segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Um passeio pela obra de William Friedkin [até 2006]

*Originalmente publicado na revista eletrônica "Filmes Polvo" em 2007

O tema de quase todos os meus filmes é a linha tênue entre o bem e o mal. Isso existe em todos nós. Todos temos essa batalha íntima dentro de nós, os nossos anjos de batalha contra o lado demoníaco. Eu acho que isso está em todo mundo, o tempo todo. E os meus filmes são sobre essa separação tão delicada - William Friedkin


Quando se fala ou pensa em William Friedkin, logo vem à mente dos cinéfilos o homem por trás de O Exorcista (1973). Dos ainda mais cinéfilos, pode vir também (antes ou depois da lembrança do filme demoníaco) o policial Operação França (1971), que, lançado no começo dos anos 70, moldou muito do que até hoje se assiste no gênero. Mas, diferente do que se apregoa mais aos quatro cantos do que seria justo e merecido, Friedkin teve (ainda tem) carreira de notável vigor técnico e artístico. Homem de ação e movimento, fez do cinema um espaço para idéias muito particulares sobre a natureza humana. Existe o preconceito de que o cinema de gênero nada mais é do que isso – um cinema de gênero no seu sentido mais estrito, em que determinada história é contada a partir de uma série de regras fixas, pré-estabelecidas e sem qualquer tipo de desafio a um possível status quo do próprio gênero em questão. Mas alguns cineastas, quando inspirados e dotados de sua máxima capacidade criativa, conseguem driblar o simplismo de uma premissa ou de um lance de roteiro para colocar no filme suas obsessões e, dali, tentar compreender – ou, pelo menos, registrar – determinados anseios que movem o homem.

Obsessão, aliás, é palavra-chave no cinema de William Friedkin, e é a partir disso que iremos falar de seu cinema aqui neste humilde artigo – que tem, mais do que a pretensão de querer tirar de um certo esquecimento vigente sobre a relevância de Friedkin, exaltar uma obra coerente e autoral, ainda que muitas vezes irregular e cheia de falhas. O “gancho” (para usar jargão jornalístico) é o lançamento nos cinemas brasileiros de Possuídos, mais recente trabalho do cineasta a chegar aos nossos olhos – isso, depois de mais de um ano de sua exibição no Festival de Cannes, na França, onde foi premiado na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela dedicada a projetos de maior grau de ousadia e experimentação.

A um cineasta tachado de generalista, como é caso de Friedkin, pode surpreender a alguns vê-lo num evento do porte de Cannes. Pois Possuídos (péssima tradução brasileira para o muito mais instigante Bug) consegue reunir todas as características do cinema de Friedkin e ainda soar original e único – dentro de sua filmografia e dentro de uma certa caretice que vem sendo imposta ao cinema americano. O filme possui radicalidade poucas vezes vista num “produto” similar, ainda mais protagonizado pela queridinha Ashley Judd, o que pode atrair desavisados que pensem estar indo assistir a algum terror na linha “assassino-em-série” ou “demônio-que-invade-corpo-e-arruma-confusão”. Pois assim como fez com o horror, o policial, o drama e o suspense, Friedkin torna o tal “terror psicológico” (alcunha que a imprensa decidiu impor a Possuídos) um pequeno e explosivo tratado das relações amorosas no seu conceito mais extremo.

O cinema de William Friedkin é um cinema de obsessões. Em praticamente todos os seus filmes, os personagens buscam alguma coisa com sanha incontrolável, em tentativas por vezes irracionais ou mesmo desmedidas para atingir determinados objetivos. São sempre personagens “possuídos” (e aí, ironicamente, o título brasileiro de Bug acaba servindo como súmula de toda a carreira de Friedkin). Num sentido literal, o filme mais famoso do diretor, O Exorcista, trazia já na sinopse a idéia de possessão, na trama da garotinha encarnada pelo demônio. Mas o verdadeiro “possuído” não era a jovem Regan, e sim o padre Damien Karras, também psicólogo e em fase de decadente crença na força divina. Convocado pela mãe de Regan, ele toma contato com a terrível verdade sobre a possessão e, a partir daquilo, recupera a própria fé. O jogo de ironias está explícito: num momento de sua vida em que Karras aparenta negar a existência de Deus, sua fé ressurge a partir do contato com o anti-Deus. A obsessão, no caso, está em expulsar aquela criatura de um corpo inocente e seguir rumo aos novos desafios que a vida vai lhe impor – como bem mostra a cena final.

Segundo diz a epígrafe deste artigo, Friedkin crê na ambivalência do ser humano, na idéia de que todos nós temos um lado bom e um lado mau. Essa constatação está óbvia um tanto quanto exageradamente em O Exorcista, mas não tanto, por exemplo, nos policiais de Friedkin. Saindo do âmbito familiar, o diretor coloca a câmera no cotidiano de agentes cuja missão é combater o crime. Sejam drogas, assassinato ou dinheiro falso, a autoridade nos filmes de Friedkin vive na linha limítrofe entre a salvação e a perdição. São figuras, acima de tudo, possuídas pela noção da justiça e do dever a cumprir, mas nem por isso deixam de se comportarem muitas vezes como os bandidos que combatem. De um lado o herói; do outro, o demônio. A obsessão está em terminar o serviço, nem que para isso precisem passar por cima das regras criadas por eles mesmos.

O mais notório dessa “linhagem” de Friedkin é o detetive Popeye Doyle, memoravelmente interpretado por Gene Hackman em Operação França. Porém, é outro investigador que talvez guarde uma maior complexidade na interação com os demais personagens em cena. Richard Chance (vivido por William Petersen) é o protagonista de Viver e Morrer em Los Angeles (1985), mas nunca se modela ao gosto do espectador. Amoral, impiedoso, arrogante, machista e prepotente, resume as piores características possíveis a um personagem principal – e é em torno dele que a ação do filme corre. Se Chance não é uma criação convidativa à identificação do público, isso se deve menos à sua forma de agir e mais ao tratamento que Friedkin lhe dá ao longo de todo o filme.

Não há qualquer tipo de mergulho em sua intimidade ou qualquer preocupação que seja em proporcionar sentimentos de piedade ou compreensão em relação a Chance. A câmera fria de Friedkin enfoca o policial no meio de suas missões, na ânsia devoradora e autofágica de caçar e matar o assassino de seu parceiro. Chance está mais decidido a encontrar o falsificador de dinheiro para um ajuste de contas do que simplesmente tirá-lo de circulação. Esse jeito ora despojado, ora mesmo inconseqüente com que Friedkin trata o dia-a-dia de Chance torna Viver e Morrer em Los Angeles um filme de fascinante estranheza, um mergulho num submundo em que ninguém vale muita coisa e onde o vilão, dotado de raciocínio rápido e uma calma invejável, exerce sedução maior do que o agente nervosinho e explosivo.

É em criações como Chance que o talento de Friedkin faz toda a diferença. Em vez de tentar achar pontos de apoio para sustentar seu protagonista, o diretor faz uma operação que parece impossível: um filme de ação não necessariamente clássico, mas moderno; um filme de ação em que a ação não ocorre por conta de um desenrolar claro e objetivo dos acontecimentos nem por gatilhos narrativos, mas porque o filme em si aparenta não poder ficar sem ela. Existe, na verdade, uma não-ação muito forte em Viver e Morrer em Los Angeles. Se olharmos o roteiro, e só ele, é fácil perceber que quase nada acontece, de fato, nas duas horas de filme. Por mais que haja ali uma das mais intensas perseguições de carro do cinema americano ou alguns momentos de violência bem dolorosos de assistir, Viver e Morrer em Los Angeles se caracteriza pela ausência do encadeamento típico de produções do gênero. É como se o filme estivesse mais para Godard do que para – sei lá – Michael Bay (usando aí dois exemplos diametralmente opostos). O que faz com que o longa respire é o cuidado estético com quem Friedkin o modela e o apuro como torna o agente Chance uma figura em constante movimento para cumprir suas obsessões, seu impulso possessivo de executar uma tarefa dada a ele por ele mesmo – e cujas conseqüências são sentidas no inacreditável desfecho, em que Friedkin radicalmente abre mão de qualquer pudor no destino final do personagem.

Dentro da filmografia de William Friedkin, Viver e Morrer em Los Angeles talvez encontre paralelo apenas no recente Possuídos. O cineasta tentou fazer algo semelhante em Jade, suspense lançado em 1995 na onda do thriller erótico apregoado por Instinto Selvagem, um ano antes. É também, na sua ambientação ambígua e na estética luminosa, um filme de destaque, ainda que aquém do impacto proporcionado pela saga de Chance na década anterior. Dali em diante, Friedkin entrou numa espiral de azar ou má escolha de projetos. Sua refilmagem de Doze Homens e Uma Sentença (1997) para a televisão (com Jack Lemmon no papel que fora de Henry Fonda no original de Sidney Lumet em 1957) perdeu-se nas prateleiras de locadora. Regras do Jogo (2000), em que Samuel L. Jackson faz o militar julgado pelo massacre de civis numa operação na África é, a meu ver, o filme mais equivocado do diretor –em tudo que ele carrega de manipulação e patriotismo exacerbado. Caçado (2003) trouxe de volta parte do vigor de Friedkin no trato com a câmera e com seus personagens, ainda que o filme tenha se apagado na época do lançamento.

Interessante perceber que, em altos e baixos, William Friedkin jamais deixou de lado a autoria mais típica. Reza a política dos autores defendida por críticos franceses dos anos 50 e 60 (de quando se destacam Godard, Truffaut, Rohmer e Chabrol) que o autor no cinema é aquele que, ao longo de uma obra constante, mantém, desenvolve e/ou evolui temáticas e elementos de linguagem recorrentes (leia sobre o assunto com maiores detalhes aqui, em coluna do colega Leonardo Amaral).

