

Cannes 2012: Nastassja e Romek


Nastassja Kinski e Roman Polanski aplaudidos de pé após a memorável sessão de Tess (1979), em cópia restaurada, no Cannes Classics.

Cannes 2012: Num céu de estrelas

A quem curte, a listagem dos longas-metragens que vi em Cannes 2012, com respectivas estrelinhas. A cotação vale de um a cinco. Mantive os títulos originais de cada filme.


COMPETIÇÃO


Moonrise Kingdom, de Wes Anderson  * *

De Rouille et D‘os, de Jacques Audiard  * * *

Baad el Mawkeaa, de Yousry Nasrallah  *

Reality, de Matteo Garrone * *

Paradies: Liebe, de Ulrich Seidl  *

Lawless, de John Hillcoat  * *

Dupã Dealuri, de Cristian Mungiu * * * *

Amour, de Michael Haneke  * * * *

Jagten, de Thomas Vintenberg  * *

Vous N’avez Encore Rien Vu, de Alain Resnais  * * *

Like Someone in Love, de Abbas Kiarostami  * * *

Da-reun Na-ra-e-Suh, de Hong Sang-soo  * * *

Killing Them Softly, de Andrew Dominik  * *

The Angel’s Share, de Ken Loach  * * *

On The Road, de Walter Salles  *

Holy Motors, de Leos Carax  * * * *

The Paperboy, de Lee Daniels  *

Post Tenebras Lux, de Carlos Reygadas  *

Cosmopolis, de David Cronenberg  * * * *

V Tumane, de Sergei Loznitsa  * * * *

Mud, de Jeff Nichols  * * *

Do-nuit Mat, de Im Sang-soo  * *

OUTRAS MOSTRAS

Mystery, de Lou Ye  * *

Student, de Darezhan Omirbayev  * * *

Drácula, de Dario Argento  * *

Ai To Makoto, de Takashi Miike  * * * *

Maniac, de Franck Khalfoun  * * *

Roman Polanski: A Film Memoir  * * *

Tess, de Roman Polanski  * * * * *

Runaway Train, de Andrei Konchalovsky  * * * *

Camille Redouble, de Noémie Lvovsky  *

La Noche de Enfrente, de Raúl Ruiz  * * *

No, de Pablo Larraín  * * *

Sueño y Silencio, de Jaime Rosales  * * *

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Cannes 2012: mais imagens de um dia

No sol  e na escada para ver o tapete

Apenas um dia qualquer

Um aracnídeo empoleirado no hotel Carlton

Fila para abertura da Semana da Crítica. Filme deu pau

Corriqueiro

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Cannes 2012: o primeiro filme

Os portões da Sala Debussy se abrem pela primeira vez em 2012, para exibição de imprensa de "Moonrise Kingdom", de Wes Anderson, às 10h30 de quarta-feira. Crítica do filme aqui.


Cannes 2012: pelas ruas

Um ingresso, SVP

Uma quarta-feira diante do tapete vermelho em Cannes

Visão de quem fica tentando ver o tapete da rua

Acesso ao tapete bem guardado

Um filme de brasileiro em meio à paisagem
Fila para Wes Anderson, às 10h da manhã

Cannes 2012: Bruce e Bill

Entrada para coletiva de imprensa de "Moonrise Kingdom". Bruce Willis e Bill Murray, astros adorados.


Cannes 2012: primeiras imagens

Parte da fila: entrada para "Moonrise Kingdom" 
Marilyn Monroe assopra velinhas pela cidade toda


sexta-feira, 9 de março de 2012

Marilyn Monroe

por Marcelo Miranda

A organização do Festival de Cannes divulgou nesta semana o cartaz da 65ª edição do evento francês, a ser realizado em maio. A imagem mostra Marilyn Monroe (1926-1962) assoprando as velas de um bolo de aniversário. O festejo é do festival, mas a fotografia tem outro sentido muito forte: em 2012, completam-se 50 anos da morte de Marilyn, encontrada já falecida em seu apartamento após uma overdose de barbitúricos.

Diva até hoje tão enigmática quanto fascinante, Marilyn Monroe mantém um culto interminável e intenso em torno de sua figura. A Fox aproveita a efeméride e relança no mercado brasileiro a Coleção Diamante, duas caixas de DVDs contendo o total de 11 longas-metragens protagonizados pela loira, nascida morena em Los Angeles e cujo nome de batismo era Norma Jean Mortensen.

Existe um mito em torno da ideia de que a atriz era o estereótipo da loira burra, atrapalhada e avoada, muito reforçado por seus papéis em "O Inventor da Mocidade" (1952), "Como Agarrar um Milionário" (1953), "Os Homens Preferem as Loiras" (1953) e "Quanto Mais Quente Melhor" (1959). Mas Marilyn não era a boba que sua imagem (e a mídia) vendia, e algumas de suas escolhas - na vida e na carreira - permitem perceber o quanto nem tão ingênua ela era.

