De volta aos cinemas após dez anos, o mestre John Carpenter faz Aterrorizada, terror psicológico expressivo, mas aquém de seu talento
John Carpenter é o mestre da frontalidade no cinema: a sua obra é uma longa,
incontestável, indispensável e paciente insistência num mundo que já não se
quer reconhecer nela.
A afirmativa do crítico francês Julien Husson se refere à característica do diretor norte-americano de se colocar sempre firmemente diante daquilo que ele está filmando. Não num sentido puramente físico (como estar parado olhando para alguma coisa de frente). A noção de frontalidade, aqui, não se refere a um enfrentamento propriamente dito. Como o próprio Husson também escreve, “a frontalidade é a arte de pôr em relação e não tem nada a ver com um antagonismo ‘simplista’ nem com um dualismo ‘idealista’”.
Ora, “pôr em relação”, em se tratando de cinema, pode ser próximo de “pôr em cena”, termo possível de ser vinculado ao que se chama mise en scène. Portanto, o que está em jogo no cinema de Carpenter é como a encenação dará conta de um mundo regido por regras próprias e liberto das amarras de uma noção meramente realista do que está sendo apresentado na tela. “Serve-se da evidência, da potência e da imprevisibilidade da ficção”, completa Husson. Carpenter parte da ficção para extravasá-la e chegar ao real – ou, mais propriamente, a uma moral verdadeira daquilo que ele narra.
O mais recente filme do diretor, Aterrorizada (The ward, 2011), segue estes preceitos. A situação dada é típica dos melhores momentos de John Carpenter: sem memória e sem saber o motivo, a jovem Kristen (a atriz Amber Heard) é trancada num hospital psiquiátrico; lá dentro, relaciona-se com outras detentas e descobre que uma estranha força sobrenatural está eliminando cada uma das pacientes. A frontalidade de Carpenter já começa aqui. Em vez de um conflito inicial, o espectador se depara com dois – a falta de lembranças de Kristen e o mistério em torno das mortes no hospital. A chave de apreensão do filme estará sempre no equilíbrio entre essas instâncias narrativas; a cada novo dado do enredo ou algum susto repentino, a tensão terá vários caminhos pelos quais percorrer. A evidência de que há diversas possibilidades por onde o filme pode provocar medo ou suspense é frontal ao próprio mecanismo que realmente está movendo as peças em jogo.
A saber (se não viu o filme nem quer conhecer detalhes, pule este parágrafo): Carpenter encontra maneiras engenhosas de tentar subverter – ou pelo menos renovar – alguns clichês típicos de roteiros sobre personagens com múltiplas personalidades. Emulando similares dos últimos anos, alguns bastante significativos, como Síndrome mortal (Dario Argento, 1996), Alta tensão (Alexandre Aja, 2003), Mad detective (Johnnie To, 2007) e Ilha do medo (Martin Scorsese, 2010), Aterrorizada faz com que sua protagonista não simplesmente lute ou aceite as outras faces de si mesma: ela própria é uma das várias faces de alguém. Em vez de se resignar com o que é, Kristen deverá sucumbir ao que não é. Diante disso, recisará deixar de existir, dando lugar a Alice, a pessoa que de fato a projetou para fora de uma mente perturbada.
Como proceder assim através da mise en scène? Ou como ser frontal a uma premissa cujo entendimento pleno depende de informações deliberadamente suprimidas e somente reveladas no momento considerado mais “apropriado” por quem escreveu a história? Se pensarmos na obra de John Carpenter, será fácil perceber que ele não é um cineasta propenso a enigmas ou omissões que sirvam de muleta para deixar o público esperando algo ser revelado.
