sexta-feira, 2 de março de 2012

Crítica de "Drive", de Nicolas Refn

Marcelo Miranda

A cada década, o cinema dos EUA nos oferece alguns tipos renovadores de um gênero. No caso dos filmes de ação e policial, há "Operação França" e "Viver e Morrer em Los Angeles" nos 1970, "Duro de Matar" nos 80, "Pulp Fiction", "Fogo Contra Fogo" e "Os Bons Companheiros" nos 90, "Os Donos da Noite" nos 2000. Com apenas dois anos da nova década em andamento, "Drive" já pode perfeitamente figurar na listagem desses renovadores.

Renovação talvez nem seja a palavra exata. O que o dinamarquês Nicolas Winding Refn faz é reconfigurar elementos e estruturas fartamente reconhecíveis pelos espectadores e lhes dar uma roupagem que, antes de tentar aparentar novidade ou inovação, transmite a sensação de um novo vigor e um outro tipo de impacto.

"Drive" será imediatamente encaixado na prateleira dos filmes de ação, o que é tão verdadeiro quanto falacioso. O personagem central é devedor dos tipos caladões e ágeis criados por Clint Eastwood, Charles Bronson e Steve McQueen, mas é um ser tipicamente do século XXI, transitando por ruas e prédios hiperiluminados em Los Angeles. A trama sobre assaltos, golpes e atos de vingança e violência emula os filmes mais banais da década de 1980, mas faz de um simples ponto de partida de roteiro o trampolim para uma narrativa etérea, rarefeita, movida por sentimentos genuínos de afeto e cuidado e carregada de uma aura de sonho que quase te faz esquecer do que, afinal, é a história.

O detalhe de o protagonista interpretado por Ryan Gosling trabalhar como dublê de filmes de ação insere um elemento discretamente revelador em "Drive". Ao mesmo tempo em que há um realismo muito arraigado no desenvolvimento da trama, a todo instante há a sabotagem dessa própria impressão de verdade - seja na suspensão do tempo e espaço vista numa cena de elevador (que mescla lirismo e brutalidade numa medida magnífica), seja no colorido artificial de alguns ambientes, no uso dos corpos como moldura de enquadramentos e num jeito algo caricatural (mas jamais banal ou indiferente) de representar a violência.

Nisso o canadense Ryan Gosling é fundamental para a fruição. Um dos atores mais expressivos de atual geração - recentemente visto em "Tudo pelo Poder", de George Clooney -, ele entrega a encarnação gélida de um anti-herói cuja segurança no trato com as agruras urbanas é abalada pela simples visão de uma garota encantadora (vivida por Carey Mulligan). Gosling faz de seu motorista uma criação arquetípica da frieza e indiferença necessárias ao efeito buscado por Refn.

É um filme, afinal, que existe apenas no e para o cinema. O livro de James Sallis está por aí, e é bom (acaba de ser lançado no Brasil pela editora Leya), mas funciona só de camada superficial para "Drive" existir. O que está nas telas não permite muitas palavras. São as sensações, os choques e o encantamento que importam.

*Publicado em "O Tempo" no dia 2.3.2012

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