Exatamente isso o que Friedkin jamais deixou de fazer, mesmo em seus filmes “menores”: seja o detetive atraído pela suspeita de assassinato em Jade, o jurado que acredita na inocência do acusado em Doze Homens e Uma Sentença , o coronel disposto a livrar a cara do militar em Regras do Jogo ou o investigador de volta à ativa especialmente para perseguir um suposto assassino em Caçado – todos eles estão na ação possuídos pelo desejo de alcançarem objetivos aparentemente impossíveis, e a encenação de Friedkin, sua câmera e escolhas estéticas, servem de expressão para desejos tão intensos. Não é a irregularidade da carreira que fez o cineasta deixar de lado seus pensamentos acerca do que resolve retratar na tela. O louvor a Friedkin é válido na medida em que ele insiste nos mesmos anseios, variando a forma de exibir o conceito, mas sempre se mantendo convicto do que pretende atingir – e, na maior parte das vezes, conseguindo ser grandioso na sua própria obsessão artística.

É o que se vê, finalmente, em Possuídos. De uma única tacada, o filme é um retrato do tipo de cinema apregoado por Friedkin e também do tipo de personagem tão bem trabalhado por ele em seus melhores momentos nesses 40 anos de carreira. Com total despreocupação em agradar o espectador, o diretor narra em enxutos 100 minutos a relação crescente entre Agnes, garçonete que se isola num motel de beira de estrada com medo do marido recém-saído da cadeia, e Peter, ex-militar traumatizado que acredita ter sido vítima de experiências com insetos. O filme não tem pressa: gasta boa parte de sua duração para desenvolver o encantamento natural que um personagem exerce no outro – sem que, para isso, sejam eles pessoas fora do comum. São, na verdade, dois outsiders que por puro acaso se esbarram numa noite de farra.

Só que Friedkin logo expõe a verdadeira natureza de seu filme. À medida que as paranóias de Peter aumentam, mais intenso fica o romance da dupla, e mais Agnes embarca nos pensamentos do parceiro. Da fragilidade e carência da moça, brota a crença naquilo que o outro lhe apresenta, por mais absurdo que seja o comportamento de Peter. Ambos são os obcecados típicos do cinema de Friedkin: ela quer parar de sentir medo e precisa de um companheiro; ele acha que tudo ao seu redor foi meticulosamente planejado por aqueles a quem serviu no passado e busca a todo custo se livrar das “armadilhas” colocadas em seu caminho.

Entre tantas qualidades, possíveis de perceber verdadeiramente apenas numa sessão de Possuídos, o que torna o filme tão forte é o fato de Friedkin nunca desviar a câmera da subjetividade dos protagonistas. São eles que dominam a cena, eles quem recebem a atenção e a eles o diretor deve respeito. Por mais delirantes que o enredo vai se tornando, por mais exageradas que aparentem ser as situações apresentadas e a interpretação dos dois atores, Friedkin não mede esforços para sempre deixá-los no primeiro plano dentro da ação diegética. Se a câmera “física” mostra gente de fora – como o marido de Agnes surrando a porta, já mais próximo ao desfecho –, a câmera “mental”, aquela que rege o tom e a ambientação do filme, jamais se desgruda da loucura desmedida que se apossa do casal – mesmo que, para isso, Friedkin corra sérios riscos de ser tachado de over ou risível.

Não parece ser esta a preocupação do diretor, e ele leva as potencialidades de Possuídos às últimas conseqüências – potencialidades de linguagem e estética (som, imagem, montagem, angulação de planos) e de narração e conflito (o que culmina naquele que talvez seja o final mais enlouquecido de sua carreira – e desde já digno de antologia). É Friedkin dominando o meio cinematográfico como poucos. E, como poucos, dominando bem, ao dar conta da autoralidade que, queiram ou não muitos que falam e escrevem por aí, ele possui com categoria.

Cinema de possuídos: uma conversa com William Friedkin

Famoso por dirigir "O Exorcista" nos anos 70, o diretor fala sobre "Bug" e o que pensa da indústria de cinema dos EUA

*Originalmente publicado no jornal O Tempo em 21 de setembro de 2007

Realizador do lendário "O Exorcista" (1973), que redefiniu o gênero terror, e ganhador do Oscar por "Operação França" (1971), o cineasta norte-americano William Friedkin, 72 [na época dessa entrevista], mantém-se em plena atividade. Ao longo de 40 anos de carreira, teve altos e baixos, mas o saldo computa muito mais altos. 

Vários deles foram ficando para trás na mente de boa parte do público - como "Comboio do Medo" (1977), "Parceiros da Noite" (1980), "Viver e Morrer em Los Angeles" (1985) e "Caçado" (2003) -, mas ainda mantém a genialidade de um diretor que soube subverter regras de gênero e realizar trabalhos de muita força e impacto. É assim com "Bug" - que recebeu o infame título de "Possuídos" no Brasil. 

Um dos filmes mais perturbadores e instigantes deste ano, "Possuídos" teve lançamento mundial no Festival de Cannes de 2006, de onde saiu com o prêmio principal da Quinzena dos Realizadores (mostra paralela dedicada a trabalhos de maior experimentalismo e ousadia). Estreou no Brasil há pouco mais de um mês e minguou de público. Motivos podem ser vários, e essa é uma das questões que afligem Friedkin.

Ele conversou com o Magazine por telefone, direto da Califórnia, sobre isso e vários outros assuntos. Sereno, inteligente e sucinto, Friedkin se mostra consciente de ser um artista raro dentro da máquina de produção da grande indústria. Leia a conversa logo abaixo.

Sr. Friedkin, comecemos por "Possuídos". Quando foi seu primeiro contato com a peça de Tracy Letts, "Bug", e o que o atraiu a ponto de querer realizar um filme a partir dela? A peça surgiu há dez anos e vem sendo reencenada todo esse tempo. Assisti no circuito off-Brodway em 2005 e achei tudo muito bonito e muito poderoso e perturbador. Perguntei ao Tracy se poderia fazer um filme, mostrei meu interesse. O texto era cheio de elementos que eu poderia levar para o cinema e fui atrás tentar a adaptação.

O filme é muito fiel ao original, já que contratou o próprio Letts para ser seu roteirista? Eu tentei adaptar algo que já era muito poderoso e cinematográfico. Mudamos a forma para inserir mais elementos visuais. O maior desafio foi justamente transformar em imagens coisas que no teatro seriam impossíveis de fazer. Eu já tinha dirigido uma peça do Tracy Letts no teatro, que foi "The Man From Nebraska", e conhecia seu trabalho. Os EUA vivem hoje uma crise dramatúrgica, e Letts é um dos escritores que melhor trabalham nesse ramo atualmente. É inquestionavelmente um dos melhores, então o chamei para roteirizar o filme. Filmei em 20 dias com orçamento de US$ 4 milhões.

Um dos aspectos mais atraentes e angustiantes de "Possuídos" é o fato de que a narrativa nunca deixa de lado a subjetividade. O espectador está o tempo inteiro inserido nos delírios dos personagens, num verdadeiro mergulho na loucura e no amor dos dois que estão em cena. Foi difícil manter esse tom íntimo? O senhor teve receio do filme ser repelido pelo espectador acostumado a um excesso de explicações? Eu já tinha trabalhado dessa forma em outros projetos e sabia como fazer. "Bug" é uma história de amor muito intimista de duas pessoas que estão num quarto de motel e presas nelas mesmas, em crise com elas próprias, se podemos dizer assim. A mulher, Agnes (Ashley Judd), tem tanto medo de contato com os homens, depois de um trauma que sofreu no passado, que ela fica obcecada com a possibilidade de encontrar alguém com quem ela pode se relacionar. A maioria dos espectadores, hoje, espera histórias fáceis e explicadinhas. Mas eu fiz um filme para quem não espera respostas e nem explicações, para quem não procura ou espera entender exatamente o que está acontecendo.

O senhor também filma "Possuídos" de forma pouco habitual. São poucos cortes na montagem, os diálogos são muito longos e as atuações atingem um tom acima do que seria considerado "normal" no cinema médio norte-americano. Essas escolhas fazem o filme quase um projeto experimental e joga com as sensações do espectador. Gostaria que o senhor falasse dessas particularidades no jeito de filmar um drama entre duas pessoas paranoicas. Eu tentei fazer os personagens da forma mais realista e verossímil possível. Queria que eles fossem gente que você encontra todo dia na sua vida, que você reconhece. Eu mesmo os identifico com gente que conheço. Tem sido dito que os diálogos são teatrais ou exagerados apenas porque a maioria dos filmes feitos em Hollywood hoje é ridícula. "Quem é você?", "Como vai você?", são diálogos estúpidos. Em "Bug", o público acredita nas falas, o filme mostra uma visão verdadeira do mundo da forma como ele é. Pode ficar parecendo teatral justamente porque os personagens falam por muito tempo e falam de coisas estranhas. Isso tudo acaba provocando um certo estranhamento na narrativa, mas eu acredito que esses personagens são reais e estão nas ruas. A experiência como diretor de ópera me ajudou muito na hora de conceber "Bug" e vários outros dos meus filmes. Dirigir óperas é como dirigir filmes, só que sem a câmera.

"Bug" seria bem diferente se o som não exercesse muitos significados e tornasse tudo extremamente ambíguo. "O Exorcista", seu filme mais famoso, também era muito focado no uso do som, assim como vários outros trabalhos seus. Qual a importância do som para o seu cinema? É algo essencial. Eu gravo o som separado das filmagens. Faço a trilha sonora e incluo os efeitos de som (música, atmosfera, ruídos) depois de realizar as tomadas. Essa minha preocupação com o som vem do meu amor pelo rádio, pelos dramas de rádio, que eu sempre gostei e que vieram antes da TV. Eu tento fazer com que o som seja algo fundamental nos meus filmes e sirva como complemento da imagem. Quero que um sustente o outro, sempre em equilíbrio.