Mesmo filmes cujos pontos de partida são situações sem “explicação” imediata (A bruma assassina, O enigma de outro mundo, O príncipe das trevas, À beira da loucura, Eles vivem ou A cidade dos amaldiçoados), a já citada frontalidade de Carpenter provoca rachaduras dentro do inexplicável e faz com que a atmosfera dos ambientes e a moralidade dos personagens conduzam a ação. Seguindo os melhores ensinamentos apreendidos com o mestre Howard Hawks, Carpenter desfia os conflitos de cada filme simultaneamente aos seus desdobramentos – daí o impacto provocado não só pelo crescendo dos filmes em si, mas pelos desfechos quase sempre acachapantes (e, várias vezes, em aberto). O choque vem porque tivemos acesso constante aos rumos que nos levaram (a nós e aos personagens) até ali. Não houve segredos” ou “intrigas secretas”. Houve a coragem (e a moral) de nos abrir o leque de possibilidades e nos permitir segui-las.
A boa trapaça de Aterrorizada é que estamos no mesmo tipo de mecanismo – porém, desta vez, invertido. O filme se desenvolve dentro de si mesmo, a partir do momento em que Kristen – esta imagem mental cujo propósito é negar a evidência de que Alice seja uma garota com transtornos psíquicos – se manifesta. A primeira aparição da moça é correndo floresta adentro, rumo a um casarão que será incendiado sem motivo aparente. Quem vemos é Kristen, porque ela tomou conta de Alice. Dali em diante, o filme seguirá sob o ponto de vista dela, até o momento em que a verdade do que assistimos revela a farsa, algo que era também uma farsa à própria Kristen.
Narrativamente, o filme é linear e clássico, e o que se espera dele é que logo surja alguma resolução para dar conta daquela aparição e do porquê Kristen estar presa. À beira da loucura era o contrário: não tínhamos para onde olhar nem o que focar, ou mesmo quais respostas procurar. Éramos arremessados na confusão interna de um mundo inteiro (e não apenas de um único espaço, ou numa única situação), mundo este sendo regido por alguma mente insana. Por se ater a um espaço específico cercado por alguma ameaça externa, Aterrorizada se vincula ao olhar hawksiano de Carpenter para um grupo de pessoas confinadas. O título original do filme, The ward, pode ser traduzido como “a ala”, em referência ao local onde Kristen está internada.
É neste lugar que ela e as outras garotas vão ser obrigadas a conviver e enfrentar, juntas e à revelia, os perigos que vêm não se sabe de onde. Ecos já dos primeiros filmes de Carpenter (Dark Star, Assalto à 13ª Delegacia e Halloween) podem ser sentidos aqui, vindos de ainda mais longe, lá do seu fascínio por Onde começa o inferno (1959), El Dorado (1966) e Rio Lobo (1970), nos quais Howard Hawks versa sobre sujeitos encurralados. Ao longo de duas dezenas de títulos, Carpenter quase sempre voltou a esse cerne, fazendo com que personagens antagônicos precisassem deixar de lado as controvérsias (mesmo que temporariamente) e se unissem contra um mal em comum.
UM RETORNO
Vão-se dez anos desde a incursão anterior de John Carpenter nos cinemas. Fantasmas de Marte foi lançado em 2001 e não teve a melhor das repercussões. Jean-Baptiste Thoret, num emocionado lamento pela frustração com o filme de um de seus cineastas de cabeceira, chegou a escrever: “A América mudou, ele [Carpenter] sabe-o melhor do que ninguém, e aquele que ontem era corajoso é hoje demagógico”. Nas bilheterias, o filme não se saiu muito melhor, sendo olhado com desconfiança por quase todo lado como mais um trabalho a explorar o filão de produções similares à época (1), sem o brilhantismo e a provocação inclusive dos longas imediatamente anteriores de Carpenter, Fuga de Los Angeles (1996) e Vampiros (1998).
Um pouco por isso e também por um assumido cansaço e desânimo (2), John Carpenter decidiu dar um tempo do cinema. Entre 2001 e 2011, porém, registram-se incursões do diretor em projetos de televisão. Convidado por Mick Garris, o cineasta fez dois episódios para a série Masters of Horror, veiculado no canal Showtime. Pesadelo mortal (Cigarette Burns, 2005) e Pro-life (2006) foram as únicas oportunidades de se assistir a trabalhos inéditos de Carpenter na última década. Únicas e também bastante expressivas, é bom frisar. Pesadelo mortal retomou diversos elementos de À beira da loucura, inclusive o clima detetivesco mesclado ao sobrenatural na busca por uma obra de arte (no caso, um filme desaparecido) que teria provocado a morte de várias pessoas; por sua vez, Pro-life era uma espécie de versão de Onde começa o inferno ambientada numa clínica de abortos e tendo o capeta em pessoa como
antagonista.
