No perturbador Killer Joe,
William Friedkin evidencia seu estilo direto e despudorado ao narrar a
trajetória de personagens sem possibilidade de redenção
por Marcelo Miranda
(publicado na revista Teorema, edição 22, primeiro semestre de 2013)
William Friedkin no set |
Aos moldes de Howard Hawks,
Samuel Fuller, John Carpenter, Jean-Luc Godard ou Maurice Pialat, o
norte-americano William Friedkin é um cineasta da evidência. Seus filmes não
significam, simbolizam, representam ou transmitem: eles simplesmente são.
Friedkin filma como mostra e mostra como filma; aquilo que aparece na tela é a
evidência objetiva e direta de como objetos ou corpos vistos pelos nossos olhos
em cena existem no mundo fora da tela. “A realidade é despojada, abstraída e,
finalmente, reintegrada ao seu estado bruto”1.
Friedkin é, a seguirmos a essência do pensamento de Rogério Sganzerla, um
cineasta do corpo: “Os cineastas do corpo captam os exteriores dos seres e
coisas, valorizam as superfícies. Aí está um dos elementos da sua modernidade”2. A relação com o corpo, em Friedkin, é
próxima do literal e, na maior parte das vezes, dolorosa: seus personagens são
fisicamente maculados, espancados, profanados, queimados, até verdadeiramente
destruídos. Em seu cinema, podemos sentir que a perceptível fragilidade do
corpo humano – a fineza da pele, os delírios da ferida profunda ou a dor de um
pequeno corte – está integralmente lançada na imagem e no som, sendo tratada,
de fato, como ela é e pode ser sentida por aquele que a testemunha durante a
projeção do filme.
Em Friedkin, a deterioração
física muitas vezes surge acompanhada pela deterioração mental ou espiritual –
e vice-versa. Na medida em que perdem espaço para o demônio, corpo e mente da
garotinha Regan, em O Exorcista (The Exorcist, 1973), vão ficando
mais horrendos, purulentos, desprezíveis e destrutíveis. A reação imediata de
quem esteja ao redor é o nojo, a negação daquela imagem que parece não ter mais
reversão. A Regan doce e inocente dá lugar ao diabo encarnado e provocativo, de
voz gutural e gestos obscenos. Trajetória similar, porém em outros tipos de
ambientação e interação, vão ter o policial infiltrado nas boates
sadomasoquistas em Parceiros da Noite (Cruising, 1980) e o colega
do protagonista de Viver e Morrer em LA (To Live and Die in LA,
1985): ambos serão arrastados pelas circunstâncias e terão seus corpos e mentes
caminhando da tradição e obediência exigidos por seus deveres rumo ao
subversivo e irracional necessários a uma nova concepção moral de
sobrevivência.
Possuídos (Bug,
2006) também guarda nas percepções do corpo aquilo que o irá destruir. Agnes e
Peter, ao se trancarem num quarto de motel na beira da estrada, formam o casal
singular que se deteriora a cada descontrole relativo a insetos e conspirações
do governo. Da impossibilidade de vencer as neuroses, apenas lhes resta a
autoimolação como gesto final de amor e cumplicidade. Jackie, único
sobrevivente da viagem suicida de O Comboio do Medo (Sorcerer,
1977) a bordo de um caminhão repleto de nitroglicerina, tem seus delírios nos
momentos finais da jornada, obcecado que está em cumprir a tarefa e
eventualmente ir embora daquele inferno que é o local onde se exilou para não
morrer nas mãos de bandidos. Porém, Jackie sabe que a fuga é impossível; na
evidenciação de limites físicos e espirituais, ele se dará o direito de
convidar uma moça para a última dança num bar imundo. “O medo irracional e a
paranoia são velhos amigos meus”, declara Friedkin em sua recém-publicada
autobiografia3.
Killer Joe – Matador de
Aluguel (Killer Joe, 2011) está menos atento a paranoias do que ao
medo irracional. Na essência, o que move o personagem Chris (Emile Hirsch) é o
bom e velho medo de morrer. Devedor de dinheiro a selvagens traficantes numa
pequena comunidade do Texas, o rapaz encontra no assassinato encomendado da mãe
a saída para seus dilemas. Terá o apoio do pai, da irmã e da madrasta. “Por
acaso ela está fazendo algo de bom?”, questiona Chris, ao justificar o porquê
de não sentir remorso por contratar um mercenário para eliminar a mãe, nunca
efetivamente vista no filme (exceto quando apenas um corpo morto) e descrita
pelos demais personagens como alcoólatra, drogada, amoral, encrenqueira e, nas
memórias da jovem Dottie (Juno Temple), a semi-assassina da filha.