O senhor enxerga algo de político em "Bug", seja na temática ou nas escolhas formais? Claro. O filme é bastante político. Todos os políticos parecem as mesmas pessoas, eles são iguais. Não adianta dizer o que vão fazer, porque são sempre do mesmo discurso, a república democrática não muda. E a política de "Bug" são as experiências com os soldados. É disso que eu falo, sobre essa paranóia que atinge o homem comum exposto aos políticos. Mas não estou dizendo que o homem no filme, o ex-soldado Peter, esteja falando necessariamente a verdade. Porque ele está tendo delírios, e o espectador pode considerar que nada no filme é verdade e tudo seja fruto de imaginação. O Peter não é simplesmente louco, ele é extremo, e a idéia da paranoia é muito forte no filme, a noção de como as pessoas tentam se defender quando acreditam estar sendo ameaçadas.

"Bug" não foi um grande sucesso nos EUA e não tem conquistado grandes platéias no Brasil. Porém, é uma unanimidade crítica desde Cannes. A que o senhor atribui a má performance de "Bug" junto ao grande público? Eu não tenho a menor idéia. Nunca paro para pensar nisso e também não entendo porque tantos filmes que não dizem absolutamente nada fazem sucesso. 

Aqui no Brasil, "Bug" foi lançado com o título de "Possuídos", numa analogia forçada a "O Exorcista" e seus demônios encarnados - ainda que "Bug" não tenha nada disso. O senhor sabia desse título? É horrível! Eu nao fazia a menor idéia. Nunca fico sabendo dos títulos fora dos EUA, nem sugiro nada. Mas "Possuídos" é muito ruim. 

Ironicamente, o seu cinema é caracterizado por personagens que poderíamos chamar de possuídos por algum tipo de obsessão ou vontade. Eles se dispõem a qualquer coisa para atingir os objetivos. É o padre de "O Exorcista", os policiais de "Operação França" e "Viver e Morrer em Los Angeles", o motorista de "Comboio do Medo", o jurado de "12 Homens e Uma Sentença", o agente de "Caçados" e o ex-militar de "Bug", entre tantos outros mais. O senhor realmente sempre procurou focar personagens ambíguos e obcecados? Eu nunca sei direito para onde estou indo. Sempre que começo um projeto, vou deixando que ele tome sua própria forma. O que me interessa todas as vezes é o limite entre o bem e o mal, é o fato de que todos nós vivemos nesse limite e isso faz parte das pessoas. Eu não tinha idéia disso no começo da minha carreira, mas agora é tudo muito claro. Nem preciso ir atrás desses temas, porque eles sempre vêm até mim de um jeito ou outro.

Em vários artigos sobre "Bug", foi comum o discurso de que o filme representou o grande retorno de William Friedkin. Porém, o senhor nunca sumiu, de fato, e sempre manteve produção constante. O que o senhor pensa disso? De fato "Bug" é uma continuidade. Os personagens e temas presentes em "Bug" são muito parecidos em vários outros filmes que eu fiz, mas a história, o enredo, é diferente. Eu busco me manter em algumas dessas temáticas ao longo dos meus projetos.

Quais são suas referências dentro do universo do cinema, tanto como cinéfilo quanto como realizador? O senhor possui filmes de cabeceira? Não tenho filmes de cabeceira e nem saberia falar sobre algum cineasta que me toque mais. Na verdade, eu poderia dizer que não sou membro de nenhum fã-clube.

E na sua carreira, o senhor destacaria algum filme em específico? Acho que não. Seria o mesmo que perguntar a um pai ou a uma mãe qual seu filho favorito. Você até pode ter um, mas não vai dizer. (risos)

O senhor vem de uma geração de grandes nomes do cinema norte-americano, como Coppola, Scorsese, Clint Eastwood. O cinema dos EUA evoluiu? Não há muito o que falar do cinema norte-americano hoje porque ele não é nada mais que um exercício comercial. Nem há como como comparar com o que fazíamos naquela época, quando essa preocupação com o comercial não era algo tão forte. Era um momento de muita liberdade, principalmente antes da minha geração, com os grandes nomes clássicos de Hollywood. Mesmo os estúdios controlando tudo, havia noção de que os diretores sabiam o que fazer. Hoje os filmes estão mais preocupados com a venda dos ingressos e com grandes orçamentos. Um trabalho de menos de U$ 100 milhões já é considerado de baixo orçamento.

Como o senhor avaliaria o significado de um filme como "O Exorcista" e a referência que ele se tornou para toda uma geração? Eu não controlo o que os meus filmes vão significar para as gerações. Simplesmente essas coisas acontecem. E também não estou atrás disso, quero continuar fazendo aquilo que eu acredito e aquilo que eu quero ver.

Está com novos projetos em andamento? Estou com vários projetos e avaliando alguns roteiros. Nunca estou parado, porque tenho outras atividades fora do cinema. Também sou diretor de ópera e viajo muito com as minhas peças, para diversas partes do mundo. Desde 1996, quando fui convidado para dirigir "Wozzeck", de Alban Berg. Já fui a Florença, Tel Aviv, Munique, Turim e outros lugares com várias óperas e é algo que me mantém sempre na ativa.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

"Suspiria" (Luca Guadagnino, 2018)

Valsa de corpo a corpo
Em polêmico remake do clássico de Dario Argento, o italiano Luca Guadagnino faz em Suspiria um horror austero e chocante, sustentado pelo olhar duro de Dakota Johnson e pela estética de um pesadelo com membros retorcidos

Vamos começar pelo elefante na sala: o Suspiria de Luca Guadagnino é a refilmagem de uma das maiores peças artísticas do século 20. Dirigido por Dario Argento e escrito em parceria com a atriz Daria Nicolodi, Suspiria chegou aos cinemas em 1977 depois do sucesso do giallo Prelúdio Para Matar (Profondo Rosso, 1975) e de uma série de outros filmes policiais do cineasta italiano. Apesar de sempre trafegar pelo gênero do suspense e do terror, Suspiria foi de fato a primeira grande incursão de Argento no horror propriamente dito, num enredo de bruxaria, ritos satânicos, casas assombradas, vermes caindo do teto e pesadelos transformados em imagens e sons. A trajetória da jovem bailarina Susie Bannion (Jessica Harper) indo estudar numa conceituada escola alemã e descobrindo o culto milenar de três bruxas-mães era só ponto de partida a um trabalho de abstração de formas e cores como nunca se vira daquela forma.

O referencial básico de Argento era o cinema delirante de Mario Bava, mas a câmera rocambolesca e a fotografia de Luciano Tovoli – praticamente coautor do filme, pela utilização de técnicas de sobreposição de películas e excesso de tons vermelho, azul e amarelo nas luzes – faziam de Suspiria um gigantesco passo rumo a um cinema de esfacelamento narrativo e de grandiosidade sensorial e afetiva. Não é que o espectador precisasse compreender os acontecimentos, e sim senti-los, absorvê-los, aceitar o convite de bailar junto com Susie pelas profundezas de seus medos e pesadelos, na sua fábula de amadurecimento e violência cujo deslumbre estava na geometria dos espaços e dos planos e nos mistérios de nunca se saber exatamente o que havia no fim do corredor. Entre Luis Buñuel e David Lynch, Argento fez de Suspiria o registro fílmico de uma noite maldormida. [Escrevi mais detidamente sobre o filme aqui.]

Comparar um Suspiria ao outro, além de improdutivo, seria lidar com duas medidas completamente diferentes. Luca Guadagnino circula com seu projeto de refilmagem desde 2007, quando adquiriu os direitos de refazer o original diretamente com Argento e Nicolodi. Dez anos (e o sucesso de Me Chame pelo Seu Nome) depois, o italiano estreou a sua versão no Festival de Veneza em setembro de 2018 e mostrou o consciente afastamento do que Argento fizera em 1977. O Suspiria de Guadagnino é como se um negativo ao de Argento (não uma negação, que fique claro). Sem deixar de ser tributário ao mesmo tempo em que não se permite ser refém do original, Guadagnino fez um filme estritamente seu, sem temer comparações e questionamentos. Se é para emular uma obra de arte, que se se afaste dela para, com isso, se aproximar.

Em certa medida, funcionou: Dario Argento criticou o filme por, segundo ele, “trair o espírito do original”. A declaração indica o pressuposto de que exista um “espírito” criativo a que Guadagnino deveria preservar e respeitar e ao qual deveria ser fiel. Tal percepção denota idealização um tanto cafona do cinema enquanto criação e tende a soar absolutista, no sentido de impor ao artista um limite de “respeito” a determinada aura que não pode ser ultrapassado, sob risco de traição e incapacidade. Que um gênio como Dario Argento nos permita discordar de sua premissa. Ela está errada, pelo simples fato de que o Suspiria de Guadagnino não precisava se comprometer a “respeitar” o que quer que fosse dentro de seu senso criativo. Se há um espírito a ser preservado, é o de si próprio. O novo Suspiria opta por se desgarrar do irmão mais velho – que sempre estará lá, no pedestal de um dos mais impressionantes filmes do mundo – e caminha solitário por vielas desconhecidas e arriscadas.

Ambientado no ano de 1977 (não é coincidência), Suspiria insinua, logo nas primeiras cenas, que vai tratar de uma história de bruxaria. A rápida participação de Chlöe Grace Moretz como a dançarina desgarrada que se confessa ao psicanalista estabelece a base da ação: ambiguidade, contradição, mistério. Por muito tempo, ao longo dos 150 minutos de duração de filme, o espectador fica alheio ao que realmente acontece no submundo da escola de dança alemã para onde vai a protagonista Susie Bannion (agora vivida por Dakota Johnson). Dessaturada e acinzentada, a fotografia de Sayombhu Mukdeeprom esconde quaisquer possíveis atrativos visuais que o ambiente pudesse oferecer. Trafegando pelas ruas e por dentro da escola, a câmera faz da sobriedade de registro o passo inicial para as distorções narrativas que logo vai expor. Porque Suspiria ainda permanece um pesadelo, seguindo lógicas próprias e convidando o espectador a adentrar no imaginário de mitos europeus que reconfiguram a noção de conto de fadas que era forte no roteiro original.