A atriz se envolveu, por exemplo, em algumas raras incursões dramáticas, na maior parte das vezes de forma bem-sucedida. Menos conhecidos, "Almas Desesperadas" (1952) e "Torrentes de Paixão" (1953) revelaram uma faceta pouco explorada de seu talento: a da mulher perturbada e disposta a variadas loucuras para atingir objetivos. No primeiro, ela é uma babá obcecada em não permitir que a criança de quem cuida atrapalhe o romance que ela tenta engatilhar; no outro, próxima do "noir", ela é a esposa traidora que tenta fazer o amante assassinar seu marido.

Em participações menores, antes da fama, Marilyn já tinha tentado se firmar de forma mais séria e nada caricata - como nas breves aparições em "A Malvada" e "O Segredo das Joias", ambos de 1950.

Mas não teve jeito. A indústria de Hollywood se encantou com a jovem a ponto de querer apenas vê-la ora sorrindo, ora fazendo carinha de sapeca, ou tentando conquistar homens ricos ou querendo suprir carências físicas e afetivas ou se fazendo de difícil em nome de um amor mais puro, sincero e justo - ou simplesmente sendo aquela vizinha tentadora que desestabiliza um casamento.

A outra esperteza da atriz, portanto, foi saber se adequar ao que essa indústria pedia dela. E por mais que haja ressalvas a alguns de seus trabalhos, fato é que Marilyn Monroe era uma ótima comediante. Sabia trabalhar as expressões faciais, o corpo e a movimentação para fazer todo tipo de graça. A maldosa brincadeira recorrente de que ela nem precisava interpretar, bastando ser ela mesma na hora das filmagens para transmitir a característica da lerdinha, guarda muito da capacidade de Marilyn em saber fazer graça com a imagem que construíram dela.

A vida pessoal da atriz, repleta de desencontros e desilusões, contribuiu para sua persona cinematográfica. O público olhava o filme e enxergava Marilyn Monroe ela-mesma, devassada pela imprensa em detalhes sórdidos. Ela, midiática, também não se poupava. E não deu conta.

Os filmes, porém, estão aí. Alguns apenas regulares ("Nunca Fui Santa"), outros absolutamente geniais ("Quanto mais Quente Melhor", "O Inventor da Mocidade") e um que parecia antever o melancólico destino da atriz ("Os Desajustados", seu último trabalho lançado, um ano antes de ela morrer). A caixa ainda contém o documentário "O Fim dos Dias", com suas últimas imagens registradas para um filme inacabado.

*Publicado em "O Tempo" no dia 1.3.2012

Parceiros da Noite, de William Friedkin

por Marcelo Miranda

Quando "Operação França" e "O Exorcista" fizeram de William Friedkin um dos nomes mais quentes de Hollywood, no começo dos anos 1970, tudo o que a indústria podia esperar era um cineasta disposto a seguir o caminho mais óbvio do sucesso. Mas Friedkin fazia parte de uma geração de jovens realizadores disposta a se arriscar em projetos o mais anticonvencionais possíveis (dessa leva ainda havia, entre outros, Martin Scorsese, Francis Coppola, Michael Cimino e Arthur Penn).

Por sua personalidade naturalmente truculenta e desafiadora, Friedkin se enveredou em trabalhos sempre arriscados - e que se tornaram fracassos comerciais, justamente por irem contra qualquer regra. Um deles foi "Parceiros da Noite" (1980), cujo lançamento em DVD no Brasil (via Lume) se deu apenas recentemente - o que diz bastante da má repercussão do filme na época e que ainda prejudica sua visibilidade.

Ainda é tempo de redimi-lo, e quem assiste a "Parceiros da Noite" se submete a um dos mergulhos psicológicos mais perturbadores daquele período. As várias sequências em clubes gays de Nova York, filmadas com espontaneidade, hoje provocariam bem menos celeuma do que a maneira seca, objetiva e distanciada com que Friedkin retrata as mudanças comportamentais do protagonista, interpretado por um jovem Al Pacino (aos 35 anos na época).

Ele é Burns, policial novato, ambicioso e heterossexual a quem é dada a missão de se infiltrar na noite gay nova-iorquina com o objetivo de servir de isca a um violento assassino de homossexuais. O filme acompanha inicialmente a investigação do personagem, mas, a certa altura, passa a radiografar os efeitos da ação na rotina e nos pensamentos do policial.