O medo, portanto, move o xadrez
dos personagens centrais de Killer Joe. Medos distintos – não só da
morte, mas da pobreza, do desemprego, da humilhação, do sexo (apesar da
aparente ojeriza de Chris ao ver a madrasta andar nua pela casa, ele parece, na
verdade, muito mais amedrontado com a liberdade sexual que ela demonstra
possuir). Adaptado da primeira peça teatral de Tracy Letts, escrita com “um
arraigado sentimento de raiva” (segundo Friedkin) em 1991, quando o dramaturgo
tinha 25 anos, o enredo permite apenas a Joe Cooper, o policial corrupto que
faz serviços de assassinato sob encomenda, não sentir qualquer tipo de medo.
Joe (Matthew McConaughey) é uma
aparição na tela, uma “força da natureza” (como já definiu Friedkin), a imagem
mítica da perversão e da maldade travestida com roupa preta, chapéu, cinto e
óculos escuros, somados à pose de típico xerife de faroeste cuja propensão à
moral e aos bons costumes segue regras condizentes apenas a si mesmo. Joe
Cooper é uma espécie de anjo da morte, a materialização sobrenatural e
moralizante que perpassa o caminho de todos os demais personagens. Durante o
filme, ele é o único em cena a não ser mostrado em conflitos pessoais ou na
resolução de alguma pendenga efetivamente sua. Mesmo a propalada faceta de
policial apenas nos é dada pela narração de quem fala sobre Joe (num único
momento, ele é rapidamente visto saindo da delegacia de uniforme, antes de logo
se “transformar” na figura afetada do matador).
Sob aspectos tortos, Joe é também
o príncipe (des)encantado de Dottie. Num mundo sujo, grotesco e distante de
sentimentos positivos, Joe, esse ser que vem de fora para perturbar e dar
lições com seu modo brutal e opressivo, capta a atenção e o afeto da única
personagem em cena ainda não corrompida pelo veneno de rato a perpassar todos
os cantos. Existe certa lógica na intimidade distorcida criada entre Dottie e
Joe: submetida aos humores de um pai relapso e grosseiro, de uma madrasta
mentirosa e agressiva e de um irmão que, apesar de amá-la e tentar poupá-la,
aceita negociar sua virgindade como garantia de pagamento ao potencial
assassino da mãe – para Dottie, enfim, fabular e jantar com uma figura como
Joe, de discurso sedutor e manipulador, dono de “olhos que ofendem”, parece ser
quase o caminho natural (senão o único) que lhe resta dentro da lógica cruel
exposta pelo filme.
Sem subterfúgios, Friedkin coloca
o espectador repentinamente um passo adiante de Joe na cena em que ele assedia Dottie. Quando ele pede que ela troque o vestido ali mesmo na sala, o
personagem vira-se de costas, mas a câmera se sustenta no olhar frontal. O
enquadramento se posiciona atrás de Joe, permitindo que tenhamos o mesmo ângulo
de seu olhar anterior para Dottie, porém nos inserindo na delicada e incômoda
situação de sermos apenas nós a vermos a nudez da garota. Quando Joe enfim se
vira, a câmera continua em Dottie, intercalando a imagem dela com
planos-detalhe do matador em seu strip-tease particular (no caso,
retirando de si os objetos que o identificam como sendo um policial).
Eis é a grande questão
controversa de Killer Joe: o total e irrestrita ausência de redenção, de
respiro, rachaduras ou buracos na implacabilidade desenvolvida em seus 100
minutos de duração. A evidência característica da obra de Friedkin está, aqui,
em potência máxima. O recorte definido pelo texto de Tracy Letts e seguido à
risca pelo cineasta não tem qualquer puder de soar desagradável e reúne, desde
os primeiros segundos, sem ambiguidades, um festival de crueldade, desamor,
sujeira, traição, violência e opressão (física e psicológica). Podemos
novamente recorrer a Sganzerla ao falar dos filmes desprovidos de elementos
para além da produção de presença: “Os conflitos provêm do instinto animal dos
personagens, da condição animal do homem. A psicologia é relegada a segundo
plano, tornando-se impotente para 'explicar' este instinto”4.