Thom Yorke canta na música-tema: “This is a waltz thinking about our bodies/ What they mean for our salvation” (esta é uma valsa pensando nos nossos corpos/ o que eles significam para nossa salvação). O verso é carta de intenções de Suspiria. São corpos os protagonistas do filme, ou mais que isso: a deterioração dos corpos. O desencadeamento dos conflitos se dá pela morte iminente de uma das bruxas, cujo corpo envelhecido é agora apenas uma massa de pele sobreposta, como se derretida. Acredita-se que ela seja a encarnação da mítica Mãe Suspiriorum, espécie de deusa protetora que de tempos em tempos reaparece. É preciso que um receptáculo se faça disponível para a chegada de Suspiriorum. Susie é a escolhida, aquela cuja dança ativa as potencialidades do ritual de transferência. A força dessa dança – desse corpo que existe para se tornar outro – aparece na primeira grande cena de Suspiria: enquanto Susie faz uma audição diante de Madame Blanc ((Tilda Swinton), a enigmática diretora da escola, seus movimentos afetam diretamente a estudante Olga (Elena Fokina), castigada por gritar contra as atividades ocultas do lugar, que teriam provocado o desaparecimento de Patricia (Chlöe Grace Moretz). O triunfo de Susie é o castigo de Olga, a aflição e plasticidade dos movimentos resfolegantes da primeira resulta na torção e retorção da segunda. Suspiria se apresenta sem sutileza pela primeira vez: para um corpo eternizar a beleza, é preciso que outro desapareça na feiura.

Não se trata do “body horror” eternizado pelo cinema de David Cronenberg, nem das chagas e castigos contra a pele vistos nos gialli que são base do primeiro Suspiria. O filme de Guadagnino se aproxima mais da abstração da violência e do não-visto de O Inquilino (Roman Polanski, 1976) ou de Possessão (Andrzej Żuławski, 1981), com protagonistas convidados a adentrar mundos estranhos e ambíguos, nos quais caminhos labirínticos levam a encontros consigo mesmos e com seus próprios fantasmas. A fantasmagoria do eu se projeta no outro, num choque à distância que logo se revela, de fato, dentro de quem olha. Nestes filmes, o corpo é passagem à abstração; sua destruição no contato com o sobrenatural se dá na transição para um suposto superior construído pelos arquitetos da metamorfose.

No caso de Suspiria, a transfiguração se encaminha para uma coisa e se torna outra – ou seja, Susie se transfigura duplamente. O embate entre ela e Madame Blanc, tão competitivo quanto sexual, desvia a atenção para a verdade: o corpo a ser ocupado por uma entidade mítica já está ocupado pela própria Suspiriorum. Novamente como no cinema de Polanski, o “eterno retorno” nietzschiano faz com que o ponto de partida seja, desde sempre, o ponto de chegada. O corpo de Susie, escolhido pelas bruxas para receber o espírito de uma das Três Mães, já estava ele mesmo dominado por ela. A revelação, trabalhada ao longo do filme pela forma precisa com que Guadagnino dirige Dakota Johnson e pelo semblante austero da atriz, se dá num espetáculo escarlate de muito sangue e música, em imagens alucinadas de uma ritualística de morte que parece misturar Ingmar Bergman e José Mojica Marins.

Em meio a tudo, Luca Guadagnino e o roteirista David Kajganich contextualizam Suspiria no chamado Outono Alemão, período iniciado em 5 de setembro de 1977 com o sequestro do empresário Hanns Martin Schleyer pelo grupo guerrilheiro RAF (Fração do Exército Vermelho). As desventuras de Susie e das bruxas na escola de dança acontecem em paralelo à tensão que perdurou por 44 dias e terminou com a execução de Schleyer. Outro elemento de teor político inserido no enredo é o psicanalista Josef Klemperer, interpretado por Lutz Ebersdorf, pseudônimo de outra pessoa (cujo nome você vai ter que procurar na internet para saber quem é, caso não saiba). Sobrevivente do Holocausto, ele se envolve no culto das Três Mães para descobrir a verdade sobre uma paciente e acaba por reviver um passado de perda e luto.

Estes “desvios” do filme amplificam seu espectro e retiram-no da alegoria e da sutileza para inseri-lo dentro de um mal-estar profundo que mobilizava o país naquele momento histórico. Os mistérios em torno de Susie, Madame Blanc, Patricia, Olga, a dança e as investigações de Klemperer não se desconectam do noticiário (sempre apresentado tangencialmente, mas nunca desatentamente), e sim refletem ou mesmo ilustram um estado de espírito nacional. A Berlim em polvorosa de Suspiria cabe inteira na escola de dança de Madame Blanc. A entidade que se quer resgatar do mito para trazê-la ao concreto é a utopia de alguma harmonização monocrática (pelo caminho do sangue e do viés totalitário) e de um sentido amplo (e arriscado) de confraternização que o coven de bruxas quer sustentar. As dores da guerra ainda a reverberarem em Klemperer fazem com que ele, próximo do fim da vida, busque alguma redenção pelo olhar de alguém a quem conhece intimamente – e, se salvar pelo menos a memória de Patricia, talvez ele reconfigure a lembrança da esposa assassinada pelos nazistas e também a si mesmo.

A narrativa de Suspiria se divide em seis partes e um epílogo, emulando o tom de conto de fadas que se tinha no filme de Dario Argento, porém usando essa compartimentação de ações para se distanciar emocionalmente do material. O filme se desenvolve num afastamento de sentimentos, na crueza da abordagem, na câmera tão dura e sustentada quanto o olhar de Susie Bannion. Só no epílogo, com parcimônia, surge um instante de lágrima e comoção, não diretamente relacionado à trama central do filme, o que reforça a escolha de Guadagnino por expor o pesadelo muito mais do que tentar compreendê-lo. Esse já era o espírito do Suspiria de Argento e ganha aqui um herdeiro a renegar o pai ao mesmo tempo em que o admira sem pudores. O espírito do Suspiria de Luca Guadagnino é o da inquietação e da perturbação, ou como canta Thom Yorke: “Bathed in lightness, bathed in heat/ All is well, as long as we keep spinning” (Banhado em leveza, banhado em calor/
Tudo está bem, contanto que continuemos girando
).

*Publicado na revista "Teorema"#31 em setembro de 2019

sábado, 28 de dezembro de 2013

Entrevista: William Friedkin sobre "Killer Joe"

