Cinema, literatura & quadrinhos
Criticas, resenhas, artigos e reportagens de Marcelo Miranda
sábado, 15 de setembro de 2012
Febre do Rato, de Cláudio Assis
Os filmes do pernambucano Cláudio Assis sempre explicitaram a forte pessoalidade do trabalho de seu realizador, mas nenhum deles ("Amarelo Manga" em 2002, "Baixio das Bestas" em 2006, para ficar só nos longas-metragens) pareceu trazer um personagem tão visceralmente similar à figura de Cláudio do que o poeta Zizo, protagonista de "Febre do Rato". A relação era tanta que Beto Brant, diretor de "O Invasor" e "Crime Delicado", leu o roteiro e sugeriu que o próprio Cláudio interpretasse o papel.
No filme que estreia hoje em Belo Horizonte, porém, quem faz Zizo é Irandhir Santos, parceiro de longa data do cineasta. Desta vez, segundo Cláudio, o que ele fez foi poesia. "Queriam que eu contasse as minhas histórias de outro jeito. Pronto, aí está", dispara ele. "É um filme sobre o quanto você paga para ser quem você é".
Adepto de uma abordagem brutal da realidade no Recife - primeiro o aspecto urbano, em "Amarelo Manga", depois o rural, em "Baixio das Bestas" -, Cláudio Assis criou uma capital pernambucana atemporal em "Febre do Rato". A cidade é contemporânea, disso não há dúvidas, mas o tom, o fluxo das imagens, a maneira como o realizador a coloca na tela, vem de outro tempo - um tempo indefinido.
Daí que a escolha do preto e branco, magnificamente fotografado por Walter Carvalho, é tão importante. "Se eu filmasse em cores, não chamaria tanta atenção para alguns aspectos que eu quis reforçar. Fiz o filme como uma experiência sobre esse espaço que é o Recife de hoje".
O longa segue o dia a dia de Zizo, poeta marginal que imprime desenhos e escritos num panfleto distribuído pelas ruas. Ele brada a todo instante em nome da liberdade, do amor livre, do olhar poético sobre o mundo. "Sou fornecedor de sonhos", exalta.
Um grupo de amigos o acompanha em suas crenças. Entre eles, há o coveiro vivido por Matheus Nachtergaele, que tem uma relação malresolvida com um travesti; e as vizinhas adeptas do álcool e da sexualidade ardente, uma delas sendo Maria Gladys, musa "marginal" do cinema de Julio Bressane e Rogério Sganzerla e que, aos 72 anos, não economiza em desprendidas cenas de nudez. "É um filme de amor, acima de tudo, e é libertário", diz Cláudio.
Zizo transita levemente por Recife até se deparar com Eneida (vivida por Nanda Costa), que se torna a musa total do poeta na mesma intensidade com que insiste em rejeitá-lo. Essa relação nunca explicitamente consumada na tela entre Zizo e Eneida ganha os principais contornos efetivamente poéticos do filme, culminando num momento especialmente intenso envolvendo boca e urina. "Ousadia não se compra na esquina" é um dos gritos de Zizo e, não à toa, a frase favorita de Cláudio Assis dentre as várias do personagem.
O roteiro, escrito por Hilton Lacerda ao longo de anos e incorporado por colaborações de Cláudio e do escritor Xico Sá, parte de uma expressão popular do Nordeste que dá título ao filme. A "febre do rato" é o termo usado para definir o estado de uma pessoa fora de controle. Ao seu modo, Cláudio Assis se descontrolou como nunca no novo filme, no melhor de todos os sentidos. "É assim que o cinema é feito, ou pelo menos aquele em que acredito: com emoção, com sentimento, com vontade", afirma o diretor.
Para o futuro, Cláudio tem dois projetos em andamento. Um deles é "Piedade", a partir de um texto inédito de Xico Sá. Outro é - surpresa - um filme infantil, a ser realizado a pedido do filho do diretor, Francisco. Intitulado "Chão de Estrelas", deverá se focar nos sonhos e desejos infantis e no olhar de descoberta de quem está começando a enxergar o mundo com mais afinco. "O cinema, para mim, é arte, é a construção de uma nação. Assim quero continuar", decreta o alter ego de Zizo.
*Publicado em "O Tempo" em 7.9.2012
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Um comentário:
Ótimo texto, quando quiser rever o filme me chame :)
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