Ou então como já escreveu Godard: “Os seres e os objetos já não são situados
psicologicamente, nem moralmente e ainda menos sociologicamente”5. Por essa lógica, Killer Joe não
traz (nem procura) responder às ações dos personagens; o filme pretende
simplesmente nos convidar a um passeio pelo inferno e exibir tais ações através
do que Sganzerla chamaria de “câmera cínica”, sem manejos cerebralistas,
formalistas ou intelectualizantes – em suma, sendo moderno.
Geograficamente, o inferno de Killer
Joe se situa no interior do Texas, apresentado no filme como ambiente
arcaico, retrógrado e primitivo, morada de “caipiras com muito espaço em
volta”, nas palavras de Chris. Forçando analogia não tão destituída de sentido,
este parece o mesmo Texas apodrecido mostrado por Tobe Hooper no clássico O
Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chainsaw Massacre, 1974),
porém em chave dramática, e não horrorífica. Há, inclusive, uma referência
inesperada numa das falas de Joe: ao espancar Sharla (Gina Gershon), a
madrasta, o mercenário esbraveja: “Vou cortar seu rosto e usar em cima do meu!”
– exatamente o que o notório assassino do filme de Hooper fazia com as vítimas.
No meio de todo o caos – tamanho
caos que permite ao filme entrar na chave do humor negro com naturalidade
desconcertante –, o afeto surge (logicamente envergado) no cuidado de Chris com
Dottie (não sem antes sabermos que o rapaz tem sonhos nos quais vê a irmã se
despindo diante dele) e no sentimento crescente que parece verdadeiramente
surgir de Joe para com a mesma Dottie. Os dois afetos mostrados no filme (de
Chris e de Joe) tendem a ser socialmente considerados doentios e questionáveis;
ao surgirem de maneira tão objetiva dentro da narração corpo a corpo do cinema
de Friedkin (reforçada por elipses temporais que nos suprimem alguns detalhes
do desenvolvimento dos personagens), provocam perturbação e inquietude na
experiência de se assistir ao filme.
Killer Joe se sustenta na
exposição de uma trajetória fabular que, como qualquer autêntico conto de
fadas, contém uma premissa de risco, um entrecho de violência e um desenlace
moralizante, aqui acrescido de elementos de repulsa. Joe Cooper é o lobo mau da
história, Dottie é o ser inocente e puro a povoar suas fantasias, Sharla é a
madrasta má que será a grande artífice das vilanias do enredo. Na lógica de
Joe, há regras de comportamento que precisam ser apreendidas, e o pensamento a
reger tais regras é o daquele Texas primitivo já aqui comentado. No primeiro
encontro com Dottie, o mercenário narra a história de um homem que, para dar uma
lição à namorada que o traíra, ateou fogo nos próprios órgãos genitais. Ao
contar, ele se mostra transtornado pelo ato, mas reconhece, pelo discurso, que
a lição era necessária. “Aplicar uma lição” será exatamente o que Joe fará com
toda a família de Chris (exceto Dottie) na espetaculosa e polêmica sequência
final.
Grande exemplo do controle de
Friedkin sobre a atenção do espectador, o desfecho de Killer Joe dura 25
minutos, a partir do momento em que Ansel, o pai (Thomas Haden Church), e
Sharla, a madrasta, chegam em casa depois do funeral de Adele, a mulher
assassinada sob encomenda. Friedkin, como Roman Polanski, sempre foi um mestre
em controlar a ação dentro de espaços delimitados, desde os primórdios com Os
Rapazes da Banda (The Boys in the Band, 1970), passando pelos
momentos mais inspirados de O Exorcista, Possuídos e todo o seu 12
Homens e uma Sentença (12 Angry Men, 1997). Como artífice de um
teatro da crueldade, Joe surge na cena final de Killer Joe e começa a
preparar o cenário: ele retira objetos de lugar, coloca uma coxa de frango
frito do K-Fry-C na mesa sob um guardanapo, atualiza-se sobre a apólice de
seguros de Adele, presta atenção a cada canto do trailer onde a família mora,
caminha, ajeita o ambiente – numa cuidadosa e intensa preparação para seu
perturbador espetáculo de sadismo.