*Publicado originalmente no jornal "Valor Econômico" em 7.3.2013

O ator Matthew McConaughey e o diretor William Friedkin
Em fevereiro de 1974, "O Exorcista" tomou 15% da renda do mercado de cinema nos Estados Unidos, arrecadando, ao fim de sua temporada, US$ 160 milhões (numa época em que o ingresso custava apenas US$ 3). Homem responsável pela façanha de, pela primeira vez, transformar um filme de horror em fenômeno de massa, o cineasta William Friedkin virou lenda em Hollywood - anos antes, em 1972, ele ganhara o Oscar de melhor diretor por "Operação França".
Mesmo seguindo no ofício pelas quatro décadas seguintes, Friedkin não conseguiu repetir o impacto cultural de "O Exorcista". Após alguns anos fazendo filmes que foram fracassos comerciais, o diretor se renovou ao se aproximar do dramaturgo Tracy Letts, autor das peças que originaram "Possuídos" (2006) e "Killer Joe - Matador de Aluguel", que estreia no Brasil nesta sexta-feira.
Com Matthew McConaughey (de "Magic Mike") e Emile Hirsch ("Na Natureza Selvagem") no elenco, o filme, que concorreu ao Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2011, conta a história de um traficante de drogas que contrata um assassino para matar a própria mãe a fim de usar o dinheiro do seguro para pagar suas dívida. Leia a seguir a entrevista com o cineasta de 77 anos.
"Killer Joe - Matador de Aluguel" se passa numa comunidade pequena, com pessoas aparentemente comuns cometendo atos de violência e perversão. O aspecto mundano dos personagens foi um elemento essencial ao filme?
 Todos os personagens são gente comum não só na América, mas no mundo inteiro. A ambição faz as pessoas cometerem coisas estúpidas de maneira a satisfazer seus desejos. Imagine: no enredo, pai e filho querem dar a filha e irmã para esse matador e querem que ele mate a mãe dela. É um comportamento estranho, mas não é atípico a algumas pessoas. [O dramaturgo] Tracy Letts pegou essa história de um caso real que ele leu nos jornais da Califórnia. É assustador, e acontece todos os dias.
Um elemento de impacto em "Killer Joe" é o clima de opressão, como se algo ruim estivesse sempre para acontecer. A narrativa é clara e objetiva em tudo, algo característico nos seus filmes.
Eu acredito na objetividade. Não tento justificar nem julgar os personagens e deixo o final ambíguo, para que o público determine o que pode acontecer. Eu mesmo não sei o que acontece com aqueles personagens quando o filme acaba e me divirto com as várias opiniões discordantes sobre isso. Não quero dar respostas sobre o que sentir em relação àquelas pessoas em cena, então conto da maneira mais clara e deixo toda a ambiguidade aflorar.
Uma das cenas mais fortes e tensas envolve um frango frito da rede KFC. Ela estava originalmente na peça de Letts?
Sim, a cena estava na peça, mas não me lembro se ela era tão longa como a que coloquei no filme. Sinto que meu trabalho como diretor é proporcionar uma atmosfera para o elenco e a equipe se sentirem livres para criar. Passamos muito tempo falando não só dessa cena, mas de todas as outras, e queria que cada ator entendesse o que acontecia e por que acontecia. Então eles simplesmente faziam. Não havia nenhuma tensão no set. Fizemos a cena do frango apenas duas vezes, de pontos de vista distintos, porque tínhamos só uma câmera. É uma bela cena de punição e de vingança.
O que tanto o aproxima de Tracy Letts, dramaturgo de quem o senhor adaptou as peças "Bug" ("Possuídos") e "Killer Joe" para o cinema?
Temos o mesmo ponto de vista sobre o mundo. "Possuídos" fala de como duas pessoas ficam perto uma da outra, absorvidas pela paranoia. "Killer Joe - Matador de Aluguel" é uma comédia de humor negro sobre a linha entre o bem e a mal, e Tracy tem uma visão bastante peculiar sobre isso. Eu só filmei esses dois textos, mas dirigi outra peça dele no palco, na Califórnia. Estamos conversando sobre um próximo projeto no cinema, que deverá ser um roteiro original dessa vez.
O seu cinema é marcado por personagens obsessivos e impetuosos, dotados de moral e crenças muito próprias. De que maneira o senhor se aproxima da psicologia tão particular de pessoas assim para retratá-las em cena?
Já senti de alguma forma todas as emoções que coloco nas telas. Não faria um filme se não entendesse os personagens e não faço filmes há 45 anos por outro motivo senão pelo fato de que eu compreendo como se sentem as pessoas que retrato. Tudo o que escolhi filmar foi motivado pelo meu interesse pessoal nessas figuras e, por isso, me tornei cineasta. Por exemplo, já tive o instinto de machucar, já senti vontade de matar alguém. Nunca matei ninguém, é claro, mas entender o sentimento torna mais fácil abordar um personagem com o impulso de matar outra pessoa. Em tudo que faço e assisto gosto de ser envolvido nesse nível de intensidade.
O senhor está finalizando "The Friedkin Connection" [previsto para ser lançado em 16 de abril nos EUA], um livro de memórias. Que tipo de recorte foi feito na sua vida e obra?
Espero que chegue ao Brasil. É uma autobiografia que me tomou três anos. Esperem muita honestidade sobre os meus sentimentos e de tudo que é mais importante para mim. Escrevo basicamente sobre minhas experiências no cinema e na ópera. Claro, a maior parte do livro é sobre aspectos profissionais, porque não sou o George Clooney. As pessoas não devem ter mais interesse na minha vida pessoal do que nos meus filmes.
O senhor tem alguma relação com o Brasil?
Friedkin: Gosto muito do país de vocês! Tenho um projeto de documentário, a ser filmado em Imax, sobre o Carnaval, essa festa que conheci ao assistir a "Orfeu Negro" (1950), de Marcel Camus. Na verdade já seria meu próximo trabalho, mas por alguns problemas ele não foi feito, e acabamos por filmar "Killer Joe". Ainda pretendo fazê-lo. Além disso, a esposa de Matthew [McConaughey], Camila Alves, é do seu país, de Minas Gerais [da cidade de Itambacuri].
Apesar de dizer que não acompanha a produção atual de cinema, o senhor é fã dos irmãos Coen. O que gosta neles?
Friedkin: Meu favorito dos Coen ainda é o primeiro, "Gosto de Sangue" [1984], mas gosto muito de "Onde os Fracos Não Têm Vez" [2007] e adoro "Um Homem Sério" [2009], filme hilário que lembra muito a minha infância. Eles são grandes cineastas, que não se deixam levar pelos estúdios. Os Coen se baseiam naquilo que realmente os interessa e têm uma técnica muito precisa. São mais intensos do que qualquer um que trabalhe hoje em Hollywood.


Arraste-me para o inferno: "Killer Joe"

No perturbador Killer Joe, William Friedkin evidencia seu estilo direto e despudorado ao narrar a trajetória de personagens sem possibilidade de redenção

por Marcelo Miranda
(publicado na revista Teorema, edição 22, primeiro semestre de 2013)

William Friedkin no set
Aos moldes de Howard Hawks, Samuel Fuller, John Carpenter, Jean-Luc Godard ou Maurice Pialat, o norte-americano William Friedkin é um cineasta da evidência. Seus filmes não significam, simbolizam, representam ou transmitem: eles simplesmente são. Friedkin filma como mostra e mostra como filma; aquilo que aparece na tela é a evidência objetiva e direta de como objetos ou corpos vistos pelos nossos olhos em cena existem no mundo fora da tela. “A realidade é despojada, abstraída e, finalmente, reintegrada ao seu estado bruto”1. Friedkin é, a seguirmos a essência do pensamento de Rogério Sganzerla, um cineasta do corpo: “Os cineastas do corpo captam os exteriores dos seres e coisas, valorizam as superfícies. Aí está um dos elementos da sua modernidade”2. A relação com o corpo, em Friedkin, é próxima do literal e, na maior parte das vezes, dolorosa: seus personagens são fisicamente maculados, espancados, profanados, queimados, até verdadeiramente destruídos. Em seu cinema, podemos sentir que a perceptível fragilidade do corpo humano – a fineza da pele, os delírios da ferida profunda ou a dor de um pequeno corte – está integralmente lançada na imagem e no som, sendo tratada, de fato, como ela é e pode ser sentida por aquele que a testemunha durante a projeção do filme.

Em Friedkin, a deterioração física muitas vezes surge acompanhada pela deterioração mental ou espiritual – e vice-versa. Na medida em que perdem espaço para o demônio, corpo e mente da garotinha Regan, em O Exorcista (The Exorcist, 1973), vão ficando mais horrendos, purulentos, desprezíveis e destrutíveis. A reação imediata de quem esteja ao redor é o nojo, a negação daquela imagem que parece não ter mais reversão. A Regan doce e inocente dá lugar ao diabo encarnado e provocativo, de voz gutural e gestos obscenos. Trajetória similar, porém em outros tipos de ambientação e interação, vão ter o policial infiltrado nas boates sadomasoquistas em Parceiros da Noite (Cruising, 1980) e o colega do protagonista de Viver e Morrer em LA (To Live and Die in LA, 1985): ambos serão arrastados pelas circunstâncias e terão seus corpos e mentes caminhando da tradição e obediência exigidos por seus deveres rumo ao subversivo e irracional necessários a uma nova concepção moral de sobrevivência.

Possuídos (Bug, 2006) também guarda nas percepções do corpo aquilo que o irá destruir. Agnes e Peter, ao se trancarem num quarto de motel na beira da estrada, formam o casal singular que se deteriora a cada descontrole relativo a insetos e conspirações do governo. Da impossibilidade de vencer as neuroses, apenas lhes resta a autoimolação como gesto final de amor e cumplicidade. Jackie, único sobrevivente da viagem suicida de O Comboio do Medo (Sorcerer, 1977) a bordo de um caminhão repleto de nitroglicerina, tem seus delírios nos momentos finais da jornada, obcecado que está em cumprir a tarefa e eventualmente ir embora daquele inferno que é o local onde se exilou para não morrer nas mãos de bandidos. Porém, Jackie sabe que a fuga é impossível; na evidenciação de limites físicos e espirituais, ele se dará o direito de convidar uma moça para a última dança num bar imundo. “O medo irracional e a paranoia são velhos amigos meus”, declara Friedkin em sua recém-publicada autobiografia3.

Killer Joe – Matador de Aluguel (Killer Joe, 2011) está menos atento a paranoias do que ao medo irracional. Na essência, o que move o personagem Chris (Emile Hirsch) é o bom e velho medo de morrer. Devedor de dinheiro a selvagens traficantes numa pequena comunidade do Texas, o rapaz encontra no assassinato encomendado da mãe a saída para seus dilemas. Terá o apoio do pai, da irmã e da madrasta. “Por acaso ela está fazendo algo de bom?”, questiona Chris, ao justificar o porquê de não sentir remorso por contratar um mercenário para eliminar a mãe, nunca efetivamente vista no filme (exceto quando apenas um corpo morto) e descrita pelos demais personagens como alcoólatra, drogada, amoral, encrenqueira e, nas memórias da jovem Dottie (Juno Temple), a semi-assassina da filha.

O medo, portanto, move o xadrez dos personagens centrais de Killer Joe. Medos distintos – não só da morte, mas da pobreza, do desemprego, da humilhação, do sexo (apesar da aparente ojeriza de Chris ao ver a madrasta andar nua pela casa, ele parece, na verdade, muito mais amedrontado com a liberdade sexual que ela demonstra possuir). Adaptado da primeira peça teatral de Tracy Letts, escrita com “um arraigado sentimento de raiva” (segundo Friedkin) em 1991, quando o dramaturgo tinha 25 anos, o enredo permite apenas a Joe Cooper, o policial corrupto que faz serviços de assassinato sob encomenda, não sentir qualquer tipo de medo.

Joe (Matthew McConaughey) é uma aparição na tela, uma “força da natureza” (como já definiu Friedkin), a imagem mítica da perversão e da maldade travestida com roupa preta, chapéu, cinto e óculos escuros, somados à pose de típico xerife de faroeste cuja propensão à moral e aos bons costumes segue regras condizentes apenas a si mesmo. Joe Cooper é uma espécie de anjo da morte, a materialização sobrenatural e moralizante que perpassa o caminho de todos os demais personagens. Durante o filme, ele é o único em cena a não ser mostrado em conflitos pessoais ou na resolução de alguma pendenga efetivamente sua. Mesmo a propalada faceta de policial apenas nos é dada pela narração de quem fala sobre Joe (num único momento, ele é rapidamente visto saindo da delegacia de uniforme, antes de logo se “transformar” na figura afetada do matador).