Se pensarmos em um ou dois nomes fortes do cinema de horror norte-americano cujas ascensões se deram a partir dos anos 1970, junto com John Carpenter – e os quais, em relação a ele, tendem a muitas vezes serem inferiorizados –, Aterrorizada pode parecer apenas um exemplar bem-executado do gênero. George A. Romero, por exemplo, entre 2005 e 2009, renovou-se na trinca Terra dos mortos, Diário dos mortos e Ilha dos mortos, captando todo um imaginário de vigilância, racismo e amoralidade pós-11 de Setembro. Wes Craven, depois de uma fase terrível na qual o título de seu último filme (Amaldiçoados) parecera se referir ao próprio cineasta, revigorou-se razoavelmente bem. Primeiro com o subestimado A sétima alma (2010), retomando muito do clima de horror juvenil que ele ajudou a inventar em A hora do pesadelo (1984), ainda seu grande clássico. Depois, veio a excelência surpreendente de Pânico 4 (2011), no qual Craven demonstra estar completamente atento e vinculado não só às novas tecnologias (caminho mais fácil para se pensar o filme), mas a um certo mal estar em torno das ambições de ser importante, de aparecer na mídia, de ser alguém – e Craven leva isso para a encenação do filme de maneira quase literal, sem nunca omitir o fato de estar trabalhando na quarta parte de uma franquia de sucesso que parecia ter sido sepultada anos atrás.
Diante dos trabalhos mais recentes de Romero e Craven, Aterrorizada, por mais que carregue grande força expressiva, parece um filme menor. Se tivermos de parâmetro a filmografia de John Carpenter em pessoa, isso fica ainda mais evidenciado. O diretor aparenta, aqui, ser muito mais um artesão eficiente do que um mestre, menos um questionador das estruturas (do cinema e do mundo) do que um adepto delas. Carpenter está ali, presente em cada fotograma de Aterrorizada, e por isso mesmo o filme é bastante válido numa época em que o ideário do cinema de horror se pauta em gratuidades, franquias forçadamente intermináveis e refilmagens estapafúrdias. À sua maneira, Carpenter é o mesmo de sempre – o artista que vai contra o sistema e contra os padrões. Mas o filme pode soar também apenas como o tropeço ingênuo de quem sabe o que pensa e o quer dizer, mas se desviou das próprias crenças porque talvez se cansou da falta de resultado delas. O cinema deve celebrar a volta de John Carpenter tanto quanto deve torcer para que John Carpenter realmente volte.
POST-SCRIPTUM
Se John Carpenter esteve afastado das telas por dez anos, ao menos no Brasil isso vai continuar igual. A distribuidora Imagem Filmes decidiu lançar Aterrorizada apenas em DVD e Blu-ray, passando ao largo dos cinemas. É o mesmo destino de filmes recentes de outros nomes importantes do terror, como Dario Argento (Sleepless, O Jogador Misterioso e Giallo), George A. Romero (Diário dos mortos e Ilha dos mortos) e Joe Dante (O buraco). Wes Craven, por enquanto, tem conseguido ficar fora dessa indesejável relação.
NOTAS
(1) Um ano antes, outro cineasta de prestígio, Brian De Palma, lançara Missão: Marte, filme também mal recebido por crítica e público.
(2) Em entrevista ao site Collider, John Carpenter afirmou: “Em 2001, eu estava completamente cansado de dirigir. Precisava parar, dar um tempo e descansar disso tudo. Tinha prometido a mim mesmo que, quando parasse de amar o cinema e o trabalho, eu não o faria mais. Foi o que aconteceu”.
*Texto originalmente publicado na edição 18 da revista Teorema, em 2011
Um comentário:
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