O ápice será a o espancamento
seguido da felação de Sharla com a coxa de frango, enquanto Joe entoa o
discurso de que fora “injustiçado” em relação à apólice de seguro e ao
pagamento que lhe deviam pela morte encomendada de Adele. A “grande lição” de
Joe é filmada por Friedkin frontalmente, com planos baixos mostrando a mulher,
contra-plongées do rosto do criminoso enquanto fala e o olhar passivo de
Ansel: eis um trio de imagens que permite ao público testemunhar o ato grotesco
do personagem, sem qualquer tipo de filtro ou desvio. A ação de Friedkin
enquanto realizador é tão sádica quanto a de Joe enquanto personagem, ao mesmo
tempo em que mantém a lógica da exposição e evidência que perpassa todo o filme
– e, no choque entre o que vemos dentro da diegese e como vemos
essa diegese, há um curto-circuito na nossa sensibilidade, exatamente por
manter a coerência estética e narrativa. A “lição” dada por Joe não é bonita de
se ver e nem é filmada como algo bonito, mas o que temos ali é o personagem Joe
Cooper. Dentro de seu raciocínio opressivo e reacionário, aquele show de
horrores lhe faz todo o sentido, tanto quanto espancar Chris (com a ajuda de
Ansel e Sharla) para poder levar Dottie embora.
Por maior que seja o tom
tragicômico em cada grande ato do enredo de Killer Joe – especialmente
no desenlace, incluindo a aparente e patética epifania de Joe ao saber da
gravidez de Dottie em meio à carnificina –, a tragicomédia exposta por Friedkin
pode nos causar riso muito mais por seu sentido de “tragédia” do que de
“comédia”. Eis, aqui, outro elemento de perturbação trabalhado no limite por
Friedkin. A relação entre riso e choque em Killer Joe de certo modo o
aproxima do cinema de Joel e Ethan Coen, não apenas pelo uso repentino e
gráfico de violência em alguns trechos, mas também pelos rumos rocambolescos da
trama cujo estopim é a ambição por dinheiro. Trata-se de um Fargo (1996)
ou um Gosto de Sangue (Blood Simple, 1984) mais
malcomportado, porém não menos trágico e irônico – e sem o teor um tanto quanto
manipulativo dos irmãos cineastas. Friedkin disse recentemente que os Coen são
os realizadores americanos que mais lhe interessam hoje em dia, o que revela
poder ter havido algum tipo de inspiração deles no desenvolvimento de Killer
Joe – permitindo, nisso, um refluxo de influências, visto que os Coen, mais
jovens, devem muito de suas estripulias à liberdade proporcionada pelo cinema
da geração de Friedkin.
Próximos dos 80 anos de idade, William Friedkin se mantém um
marginal da indústria, fazendo os filmes que bem entende da maneira que lhe
convém. Justamente por isso, permanece um diferencial dentro da própria
indústria que o abraçou nos anos 70 – após os Oscars por Operação França
(The French Connection, 1971) e o sucesso de O Exorcista – e
depois o expeliu, quando ele não se enquadrou, por motivos artísticos e
pessoais, ao modelo pasteurizado de Hollywood. Ninguém melhor que o próprio
Friedkin para encerrar este texto:
“Eu nunca joguei pelas regras, muitas vezes para meu
próprio prejuízo. (…) Alguns dos meus filmes são muito conhecidos; outros foram
esquecidos, perdidos na montanha-russa que é Hollywood, onde alturas
vertiginosas são seguidas por profundezas angustiantes. (…) Você pode ter
prateleiras de troféus e citações, aparecer nas melhores listas dos críticos,
ser homenageado em festivais por todo o mundo, mas você ainda vai precisar se
encontrar com um jovem executivo de estúdio que nunca produziu, escreveu ou
dirigiu e vender-se a si mesmo como se fosse sua primeira vez.” 6
1 Rogério Sganzerla no artigo “A 'câmera'
cínica”, publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 11 de
julho de 1964 e reproduzido nos livros Por um Cinema sem Limite
(Azougue, 2001) e Textos Críticos 1 (Ed. UFSC, 2010).
2 Rogério Sganzerla no artigo “Cineastas do
corpo”, publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 26 de
junho de 1965 e reproduzido nos livros citados na nota anterior.
4 Idem nota 1.
5 Citado por Rogério Sganzerla em “A 'câmera'
cínica”.
6 Idem nota 3.
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