Sob aspectos tortos, Joe é também o príncipe (des)encantado de Dottie. Num mundo sujo, grotesco e distante de sentimentos positivos, Joe, esse ser que vem de fora para perturbar e dar lições com seu modo brutal e opressivo, capta a atenção e o afeto da única personagem em cena ainda não corrompida pelo veneno de rato a perpassar todos os cantos. Existe certa lógica na intimidade distorcida criada entre Dottie e Joe: submetida aos humores de um pai relapso e grosseiro, de uma madrasta mentirosa e agressiva e de um irmão que, apesar de amá-la e tentar poupá-la, aceita negociar sua virgindade como garantia de pagamento ao potencial assassino da mãe – para Dottie, enfim, fabular e jantar com uma figura como Joe, de discurso sedutor e manipulador, dono de “olhos que ofendem”, parece ser quase o caminho natural (senão o único) que lhe resta dentro da lógica cruel exposta pelo filme.

Sem subterfúgios, Friedkin coloca o espectador repentinamente um passo adiante de Joe na cena em que ele assedia Dottie. Quando ele pede que ela troque o vestido ali mesmo na sala, o personagem vira-se de costas, mas a câmera se sustenta no olhar frontal. O enquadramento se posiciona atrás de Joe, permitindo que tenhamos o mesmo ângulo de seu olhar anterior para Dottie, porém nos inserindo na delicada e incômoda situação de sermos apenas nós a vermos a nudez da garota. Quando Joe enfim se vira, a câmera continua em Dottie, intercalando a imagem dela com planos-detalhe do matador em seu strip-tease particular (no caso, retirando de si os objetos que o identificam como sendo um policial).

Eis é a grande questão controversa de Killer Joe: o total e irrestrita ausência de redenção, de respiro, rachaduras ou buracos na implacabilidade desenvolvida em seus 100 minutos de duração. A evidência característica da obra de Friedkin está, aqui, em potência máxima. O recorte definido pelo texto de Tracy Letts e seguido à risca pelo cineasta não tem qualquer puder de soar desagradável e reúne, desde os primeiros segundos, sem ambiguidades, um festival de crueldade, desamor, sujeira, traição, violência e opressão (física e psicológica). Podemos novamente recorrer a Sganzerla ao falar dos filmes desprovidos de elementos para além da produção de presença: “Os conflitos provêm do instinto animal dos personagens, da condição animal do homem. A psicologia é relegada a segundo plano, tornando-se impotente para 'explicar' este instinto”4. Ou então como já escreveu Godard: “Os seres e os objetos já não são situados psicologicamente, nem moralmente e ainda menos sociologicamente”5. Por essa lógica, Killer Joe não traz (nem procura) responder às ações dos personagens; o filme pretende simplesmente nos convidar a um passeio pelo inferno e exibir tais ações através do que Sganzerla chamaria de “câmera cínica”, sem manejos cerebralistas, formalistas ou intelectualizantes – em suma, sendo moderno.

Geograficamente, o inferno de Killer Joe se situa no interior do Texas, apresentado no filme como ambiente arcaico, retrógrado e primitivo, morada de “caipiras com muito espaço em volta”, nas palavras de Chris. Forçando analogia não tão destituída de sentido, este parece o mesmo Texas apodrecido mostrado por Tobe Hooper no clássico O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chainsaw Massacre, 1974), porém em chave dramática, e não horrorífica. Há, inclusive, uma referência inesperada numa das falas de Joe: ao espancar Sharla (Gina Gershon), a madrasta, o mercenário esbraveja: “Vou cortar seu rosto e usar em cima do meu!” – exatamente o que o notório assassino do filme de Hooper fazia com as vítimas.

No meio de todo o caos – tamanho caos que permite ao filme entrar na chave do humor negro com naturalidade desconcertante –, o afeto surge (logicamente envergado) no cuidado de Chris com Dottie (não sem antes sabermos que o rapaz tem sonhos nos quais vê a irmã se despindo diante dele) e no sentimento crescente que parece verdadeiramente surgir de Joe para com a mesma Dottie. Os dois afetos mostrados no filme (de Chris e de Joe) tendem a ser socialmente considerados doentios e questionáveis; ao surgirem de maneira tão objetiva dentro da narração corpo a corpo do cinema de Friedkin (reforçada por elipses temporais que nos suprimem alguns detalhes do desenvolvimento dos personagens), provocam perturbação e inquietude na experiência de se assistir ao filme.

Killer Joe se sustenta na exposição de uma trajetória fabular que, como qualquer autêntico conto de fadas, contém uma premissa de risco, um entrecho de violência e um desenlace moralizante, aqui acrescido de elementos de repulsa. Joe Cooper é o lobo mau da história, Dottie é o ser inocente e puro a povoar suas fantasias, Sharla é a madrasta má que será a grande artífice das vilanias do enredo. Na lógica de Joe, há regras de comportamento que precisam ser apreendidas, e o pensamento a reger tais regras é o daquele Texas primitivo já aqui comentado. No primeiro encontro com Dottie, o mercenário narra a história de um homem que, para dar uma lição à namorada que o traíra, ateou fogo nos próprios órgãos genitais. Ao contar, ele se mostra transtornado pelo ato, mas reconhece, pelo discurso, que a lição era necessária. “Aplicar uma lição” será exatamente o que Joe fará com toda a família de Chris (exceto Dottie) na espetaculosa e polêmica sequência final.

Grande exemplo do controle de Friedkin sobre a atenção do espectador, o desfecho de Killer Joe dura 25 minutos, a partir do momento em que Ansel, o pai (Thomas Haden Church), e Sharla, a madrasta, chegam em casa depois do funeral de Adele, a mulher assassinada sob encomenda. Friedkin, como Roman Polanski, sempre foi um mestre em controlar a ação dentro de espaços delimitados, desde os primórdios com Os Rapazes da Banda (The Boys in the Band, 1970), passando pelos momentos mais inspirados de O Exorcista, Possuídos e todo o seu 12 Homens e uma Sentença (12 Angry Men, 1997). Como artífice de um teatro da crueldade, Joe surge na cena final de Killer Joe e começa a preparar o cenário: ele retira objetos de lugar, coloca uma coxa de frango frito do K-Fry-C na mesa sob um guardanapo, atualiza-se sobre a apólice de seguros de Adele, presta atenção a cada canto do trailer onde a família mora, caminha, ajeita o ambiente – numa cuidadosa e intensa preparação para seu perturbador espetáculo de sadismo.

O ápice será a o espancamento seguido da felação de Sharla com a coxa de frango, enquanto Joe entoa o discurso de que fora “injustiçado” em relação à apólice de seguro e ao pagamento que lhe deviam pela morte encomendada de Adele. A “grande lição” de Joe é filmada por Friedkin frontalmente, com planos baixos mostrando a mulher, contra-plongées do rosto do criminoso enquanto fala e o olhar passivo de Ansel: eis um trio de imagens que permite ao público testemunhar o ato grotesco do personagem, sem qualquer tipo de filtro ou desvio. A ação de Friedkin enquanto realizador é tão sádica quanto a de Joe enquanto personagem, ao mesmo tempo em que mantém a lógica da exposição e evidência que perpassa todo o filme – e, no choque entre o que vemos dentro da diegese e como vemos essa diegese, há um curto-circuito na nossa sensibilidade, exatamente por manter a coerência estética e narrativa. A “lição” dada por Joe não é bonita de se ver e nem é filmada como algo bonito, mas o que temos ali é o personagem Joe Cooper. Dentro de seu raciocínio opressivo e reacionário, aquele show de horrores lhe faz todo o sentido, tanto quanto espancar Chris (com a ajuda de Ansel e Sharla) para poder levar Dottie embora.

Por maior que seja o tom tragicômico em cada grande ato do enredo de Killer Joe – especialmente no desenlace, incluindo a aparente e patética epifania de Joe ao saber da gravidez de Dottie em meio à carnificina –, a tragicomédia exposta por Friedkin pode nos causar riso muito mais por seu sentido de “tragédia” do que de “comédia”. Eis, aqui, outro elemento de perturbação trabalhado no limite por Friedkin. A relação entre riso e choque em Killer Joe de certo modo o aproxima do cinema de Joel e Ethan Coen, não apenas pelo uso repentino e gráfico de violência em alguns trechos, mas também pelos rumos rocambolescos da trama cujo estopim é a ambição por dinheiro. Trata-se de um Fargo (1996) ou um Gosto de Sangue (Blood Simple, 1984) mais malcomportado, porém não menos trágico e irônico – e sem o teor um tanto quanto manipulativo dos irmãos cineastas. Friedkin disse recentemente que os Coen são os realizadores americanos que mais lhe interessam hoje em dia, o que revela poder ter havido algum tipo de inspiração deles no desenvolvimento de Killer Joe – permitindo, nisso, um refluxo de influências, visto que os Coen, mais jovens, devem muito de suas estripulias à liberdade proporcionada pelo cinema da geração de Friedkin.

