segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"Encruzilhada" e "Johnny Furacão"

O momento efervescente que vive o quadrinho brasileiro tem gerado trabalhos de envergadura, criados por nomes ainda em ascensão, nem por isso pouco significativos. São os casos de dois lançamentos quase simultâneos que andam circulando em boas livrarias e lojas virtuais - e fazendo bastante sucesso entre os fãs e especialistas do segmento.

Que o diga o paulista Marcelo D’salete. Seu "Encruzilhada" foi taxado pelo crítico Eduardo Nasi como "não só um dos melhores álbuns dos últimos tempos, mas também um dos mais importantes". Já o mineiro naturalizado carioca Sama, autor de "A Balada de Johnny Furacão", foi elogiado pelo também crítico Paulo Ramos: "É fácil entregar-se à obra e aos eficientes desenhos de Sama".

Em comum, as duas HQs têm pouca coisa. "Encruzilhada" trata do cotidiano urbano nas ruas paulistanas, com personagens decalcados do mundo real protagonizando pequenos contos sobre marginalidade, consumismo e violência. "A Balada de Johnny Furacão" é uma aventura de estrada (ou "road comic", como definiu Paulo Ramos) com toques fantásticos.

Para Marcelo D’salete, "Encruzilhada" - seu segundo trabalho, antecedido por "Noite Luz", de 2008 - serviu como forma de ele amadurecer um processo que já vinha desenvolvendo. "Retomei a ideia de trabalhar contos ambientados em grandes metrópoles, especialmente porque é onde eu vivo e por querer retratar situações muito próximas do meu cotidiano", diz ele. "Algumas das histórias que eu mostro foram testemunhadas por mim, outras me contaram e, numa delas, eu juntei alguns outros elementos".

O universo geográfico das ruas de São Paulo é mais um atrativo a D’salete. Ele conta sempre ter gostado de desenhar a cidade e retratar paisagens com as quais os moradores se habituaram - prédios infinitamente altos, ruas cheias, trânsito. "Tudo isso se junta no álbum numa série de encontros e desencontros, de cruzamentos e conflitos que acontecem no dia a dia das pessoas".

Por sua vez, Sama (pseudônimo de Eduardo Filipe) partiu de uma música de Erasmo Carlos que marcou sua infância para narrar a saga de três personagens perdidos numa autoestrada e caçados por um bando de motoqueiros valentões, em "A Balada de Johnny Furacão".

Sobram referências a filmes (como "O Selvagem da Motocicleta", de Francis Coppola) e bandas de rock (Matanza e Raimundos). "Nunca tive o roteiro completo do ‘Johnny’", revela Sama. "A história foi me levando mais do que eu levando a história, e acho que a grande força dela está nisso".

Com técnicas híbridas na concepção visual do álbum, Sama utiliza em seus desenhos predominantemente a aguada de nanquim, no intuito de dar o tom alucinado de sua história - o que se torna fundamental no terço final, quando a narrativa mergulha em outros meandros.

Perfis
Marcelo D'salete tem 31 anos. É pesquisador de arte afro-brasileira, ilustrador de livros infantojuvenis e lançou seu primeiro trabalho solo, "Noite Luz", em 2008, pela editora Via Lettera.

Sama tem 38 anos. É artista visual e autor premiado de charges, cartuns e ilustrações. Também é ator, tendo trabalho na televisão, no teatro e no cinema.

Referências.
Se há um fator em comum entre "A Balada de Johnny Furacão" e "Encruzilhada" (para além de ambos serem excelentes leituras), é a admiração de seus autores pelo mestre uruguaio (naturalizado na Argentina) Alberto Breccia (1919-1993), um dos grandes nomes da HQ mundial.

A influência, ainda que não explícita, pode ser percebida na forma de utilizar o preto e branco nos dois álbuns. Marcelo D’salete faz quadros pretos nas próprias páginas, inserindo o traço e os contornos dentro do "enquadramento", com todos os elementos dialogando. Já Sama faz páginas mais "brancas", mas não menos expressivas, usando silhuetas e sombras também em fundos escuros.

Não só Breccia move D’salete e Sama. Os dois são leitores vorazes de HQ. O primeiro curte também Laerte, Marcello Quintanilha e mangás; o segundo exalta Odyr Berardi, Hugo Pratt e a dupla Kazuo Koike e Goseki Kojima, responsáveis pela série "Lobo Solitário".

*Publicado em "O Tempo" no dia 30.9.2011

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