terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Michael Haneke e "Amor"


Nascido em Munique de família austríaca, Michael Haneke é um homem que ri. Pode soar estranho constatar isso de um artista que já nos ofereceu trabalhos tão duros no cinema, muitas vezes experiências realmente perturbadoras de se acompanhar. Mas Haneke tem sorrido cada vez mais desde quando A Fita Branca (2009) se tornou seu projeto mais premiado em toda a carreira – incluindo a Palma de Ouro no Festival de Cannes. No último domingo (em maio de 2012), novamente no evento francês, Haneke roía as unhas enquanto, sentado no Grand Theatre Lumiére, acompanhava a premiação da 65ª edição do festival. Quando Amor foi anunciado pelo italiano Nanni Moretti, presidente do júri, como o ganhador da Palma deste ano, o austríaco renovou o sorriso e não o largou mais.

Amor aparenta ser uma quebra na forma estética e narrativa de Michael Haneke. Na verdade, pode ser um tipo de continuidade inesperada numa trajetória marcada por trabalhos de crueza exemplar, em que a representação da violência e os limites humanos são testados a cada nova situação apresentada. O diretor se tornou efetivamente conhecido de boa parte do público no Brasil com a repercussão de A Professora de Piano (2001), no qual Isabelle Huppert encarnava uma mulher sexualmente reprimida no meio de relações transtornadas com a mãe opressora e um aluno por quem ela se sentia atraída. O tom e a visão de mundo do filme, próximos de um pesadelo filmado como realidade, tornou-se a referência de Haneke para entusiastas e detratores. Dali em diante, cada longa-metragem era aguardado como a nova pancada do cineasta.

E eles vieram aos montes: Tempos de Lobo (2003), Caché (2005), Violência Gratuita US (2007), A Fita Branca (2009). Todos confirmaram elementos comuns na filmografia de Haneke: a brutalidade filmada fora de quadro, o uso do som como elemento de perturbação, a inserção de imagens de vídeo como propulsores da narração, o profundo rigor nos enquadramentos e em longos planos, a personalidade gélida dos protagonistas, a visão amarga e política para o universo retratado. Um enorme culto se criou em torno de Haneke, especialmente com a descoberta de filmes dos anos 1990 fundamentais para que seu modelo de cinema fosse construído – casos da versão original de Violência Gratuita (1997), já há anos um cult de locadora, e pelo mosaico armado no inquietante 71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso (1994).

A exploração contínua e crescente de universos, ambientações e olhares através do filtro do cinema pode atingir ápices tamanhos que o desafio posterior de um artista é abandoná-los ou driblá-los. Michael Haneke deve ter se colocado nessa situação. Ninguém (nem realizador nem espectador) sai incólume de uma experiência como A Fita Branca, goste-se ou não do filme. O austríaco pareceu ter alcançado o máximo impacto do que vinha desenvolvendo sobre basicamente tudo que sempre o mobilizou. Como não esgotar a si mesmo? Do que mais falar se já refletiu o próprio nascedouro do mal e sua ascensão numa Europa abalada por guerras e ideologias?

A solução de Haneke foi voltar ao essencial. Amor não é necessariamente uma quebra dentro de suas obsessões artísticas, mas é certamente um “respiro”. Isso nem de longe significa que o diretor deixe de lado a crueza e o choque como catalisadores. Porém, o cineasta o faz com maior carga de ternura, de maneira pouco vista anteriormente no que conhecemos dele.

A afetuosidade já se inicia na escalação do elenco, todo formado por ícones do cinema francês. Jean-Louis Trintignant, 81, prêmio de melhor ator em Cannes por Z (1969), estava afastado das telas há 14 anos, em dedicação exclusiva ao teatro. Emmanuelle Riva, 85, foi eternizada por Alain Resnais em Hiroshima Mon Amour (1959). Para completar, surge discretamente em cena Isabelle Huppert, 59, imagem simbólica de uma geração posterior e aqui em terceira colaboração com Haneke.

Na coletiva de imprensa após a primeira sessão de Amor no Festival de Cannes, o diretor entoou: “Eu não quis falar sobre a sociedade em si”. E completou: “Não escrevo filmes para mostrar alguma coisa. Uma vez que você alcança uma certa idade, tem de lidar com o sofrimento de alguém que ama. Isso é inevitável, e na minha vida também”. A escolha por retratar um casal idoso trancado num apartamento foi, portanto, fruto de deliberação consciente e, pode-se dizer, necessária ao cineasta. Aos 70 anos, Haneke pode estar entrando naquela fase pela qual colegas como Clint Eastwood, Manoel de Oliveira e Woody Allen já avançam: a reflexão sobre a morte e a busca pelo entendimento do momento derradeiro do homem.

No caso de Haneke, é interessante que ele tenha passado 25 anos mostrando filmes em que a morte era a questão fundamental (sempre como consequência de sociedades doentes) e, em Amor, ele a aponte como a caminhada natural do ser humano. O filme reflete muito claramente esse olhar de aceitação e resignação sobre algo tão incontrolável quanto inevitável.

Trintignant e Riva formam o casal companheiro que, num certo dia, vê-se destroçado por uma doença que a acomete. A primeira manifestação da anomalia em Riva é filmada como um primor de contenção e tensão. A mulher simplesmente pára de se mover, de pensar, de falar; seu olhar se esvazia, a atenção desaparece, e nada do que o marido faz é capaz de devolvê-la à realidade. Algo está muito errado, nos avisa o filme. Estaremos sempre ao lado de Trintignant, acompanhando cada passo de sua adesão completa e irrestrita aos males da esposa. Seu corpo e o dela, ambos limitados pela idade, vão remodelar uma relação que ganhará outra maneira de existir – de fato, a única maneira possível. Como o cinema de Haneke, talvez?

Ela é um corpo defeituoso e paralisado; ele é o corpo ativo, resignadamente em busca de algum conforto para a companheira. A certa altura, ela exige dele a promessa de que jamais a internará num hospital. Dentro do apartamento, portanto, ambos tentarão seguir adiante, sem esperanças para além da inevitabilidade da partida. “Eu levanto, dou algo para ela comer e beber, dou banho, depois vamos dormir. E vai ser assim até não ser mais”, afirma o marido, em aceitação quase harmônica com a despedida da mulher.

Filmando em ambiente fechado, Michael Haneke se permite explorar, usando como limites do quadro a arquitetura de portas e paredes, as possibilidades de movimentação e o que também vem de fora do que está sendo mostrado. O protagonista, quando sozinho, caminha pelos cômodos e carrega consigo, na imagem, a presença da mulher. Sabemos sempre que ela está por ali, em algum lugar, incapacitada de agir, muitas vezes murmurando em desespero “dor, dor, dor”. Os encontros com um pombo, momentos simbólicos do filme, são a representação mais simples e certeira para um olhar muito duro que o austríaco imprime ao drama. Haneke pode estar reiniciando seu ciclo artístico, mas permanece o autor que todos conhecemos. Que o espectador, portanto, não espere facilidades.

* Originalmente publicado no jornal "Zero Hora" (RS) em junho de 2012

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