Próximos dos 80 anos de idade, William Friedkin se mantém um marginal da indústria, fazendo os filmes que bem entende da maneira que lhe convém. Justamente por isso, permanece um diferencial dentro da própria indústria que o abraçou nos anos 70 – após os Oscars por Operação França (The French Connection, 1971) e o sucesso de O Exorcista – e depois o expeliu, quando ele não se enquadrou, por motivos artísticos e pessoais, ao modelo pasteurizado de Hollywood. Ninguém melhor que o próprio Friedkin para encerrar este texto:

“Eu nunca joguei pelas regras, muitas vezes para meu próprio prejuízo. (…) Alguns dos meus filmes são muito conhecidos; outros foram esquecidos, perdidos na montanha-russa que é Hollywood, onde alturas vertiginosas são seguidas por profundezas angustiantes. (…) Você pode ter prateleiras de troféus e citações, aparecer nas melhores listas dos críticos, ser homenageado em festivais por todo o mundo, mas você ainda vai precisar se encontrar com um jovem executivo de estúdio que nunca produziu, escreveu ou dirigiu e vender-se a si mesmo como se fosse sua primeira vez.” 6




1    Rogério Sganzerla no artigo “A 'câmera' cínica”, publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 11 de julho de 1964 e reproduzido nos livros Por um Cinema sem Limite (Azougue, 2001) e Textos Críticos 1 (Ed. UFSC, 2010).
2    Rogério Sganzerla no artigo “Cineastas do corpo”, publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 26 de junho de 1965 e reproduzido nos livros citados na nota anterior.
3    The Friedkin Connection – A memoir (Ed. HarperCollins, 2013)
4    Idem nota 1.
5    Citado por Rogério Sganzerla em “A 'câmera' cínica”.
6    Idem nota 3.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Os brasileiros em Cannes 2013

Os dois curtas-metragens brasileiros selecionados para mostras paralelas do 66º Festival de Cannes – o paranaense Pátio, de Aly Muritiba, estará na Semana da Crítica; o mineiro Pouco Mais de um Mês, de André Novais Oliveira, participa da Quinzena dos Realizadores – são, ao menos até agora, os únicos representantes do País no maior evento de cinema do mundo. Numa edição do festival quase sem nenhuma presença latina, ambos têm em sua gênese a inspiração de experiências estritamente pessoais e o fato de terem sido vistos por olheiros de Cannes em janeiro, na 16ª Mostra de Tiradentes, onde foram apresentados na seção Foco, a principal vitrine de curtas do festival
mineiro.

Aly Muritiba (à direita), nascido na Bahia e radicado no Paraná, trabalhou por sete anos como agente penitenciário na Casa de Custódia de São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba. Em paralelo, cursou cinema na capital. A junção das duas atividades lhe deu a ideia de realizar uma trilogia de filmes ambientada na cadeia e da qual Pátio é a segunda parte. “Essa imersão, de ter passado tanto tempo em contato com aquele mundo (da prisão), me fez refletir sobre o sentido, ou melhor, a falta de sentido, do sistema penal e no quanto quem está lá dentro, seja preso ou funcionário, é visto com enorme preconceito”, diz o diretor.

Pátio, de linguagem minimalista, fixa a câmera diante de uma grade onde se consegue ver o dia de um grupo de presos num momento de recreação. Eles conversam, jogam bola, falam de suas vidas e famílias, tentam fazer o tempo passar – até que a noite vem e os encaminha de volta às celas. “Busquei uma abordagem, digamos, mais humanizada do sistema penitenciário brasileiro, ao ser visto de dentro para fora”, afirma o cineasta.


A primeira parte da trilogia de Muritiba, A Fábrica, foi lançada em 2011, percorreu mais de 100
festivais em todos os continentes e ganhou 62 prêmios mundo afora. Pátio venceu, no começo
de abril, o troféu de melhor curta do É Tudo Verdade, em São Paulo. O desfecho da trilogia está filmado e montado. Será um longa-metragem, intitulado A Gente. Com ele, o realizador vai completar a trinca de pontos de vista do sistema prisional – os familiares, os presos e os agentes penitenciários.

No caso de Pouco Mais de um Mês, a fagulha para o filme veio de um momento de intimidade entre André Novais (à esquerda) – diretor, roteirista, produtor e ator do curta – e a namorada, Elida Silpe. Numa manhã em que acordaram juntos no apartamento dela, a moça mostrou ao rapaz um fascinante fenômeno ótico de “câmara escura” em seu quarto, no terceiro andar do prédio: ao atravessar um furo na cortina fechada da janela, o reflexo da luz do sol gerava, no teto, uma imagem nítida e invertida da rua. “Quando vi aquilo pela primeira vez, tive imediatamente a vontade de fazer um filme a respeito”, relembra o cineasta.

Em menos de 20 dias, André escreveu o roteiro sobre um casal vivendo a insegurança do começo de uma relação amorosa. Como ele e Elida viviam momento similar, o autor sugeriu à recém-namorada que ambos atuassem no filme, mesmo sem formação profissional como intérpretes. Apesar de parecer, Pouco Mais de um Mês não chega a ser um filme autobiográfico. “Inventei aquela situação entre dois personagens”, revela. Ao realizador, interessava transmitir o naturalismo do instante, o que lhe permitiu assumir a influência do iraniano Abbas Kiarostami e do britânico Mike Leigh.

Filmado num único sábado, em outubro do ano passado, e montado em quatro dias, Pouco Mais de um Mês guarda apenas dois elementos efetivamente vindos da vida real de André e Elida: a “câmara  escura”, que André conseguiu filmar com o diretor de fotografia Gabriel Martins, seu sócio na produtora Filmes de Plástico (junto com Maurílio Martins e Thiago Macêdo); e um monólogo em que ele narra, com voz off, como conheceu Elida durante a mostra Indie, em Belo Horizonte.

* Íntegra de matéria parcialmente publicada no Estado de S. Paulo no dia 24.4.2013.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Michael Haneke e "Amor"


Nascido em Munique de família austríaca, Michael Haneke é um homem que ri. Pode soar estranho constatar isso de um artista que já nos ofereceu trabalhos tão duros no cinema, muitas vezes experiências realmente perturbadoras de se acompanhar. Mas Haneke tem sorrido cada vez mais desde quando A Fita Branca (2009) se tornou seu projeto mais premiado em toda a carreira – incluindo a Palma de Ouro no Festival de Cannes. No último domingo (em maio de 2012), novamente no evento francês, Haneke roía as unhas enquanto, sentado no Grand Theatre Lumiére, acompanhava a premiação da 65ª edição do festival. Quando Amor foi anunciado pelo italiano Nanni Moretti, presidente do júri, como o ganhador da Palma deste ano, o austríaco renovou o sorriso e não o largou mais.

Amor aparenta ser uma quebra na forma estética e narrativa de Michael Haneke. Na verdade, pode ser um tipo de continuidade inesperada numa trajetória marcada por trabalhos de crueza exemplar, em que a representação da violência e os limites humanos são testados a cada nova situação apresentada. O diretor se tornou efetivamente conhecido de boa parte do público no Brasil com a repercussão de A Professora de Piano (2001), no qual Isabelle Huppert encarnava uma mulher sexualmente reprimida no meio de relações transtornadas com a mãe opressora e um aluno por quem ela se sentia atraída. O tom e a visão de mundo do filme, próximos de um pesadelo filmado como realidade, tornou-se a referência de Haneke para entusiastas e detratores. Dali em diante, cada longa-metragem era aguardado como a nova pancada do cineasta.

E eles vieram aos montes: Tempos de Lobo (2003), Caché (2005), Violência Gratuita US (2007), A Fita Branca (2009). Todos confirmaram elementos comuns na filmografia de Haneke: a brutalidade filmada fora de quadro, o uso do som como elemento de perturbação, a inserção de imagens de vídeo como propulsores da narração, o profundo rigor nos enquadramentos e em longos planos, a personalidade gélida dos protagonistas, a visão amarga e política para o universo retratado. Um enorme culto se criou em torno de Haneke, especialmente com a descoberta de filmes dos anos 1990 fundamentais para que seu modelo de cinema fosse construído – casos da versão original de Violência Gratuita (1997), já há anos um cult de locadora, e pelo mosaico armado no inquietante 71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso (1994).

A exploração contínua e crescente de universos, ambientações e olhares através do filtro do cinema pode atingir ápices tamanhos que o desafio posterior de um artista é abandoná-los ou driblá-los. Michael Haneke deve ter se colocado nessa situação. Ninguém (nem realizador nem espectador) sai incólume de uma experiência como A Fita Branca, goste-se ou não do filme. O austríaco pareceu ter alcançado o máximo impacto do que vinha desenvolvendo sobre basicamente tudo que sempre o mobilizou. Como não esgotar a si mesmo? Do que mais falar se já refletiu o próprio nascedouro do mal e sua ascensão numa Europa abalada por guerras e ideologias?

A solução de Haneke foi voltar ao essencial. Amor não é necessariamente uma quebra dentro de suas obsessões artísticas, mas é certamente um “respiro”. Isso nem de longe significa que o diretor deixe de lado a crueza e o choque como catalisadores. Porém, o cineasta o faz com maior carga de ternura, de maneira pouco vista anteriormente no que conhecemos dele.

A afetuosidade já se inicia na escalação do elenco, todo formado por ícones do cinema francês. Jean-Louis Trintignant, 81, prêmio de melhor ator em Cannes por Z (1969), estava afastado das telas há 14 anos, em dedicação exclusiva ao teatro. Emmanuelle Riva, 85, foi eternizada por Alain Resnais em Hiroshima Mon Amour (1959). Para completar, surge discretamente em cena Isabelle Huppert, 59, imagem simbólica de uma geração posterior e aqui em terceira colaboração com Haneke.

Na coletiva de imprensa após a primeira sessão de Amor no Festival de Cannes, o diretor entoou: “Eu não quis falar sobre a sociedade em si”. E completou: “Não escrevo filmes para mostrar alguma coisa. Uma vez que você alcança uma certa idade, tem de lidar com o sofrimento de alguém que ama. Isso é inevitável, e na minha vida também”. A escolha por retratar um casal idoso trancado num apartamento foi, portanto, fruto de deliberação consciente e, pode-se dizer, necessária ao cineasta. Aos 70 anos, Haneke pode estar entrando naquela fase pela qual colegas como Clint Eastwood, Manoel de Oliveira e Woody Allen já avançam: a reflexão sobre a morte e a busca pelo entendimento do momento derradeiro do homem.

No caso de Haneke, é interessante que ele tenha passado 25 anos mostrando filmes em que a morte era a questão fundamental (sempre como consequência de sociedades doentes) e, em Amor, ele a aponte como a caminhada natural do ser humano. O filme reflete muito claramente esse olhar de aceitação e resignação sobre algo tão incontrolável quanto inevitável.

