De que tipo de inquietação nasceu a ideia que foi desembocar em "Os Residentes"? A ideia central do filme é a ideia da vanguarda – o que dela se reatualiza, o que se repete como farsa. Nos deixamos contaminar desde o princípio por esse espírito vanguardista de diluição da arte na vida, que passa tanto por Rimbaud quanto por Guy Debord, tanto por Oiticica quanto por Robert Smithson. Também no cinema, a ideia do cinema de invenção, certa ambição de recriar a um só tempo o cinema e a sociedade. Nossa intenção era criar essa possibilidade de utopia ao menos durante o período das filmagens, envolver a equipe em um pequeno complô lunático, fazer nossa própria revolução no cotidiano, nos fechar em nossa própria zona autônoma temporária, inventar livremente um novo mundo, entre quatro paredes.
Na primeira exibição do filme, em Brasília 2010, você disse que tentava "oxigenar" o cinema brasileiro. O que pensa do cinema feito no Brasil hoje? E em que medida um trabalho como "Os Residentes" serve a essa oxigenação? O que eu disse, na apresentação de meu filme em Brasília, era que aquela edição do festival, porque nela uma nova geração começava a mostrar a sua cara, prometia oxigenar o cinema brasileiro. Estava expressando um sentimento geracional de renovação em um palco, o do Festival de Brasília, historicamente ligado ao cinema de invenção. No dia seguinte, no debate, um jornalista deturpou o que eu dissera para me fazer parecer arrogante e pretensioso. Quando falo em cinema brasileiro, penso sempre em termos de cinematografia, nunca em termos de indústria cinematográfica. Acho que a cinematografia brasileira anda meio estagnada. Estamos numa fase em que o fundo (os roteiros) tem prevalecido sobre a forma. Esteticamente, não vínhamos criando nada de relevante – nesse sentido, a nova geração, o dito novíssimo cinema brasileiro, pelo menos no que ele tem de democrático e plural, não deixa de representar uma renovação.
Uma visão que tenho de "Os Residentes" é a de se tratar de um filme que coloca a noção de narrativa em xeque, que implode e tenta reconstruir as várias possibilidades de se narrar alguma coisa para, enfim, não encontrar nenhuma específica. Pergunto: você acredita numa crise da narração? E o quanto o cinema está numa berlinda em relação à narração? Não acredito na crise da narração, as histórias vão sempre existir. Os residentes passam o tempo todo se contando histórias cheias de som e de fúria e estas confluem para a própria história do grupo. Mas não pertenço a essa tradição narrativa clássica americana, esse modelo vazio a que os filmes brasileiros de mainstream têm se rendido. Pertenço à “tradição moderna” (desculpe o paradoxo), que é a verdadeira tradição do cinema brasileiro. Uma tradição de descontinuidade, não de continuidade. Cada momento deve ter a sua autonomia em relação ao todo – mesmo porque não quero nem consigo filmar cenas meramente funcionais. E há também certa crença no método: parto de uma ideia geral para testá-la no confronto com a realidade de uma filmagem, os encontros e desencontros, o acaso desarranjando tudo. A montagem é sempre uma tentativa de reencontrar esse mundo ideal que estava na origem de tudo, o momento em que a ideia original do filme de alguma forma reaparece. O que quer dizer que só depois de dar o último corte na última versão é que começo a descobrir o que o filme é de fato.
Você contava com a repercussão que "Os Residentes" teve, incluindo a seleção para Berlim e as controvérsias em alguns festivais brasileiros, especialmente Brasília? Na sua opinião de criador, a que se deveu isso? A polêmica em Brasília era bem previsível. O tipo de convicção que o filme apresenta corre o risco de ser mal compreendido em um contexto em que predominam o pragmatismo, a política de resultados e as estratégias de inserção – não é apenas o Festival de Brasília, é a época. O filme teve que se erguer sozinho do nada. A reação prova que ele tinha lá alguma potência de ruptura. Já esperava algum embate, até ansiava por ele, mas não a repercussão, não esperava que o filme chegasse a ser exibido comercialmente em salas de cinema no exterior – nos países de língua alemã, ele está sendo distribuído pelo Arsenal, a cinemateca de Berlim. Para um público mais cinefílico, imagino.
Você foi crítico de cinema por alguns anos. Quanto da experiência com a crítica de cinema influencia no seu trabalho de realizador, em especial "Os Residentes"? Sempre fui ao mesmo tempo realizador e crítico. Mesmo quando trabalhava diariamente como crítico, para os jornais, dava um jeito de fazer os meus filmes. Me considero antes de tudo um cinéfilo. E acho que há alguma coerência na minha pesquisa cinefílica, entre os filmes e as críticas que faço, e mesmo em minhas curadorias. Faço, de certa forma, um cinema de cinéfilo, lúdico-cinefílico. Borges era, antes de tudo, um grande leitor, assim como Godard. Meus trabalhos têm muito a ver com os livros e os filmes que me atraem no momento, um certo espírito que passa por eles, mas você pode encarar isso como uma desculpa para que eu tenha tempo para passar a vida entre eles.
Continua um grande fã de Godard? O que pensa dos filmes mais recentes dele? Godard é antes de tudo sinônimo de liberdade – seu “film-socialisme” me parece, nesse sentido, uma sonora chutação de balde. Minha fase godardiana já passou, há muito, mas deixou rastro. Existem referências bem mais importantes nos “Residentes”, Debord especialmente, mas os críticos de cinema veneram Godard e eu entendo. O único filme sobre o qual conversávamos durante as filmagens era “Out 1”, de Rivette. No mais, cada um aplica o repertório que tem: o que posso dizer é que os críticos de cinema não entendem nada de arte e os de arte pouco sabem de cinema.
*Íntegra de entrevista publicada parcialmente em O TEMPO no dia 17.2.2012.
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