É nessa mudança de perspectiva do filme - que acompanha brilhantemente o mergulho cada vez mais fundo de Burns num mundo até então desconhecido a ele - que "Parceiros da Noite" mantém sua força. Quando vemos Burns drogado se lançando com completa liberdade numa pista de dança, sentimos haver algo de realmente esquisito acontecendo diante de nós, espectadores. Aquilo não é mais uma investigação policial. É o delineamento de uma possível nova realidade.

Friedkin sempre foi um cineasta interessado nesses processos em que alguém acaba por se tornar parte integrante daquilo que investiga ou testemunha. Já era assim mesmo antes de "O Exorcista" e continua sendo - vide seu último trabalho lançado no Brasil, a obra-prima "Possuídos" (2006). Resgatar "Parceiros da Noite" três décadas depois de seu banimento é fundamental.

Antes mesmo de estrear, em 1980, "Parceiros da Noite" foi alvo de protestos. A oposição vinha de movimentos GLS, que se opunham a uma suposta visão negativa do filme para com o universo gay – ou, mais que isso, acreditavam que um filme sobre a caçada a um assassino de homossexuais só podia ser alguma investida de Hollywood a favor do conservadorismo.

Ainda que, efetivamente, o filme não corrobore nenhum dos ataques da época, o diretor William Friedkin teve seu poder artístico radicalmente diminuído. Seu principal filme depois de "Parceiros da Noite" foi "Viver e Morrer em Los Angeles" (1985), feito com orçamento bastante modesto. E assim se seguiu. Friedkin continuou como um autor convicto, mas seus filmes amargaram ostracismos quase sempre injustos.

*Publicado em "O Tempo" no dia 23.2.2012

sexta-feira, 2 de março de 2012

Crítica de "Drive", de Nicolas Refn

Marcelo Miranda

A cada década, o cinema dos EUA nos oferece alguns tipos renovadores de um gênero. No caso dos filmes de ação e policial, há "Operação França" e "Viver e Morrer em Los Angeles" nos 1970, "Duro de Matar" nos 80, "Pulp Fiction", "Fogo Contra Fogo" e "Os Bons Companheiros" nos 90, "Os Donos da Noite" nos 2000. Com apenas dois anos da nova década em andamento, "Drive" já pode perfeitamente figurar na listagem desses renovadores.

Renovação talvez nem seja a palavra exata. O que o dinamarquês Nicolas Winding Refn faz é reconfigurar elementos e estruturas fartamente reconhecíveis pelos espectadores e lhes dar uma roupagem que, antes de tentar aparentar novidade ou inovação, transmite a sensação de um novo vigor e um outro tipo de impacto.

"Drive" será imediatamente encaixado na prateleira dos filmes de ação, o que é tão verdadeiro quanto falacioso. O personagem central é devedor dos tipos caladões e ágeis criados por Clint Eastwood, Charles Bronson e Steve McQueen, mas é um ser tipicamente do século XXI, transitando por ruas e prédios hiperiluminados em Los Angeles. A trama sobre assaltos, golpes e atos de vingança e violência emula os filmes mais banais da década de 1980, mas faz de um simples ponto de partida de roteiro o trampolim para uma narrativa etérea, rarefeita, movida por sentimentos genuínos de afeto e cuidado e carregada de uma aura de sonho que quase te faz esquecer do que, afinal, é a história.

O detalhe de o protagonista interpretado por Ryan Gosling trabalhar como dublê de filmes de ação insere um elemento discretamente revelador em "Drive". Ao mesmo tempo em que há um realismo muito arraigado no desenvolvimento da trama, a todo instante há a sabotagem dessa própria impressão de verdade - seja na suspensão do tempo e espaço vista numa cena de elevador (que mescla lirismo e brutalidade numa medida magnífica), seja no colorido artificial de alguns ambientes, no uso dos corpos como moldura de enquadramentos e num jeito algo caricatural (mas jamais banal ou indiferente) de representar a violência.

Nisso o canadense Ryan Gosling é fundamental para a fruição. Um dos atores mais expressivos de atual geração - recentemente visto em "Tudo pelo Poder", de George Clooney -, ele entrega a encarnação gélida de um anti-herói cuja segurança no trato com as agruras urbanas é abalada pela simples visão de uma garota encantadora (vivida por Carey Mulligan). Gosling faz de seu motorista uma criação arquetípica da frieza e indiferença necessárias ao efeito buscado por Refn.

É um filme, afinal, que existe apenas no e para o cinema. O livro de James Sallis está por aí, e é bom (acaba de ser lançado no Brasil pela editora Leya), mas funciona só de camada superficial para "Drive" existir. O que está nas telas não permite muitas palavras. São as sensações, os choques e o encantamento que importam.

*Publicado em "O Tempo" no dia 2.3.2012