segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A violência filmada

por Marcelo Miranda

Na cena mais perturbadora de "Os Homens que não Amavam as Mulheres", em cartaz nos cinemas, a personagem Lisbeth é barbaramente estuprada por seu tutor. Em entrevista, o diretor do longa, David Fincher, afirmou: "Num filme, a violência deve ofender, enojar e dar enjoo. Quando você mostra um estupro num filme, as pessoas têm de ficar mal. Porque é horrível".

A representação de atos violentos na esfera da ficção é um assunto sempre em voga a cada novo filme que apresenta algum tipo de atrocidade e gera repercussão com isso. No ano passado, em meio a enorme controvérsia, a produção sérvia "A Serbian Film" foi proibida de circular em cinemas brasileiros devido ao teor de algumas cenas criadas por Srdjan Spasojevic.
Trabalhos como os de Fincher e Spasojevic, ou outros como "Irreversível" (2003), com o estupro da personagem de Monica Bellucci por 11 minutos sem cortes, levantam questões sobre como, afinal, a violência é representada.

"Não é função da arte se impor limites. A arte, na verdade, é o espaço por excelência para se explorar limites", diz o crítico e roteirista Fernando Toste, programador do RioFan, festival de filmes de horror realizado todo ano no Rio de Janeiro. "Tudo sempre depende da construção do universo ficcional e do contexto onde a violência está sendo mostrada. O gênero do terror costuma ser a maior vítima das polêmicas, mas é justamente onde a perturbação da violência pode e deve existir".

O cineasta Kleber Mendonça Filho tem visão similar. Para ele, "atos violentos só devem ser tolerados dentro do universo da ficção". "Um aspecto da violência (encenada) é ela ser extremamente fotogênica", diz Kleber. "Quando você filma esse tipo de coisa no cinema, está filmando uma cena de ação e precisa pensar em decupagem, em ritmo, em corte".

Ele exemplifica a fotogenia da violência com boa parte dos filmes de Brian De Palma ou, mais especificamente, a cena em que Viggo Mortensen mata dois assaltantes num café em "Marcas da Violência" (2005), de David Cronenberg. "Raramente no cinema dois vilões mereceram tanto morrer como nessa cena, e só num filme pode existir uma coisa daquelas".

Para Carlos Reichenbach, cineasta que organiza em São Paulo uma sessão mensal com filmes extremos de alto teor de cenas fortes, "alguns títulos ultraviolentos exacerbam na representação da barbárie, mas não a fetichizam".

Ele vê com maus olhos, porém, trabalhos que considera "nefastos" pela maneira de manipular o espectador e seus "limites de tolerância". Cita especificamente "A Serbian Film" e o austríaco "Violência Gratuita" (1997) como exemplares que ele considera imorais. "Na cena (de ‘Violência Gratuita’) em que os protagonistas matam um menino e piscam para a câmera, saí no meio da sessão", diz Reichenbach.

A questão a ele, porém, é de cunho pessoal. "Por ser essencialmente contra qualquer tipo de censura, eu não enxergo limites na representação de nada, nem da violência e muito menos do sexo. Cada realizador deve responder por aquilo que escolheu mostrar e, sobretudo, como foi mostrado".

A pesquisadora Laura Cánepa, que estuda filmes de terror brasileiros, acredita que o único limite é mesmo a realidade. "Se alguém estiver sofrendo violência de verdade durante as filmagens, não se pode aceitar", aponta. "Já as questões ideológicas dependem do lugar, da época, das pessoas envolvidas. Acho dificílimo responder a isso (sobre limites da ficção) com algum grau de certeza. Sempre vão escapar exceções, particularidades e complicações".

Cánepa lembra que a recepção de quem assiste sempre dependerá do contexto. "O incômodo parece ser mais pelo fato de determinados filmes tentarem relativizar alguns aspectos morais da violência do que por serem violentos. Pode reparar que, num filme de guerra, podemos ver cenas até mais fortes sem nos incomodar tanto". Fernando Toste concorda: "Se eu faço uma cena violenta qualquer, os valores que ela carrega mudam de acordo com onde e como ela será exibida".

Confira aqui dez filmes muito violentos.

Paradigmas
Ao longo dos anos, o cinema já apresentou todo tipo de ato violento, seja em filmes que se tornaram marcos reconhecidos facilmente (o inglês "Laranja Mecânica", de 1971, talvez o maior deles), seja por trabalhos mais segmentados e cultuados em parcela específica de público (o japonês "Ichi, o Assassino", de 2001, realmente uma pérola).

O que torna um filme lembrado pela perturbação que ele provoca com a representação da violência, na opinião do cineasta Kleber Mendonça Filho, é a ultrapassagem de limites autoimpostos pelo próprio cinema.