Trintignant e Riva formam o casal companheiro que, num certo dia, vê-se destroçado por uma doença que a acomete. A primeira manifestação da anomalia em Riva é filmada como um primor de contenção e tensão. A mulher simplesmente pára de se mover, de pensar, de falar; seu olhar se esvazia, a atenção desaparece, e nada do que o marido faz é capaz de devolvê-la à realidade. Algo está muito errado, nos avisa o filme. Estaremos sempre ao lado de Trintignant, acompanhando cada passo de sua adesão completa e irrestrita aos males da esposa. Seu corpo e o dela, ambos limitados pela idade, vão remodelar uma relação que ganhará outra maneira de existir – de fato, a única maneira possível. Como o cinema de Haneke, talvez?

Ela é um corpo defeituoso e paralisado; ele é o corpo ativo, resignadamente em busca de algum conforto para a companheira. A certa altura, ela exige dele a promessa de que jamais a internará num hospital. Dentro do apartamento, portanto, ambos tentarão seguir adiante, sem esperanças para além da inevitabilidade da partida. “Eu levanto, dou algo para ela comer e beber, dou banho, depois vamos dormir. E vai ser assim até não ser mais”, afirma o marido, em aceitação quase harmônica com a despedida da mulher.

Filmando em ambiente fechado, Michael Haneke se permite explorar, usando como limites do quadro a arquitetura de portas e paredes, as possibilidades de movimentação e o que também vem de fora do que está sendo mostrado. O protagonista, quando sozinho, caminha pelos cômodos e carrega consigo, na imagem, a presença da mulher. Sabemos sempre que ela está por ali, em algum lugar, incapacitada de agir, muitas vezes murmurando em desespero “dor, dor, dor”. Os encontros com um pombo, momentos simbólicos do filme, são a representação mais simples e certeira para um olhar muito duro que o austríaco imprime ao drama. Haneke pode estar reiniciando seu ciclo artístico, mas permanece o autor que todos conhecemos. Que o espectador, portanto, não espere facilidades.

* Originalmente publicado no jornal "Zero Hora" (RS) em junho de 2012

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Leonor Silveira


No fim de sua adolescência, a estudante portuguesa Leonor Silveira foi acompanhar uma amiga num teste de elenco para um filme. Chegando ao local, ela foi abordada por alguém que a perguntou se ela mesma, Leonor, aceitaria arriscar um papel em outro longa-metragem sendo feito. Chamava-se "Os Canibais", musical bastante heterodoxo dirigido por um tal Manoel de Oliveira. Leonor fez o teste (cantando apenas "parabéns pra você"), foi aprovada e participou do filme. Ela tinha 17 anos.

Exatamente hoje (27-10-2012), Leonor Silveira faz aniversário. Completa 42 anos de idade. Desses, ela passou 25 trabalhando em outros 18 filmes de Manoel de Oliveira desde 1988, quando estreou "Os Canibais". É absolutamente impossível pensar no cinema do centenário mestre português (ele faz 104 anos em novembro) sem vincular na mente o rosto, o corpo, o olhar e a expressividade de Leonor, elementos tão caros a alguns dos instantes mais sublimes já filmados pelo cineasta.

A atriz esteve na 36ª Mostra de Cinema de São Paulo ao longo desta semana, promovendo a exibição de "O Gebo e a Sombra", novo filme de Manoel no qual ela é uma das personagens - ao lado de nomes como Claudia Cardinale, Jeanne Moreau e Michael Lonsdale. Leonor voltou para Lisboa ontem, onde passaria o aniversário com o marido e os filhos. Leia entrevista.

Houve algum momento, lá no início da sua carreira, em que você percebeu que a parceria com Manoel de Oliveira seria uma relação artística tão duradoura e intensa?
O Manoel é tão grande, tão imenso, que você nunca pensa que as coisas vão perdurar. Todos os convites que se recebe para um trabalho com ele é uma honra, é mais um grau. Nunca previ que fôssemos chegar a tanto tempo e tantos filmes juntos. Até porque eu sempre só sabia que participaria de algum novo trabalho dele quase nas vésperas da rodagem (risos).

"Vale Abraão" (1993 - foto abaixo) deve ser o maior filme que vocês fizeram: reconstituição de época, quatro horas de duração, inspiração em Gustave Flaubert e sua presença em praticamente todas as cenas. A experiência te marcou de alguma forma?
Foram quatro meses para fazermos "Vale Abraão". Tudo muito intenso, eu encarnei uma protagonista difícil. Havia forte influência do cenário, dos espaços onde a gente atuava, tudo que estava ao redor influenciava nos sentimentos dos personagens. E tinha ainda o peso, a importância, do livro da Agustina Bessa-Luís (autora portuguesa adaptada várias vezes por Manoel de Oliveira), que era outro elemento importante na nossa construção.

Como é Manoel no set?
Em geral, atores que acabaram de chegar para estar num filme dele esperam ser dirigidos e respeitarem sua vontade. Mas Manoel considera que o ator sabe muito melhor o que deve ser feito, então não é ele que vai explicar o que vai se fazer. Não alterando texto nem movimentação do corpo na cena - enfim, toda a disciplina que ele exige -, você tem a liberdade e o respeito nos sentimentos. Manoel confia na capacidade instintiva do ser humano de se levar pelas emoções, e é isso que ele espera.

Com a disciplina exigida por ele, como você chega a essas emoções instintivas? Eu sou muito esponja, para além da parte técnica de estudar personagem e roteiro. Acho que absorvo tudo quanto é energia. O espaço, as cores, as palavras no texto, tudo ganha uma dimensão diferente a cada instante e da forma como surgem na rodagem. São meus instrumentos de trabalho. O frio de "O Gebo e a Sombra", por exemplo: não preciso tremer para sentir que estou completamente desprotegida naquele lugar. Toda a obediência com as palavras ajuda a sentir isso, e não só às palavras que você tem que dizer, mas também as que vêm dos outros atores. De certa forma, nunca há silêncio nos filmes de Manoel. O que pode parecer silencioso é, de fato, a espera pela palavra do outro.

Com uma ou duas exceções, você foi atriz apenas de Manoel de Oliveira em 25 anos de carreira.
Já tive outros convites, muitos interessantes, de cineastas que admiro muito. Mas entrar no universo do Manoel torna difícil ir além. Vira uma condição de vida, de alguma forma. E tenho outros afazeres além do ofício de ser atriz. Acho que vivo ainda um "working in progress". Amo cinema, mas virei atriz totalmente ao acaso. Antes de "Os Canibais", tinha experiência apenas numa montagem estudantil de uma peça de Ionesco (risos). Eu estudava no Liceu Francês, em Lisboa. Queria ser médica, era matriculada num curso de letras, gostava de cinema e virei atriz.

"O Gebo e a Sombra" é todo ambientado num único espaço, com planos longos que chegam a mais de 20 minutos e um cuidado extremo na movimentação e presença dos atores. Foi difícil elaborar o filme?
O processo de filmar em digital virou docinho pro Manoel (risos). Para se ter ideia, ele queria fazer o filme todo sem corte, num plano único. Não tem mais o tempo que era exigido pela película, o digital permite não ter limite temporal. Em "O Gebo e a Sombra", Manoel começava a filmar e não avisava quando devíamos parar. O assistente de direção precisava ir a ele e cochichar: "Precisamos cortar, Manoel". À medida que o tempo avança no filme, você (tanto o ator quanto o espectador) está vivendo tudo que se passa ali.

Se você destacasse um único filme dentre os 19 que já fez com Manoel de Oliveira, qual seria seu favorito?
Prefiro dizer qual me deu mais alegria de rodar. Gostei imensamente de fazer "Party" (1996), por uma sucessão de acontecimentos. Teve aquele lugar maravilhoso (o filme foi rodado num balneário), tinha o roteiro, as cores da ilha, a interação com os outros atores (Irene Papas, Michel Piccoli, Rogério Samora). Foi a minha melhor rodagem, a mais divertida.

De que tipo de cinema você gosta?
Adoro Walter Salles, aqui do Brasil. Todo cinema acaba por ter um impacto especial em cada momento do ciclo da nossa vida. De repente sentimos a força de nomes que nem sempre levamos em conta. Você pode amar Abbas Kiarostami e Nanni Moretti na mesma medida. E sou fã de tudo que já foi feito pelo Wong Kar-wai.

Você tem alguma referência na atuação?
Fico em casa: Luís Miguel Cintra (ator português de cinema e teatro, participou de vários trabalhos de Manoel de Oliveira). Sua relação com os mais jovens, a descoberta da profundidade de um roteiro aparentemente simples, todo o simbolismo que ele carrega, acho incrível.

Nos últimos cinco anos, você exerceu funções importantes no ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), órgão do governo de Portugal. Ser atriz e conhecer a produção por dentro ajudou na atividade?
A experiência me dá o conhecimento de uma arte que não pode ser compreendida apenas como processo administrativo. É preciso haver a aceitação de que o cinema é uma área de especificidade muito frágil em sua lógica de produção. Então foi uma mais-valia eu ter entrado na lógica administrativa tendo sido atriz em tantos filmes.

Como você tem sentido a crise financeira em Portugal? O cinema português (que, como o Brasil, depende bastante do governo para existir) está sofrendo muito? É um horror, uma catástrofe absoluta. Vivemos numa queda de receitas de todo tipo, o governo cortou várias linhas de investimento, nem houve edital para produção em 2012. É o deserto absoluto. As consequências virão em 2013 e 2014, já que não se produziu cinema em Portugal este ano. Algumas produtoras já estão fechando, há muita gente sem ter o que fazer. É aterrador. Precisa-se se entender de uma vez que um país sem cultura é um país sem sociedade construída. Então vira obrigatoriedade cívica e humana o investimento na cultura.

* Originalmente publicado em "O Tempo" em 27.10.2012
* Foto de Leonor Silveira por Aline Arruda/Agência Foto