"Existem determinadas regras que não foram escritas, mas que todo mundo obedece. Quando alguém quebra essas regras, chama bastante atenção", diz ele. "Veja o caso de ‘Irreversível’, na cena em que um cara esmigalha a cabeça do outro com um extintor. Ninguém nunca tinha visto aquilo daquele jeito. Normalmente você veria com corte, contraplano, ângulos... Ali no filme, é plano-sequência de frente".

Kleber lembra casos como os de "Laranja Mecânica" (com um estupro ao som de "Singin’ in the Rain"), o horror de "O Massacre da Serra Elétrica", de 1974 (para ele, ainda um filme muito incômodo) e a virulência de "Robocop" (1987), em que o holandês Paul Verhoeven critica e ironiza abertamente o uso da violência pela própria indústria de Hollywood. "O cinema é visceral: se a cena é bem-feita, você sente a energia na sala, as pessoas reagem, e isso é muito forte", complementa.

A representação do estupro (masculino ou feminino) e ações brutais contra crianças ainda permanecem como os maiores tabus de filmes com cenas de violência. Em relação ao abuso sexual, a figura feminina é mais vitimizada, com algumas sequências ainda marcantes (vide "Sob o Domínio do Medo", de Sam Peckinpah, lançado em 1971, "A Vingança de Jennifer", de 1978, e o sempre citado "Irreversível").

Homens também foram alvos de atos sexuais bárbaros, alguns mostrados em "Amargo Pesadelo" (1972), em que um caipira violenta um dos protagonistas (e o faz imitar um porco), e em "Pulp Fiction" (1994), de Quentin Tarantino.

Para a pesquisadora Laura Cánepa, a evolução da encenação de brutalidades na ficção se desenvolveu com o próprio cinema. "A passagem do preto e branco para a cor trouxe fortemente a questão do sangue nos filmes de horror, que inicialmente parecia bem mais chocante do que é hoje", relembra ela. "Há também quem diga que filmes como ‘A Paixão de Cristo’, do Mel Gibson, e séries como ‘CSI’ aumentaram a aceitação do público em geral para cenas mais fortes, pois acostumaram o olhar a imagens chocantes que antes só apareciam em filmes voltados a um nicho específico".

Num artigo de 2003 para a revista "Interseções", a professora e ensaísta Ivana Bentes escreveu: "A violência já foi pensada por teóricos e cineastas como uma experiência fundamental do cinema, intimamente ligada à própria estrutura do fluxo audiovisual".

Ela aponta a cena do olho cortado com uma navalha no curta "Um Cão Andaluz" (1929), de Luis Buñuel, como o primeiro grande momento de violência no cinema, ainda que profundamente metafórico e simbólico.

Foi a partir dos anos 1960, para a ensaísta, que se percebe uma preocupação em pensar a violência nas esferas mais realistas da representação. "Há a profunda compreensão da violência como dimensão do sagrado, como dimensão da cultura e ao mesmo tempo como algo da ordem do intolerável, quando essa violência está ligada a uma injustiça ou estado de desigualdade".
Na mesma época, iniciou-se ainda o olhar alegórico para o tema, muito utilizado por Jean-Luc Godard e que nos chega hoje via Quentin Tarantino, Takashi Miike e Johnnie To, entre outros.

Brasil
No Brasil, a representação da violência num sentido mais gráfico é inaugurada em 1964, com José Mojica Marins e seu "À Meia-Noite Levarei Sua Alma". "Aqui existe a particularidade de que o primeiro diretor a fazer filmes assumidamente de horror, o Mojica, foi um dos pioneiros mundiais do terror explícito, e dali em diante houve uma tradição bem violenta", afirma Laura Cánepa, pesquisadora do assunto.

A professora Ivana Bentes, da UFRJ, complementa em artigo que, também a partir dos anos 1960, a violência alegórica foi incorporada ao Cinema Marginal, especialmente nos trabalhos de Rogério Sganzerla, com "O Bandido da Luz Vermelha" (1968), e Julio Bressane, em "Matou a Família e Foi ao Cinema" (1969).

Tabus
O crítico e roteirista Fernando Toste comenta alguns aspectos delicados do tratamento de determinados atos violentos pelo cinema.

Estupro. "Em `A Vingança de Jennifer´ (1978), há uma cena profundamente perturbadora que, dentro do universo apresentado pelo filme, faz todo o sentido. Na refilmagem de 2011, `Doce Vingança´, existe uma celebração das ações dentro do filme, e eu me senti muito ofendido".

Crianças. "É uma coisa que sempre foi uma questão delicada, e o próprio cinema já problematizou isso dentro dos filmes, como o George Romero em `O Despertar dos Mortos´ em 1978".

Realidade. "Acho que não se deve cometer nenhum tipo de crime em nome da ficção, nem mesmo matar animais. Mas se for feito, como em `Canibal Holocausto´ (1980), é preciso discutir e refletir".

*Publicado em O TEMPO no dia 19.2.2012

Um comentário:

Marcos Kopschitz disse...

O blog esteve meio parado, mas volta em grande performance! Parabéns pelo excelente artigo. Ótimas temática, infomações e reflexões.