segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O Eternauta chega ao Brasil

por Marcelo Miranda

No final dos anos 1950, uma estranha e fosforescente neve cai numa noite tranquila de Buenos Aires. Porém, o simples encostar de um floco na pele faz com que qualquer ser vivo despenque morto imediatamente. Desta premissa bastante básica e intrigante inicia-se uma das obras artísticas mais importantes e significativas da América Latina. "O Eternauta" foi uma história em quadrinhos publicada, em capítulos semanais entre 1957 e 1959, na revista argentina "Hora Cero" , com roteiros de Héctor Germán Oesterheld e desenhos de Francisco Solano López.

Ao longo das décadas, "O Eternauta" se firmou como um símbolo argentino, reeditado inúmeras vezes e sempre rememorado em pichações, homenagens e até em campanhas políticas. Porém, demorou 55 anos para que a série fosse enfim publicada no Brasil. Em janeiro, a editora Martins Fontes colocou nas livrarias um encadernado em português de "O Eternauta", fechando uma lacuna que ainda persistia.

É difícil dosar a importância de "O Eternauta". Em primeiro lugar, há a qualidade do trabalho sob todo e qualquer aspecto. Como diz o crítico de quadrinhos e professor do departamento de letras da USP Paulo Ramos, trata-se de uma das melhores HQs já produzidas em todo o mundo. "Em termos de impacto social e influência na produção de quadrinhos do país vizinho, não seria exagero comparar o personagem à ‘Mafalda’, de Quino", avalia Ramos, no prefácio da edição nacional de "O Eternauta".

Em outro aspecto, a relevância está na própria gênese da obra de Oesterheld e López, fortemente vinculada à política da Argentina. "Na época da publicação, o país tinha acabado de sair de uma ditadura que derrubara o então presidente Juan Domingo Perón, em 1955, e viria a passar por outros golpes militares nas décadas seguintes", destaca Ricardo Malta Barbeira, colaborador no site UniversoHQ.

Afinal, Héctor Oesterheld era, além de jornalista e quadrinhista, um ativo militante político, defensor de causas a favor do coletivo e do social. Em introdução escrita nos anos 1970 para uma das republicações de sua criação mais notória, o autor registrou: "O verdadeiro herói de ‘O Eternauta’ é um herói coletivo, um grupo humano. Isso reflete, embora sem premeditação, meu sentimento íntimo: o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o individual ou solitário".

A trama da HQ é narrada por Juan Salvo, que se define como "viajante da eternidade" logo na terceira página. Ele passa a contar tudo que lhe aconteceu a um assustado roteirista de quadrinhos (espécie de alter ego de Oesterheld). Salvo fala da neve assassina e de como ele, sua família e alguns amigos se depararam com uma ameaça absolutamente inimaginável, um inimigo sem precedentes disposto a dominar o planeta e eliminar a raça humana.

A ação transcorre em tempo real, como se Salvo estivesse falando ao próprio leitor no sofá de casa. Cada segundo da trama é detalhadamente contado e desenvolvido com surpreendente maestria, tensão e engenhosidade ao longo de 360 páginas. Os desenhos de Solano López são fundamentais na fruição, especialmente porque ele faz traços de locais facilmente reconhecíveis de Buenos Aires - entre os espaços por onde os personagens transitam, estão o estádio do River Plate, a praça de Maio, as barrancas de Belgrano e ainda ruas, vielas e estações de metrô. A ambientação e o tom realista e apocalíptico serviram para que "O Eternauta" não apenas funcionasse como uma ótima história de ficção científica, mas também de referência política da América Latina.

"Não é preciso ser um grande caçador de metáforas para associar os Eles (os líderes da invasão da Terra) com os militares que tomaram o poder", apontou certa vez o escritor argentino Carlos Trillo. Malta Barbeira completa: "É basicamente a história de indivíduos normais colocados numa situação-limite, lutando contra algo muito maior do que eles individualmente, mas, possivelmente, não maior do que todos eles juntos".

Héctor Oesterheld pagou caro por suas convicções. Cada vez mais inserido na luta política a partir do golpe militar de março de 1976, o escritor - que causara polêmica por fazer releituras mais politizadas de uma nova versão de "O Eternauta" em 1969 e por sua biografia em quadrinhos de Che Guevara, publicada em 1968 - foi sequestrado em 1977 e nunca mais encontrado.

Mesmo assim, a segunda parte de "O Eternauta", previamente pronta, foi sendo publicada quando Oesterheld já estava desaparecido. Os leitores, porém, não sabiam de seu sumiço, já que informações sobre a oposição eram filtradas. Assim foi até o término da segunda série, em 1978.

Ironicamente, Oesterheld pode ter sido assassinado naquele ano. De sua família, quatro filhas (duas delas grávidas) e dois genros também foram mortos, por atuarem na Juventude Peronista, contrária aos militares. Apenas a viúva do autor, Elsa, a única a não se envolver na militância, sobreviveu. O trágico destino de Oesterheld criou o mito em torno de seu nome e trabalho. Apesar de outros projetos que publicou, "O Eternauta" ficou como o grande representante de sua genialidade.

A diretora argentina Lucrécia Martel, de "O Pântano" e "A Menina Santa", iria dirigir uma adaptação da história para o cinema. Um cartaz chegou a circular no Festival de Cannes, em 2008. Porém, ela se afastou do projeto por diferenças criativas com os herdeiros da obra. Outro diretor ainda deve assumir a produção.

Sobre o livro
No Brasil, "O Eternauta" é do selo Martins, da editora Martins Fontes. Tem 360 páginas, roteiro de Hector Oesterheld, desenhos de Francisco Solano López, tradução de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina, formato 28 x 22 cm e preço de R$ 69,80.

*Publicado em O TEMPO no dia 25.2.2012

Tiago Mata Machado fala de 'Os Residentes'

por Marcelo Miranda

De que tipo de inquietação nasceu a ideia que foi desembocar em "Os Residentes"? A ideia central do filme é a ideia da vanguarda – o que dela se reatualiza, o que se repete como farsa. Nos deixamos contaminar desde o princípio por esse espírito vanguardista de diluição da arte na vida, que passa tanto por Rimbaud quanto por Guy Debord, tanto por Oiticica quanto por Robert Smithson. Também no cinema, a ideia do cinema de invenção, certa ambição de recriar a um só tempo o cinema e a sociedade. Nossa intenção era criar essa possibilidade de utopia ao menos durante o período das filmagens, envolver a equipe em um pequeno complô lunático, fazer nossa própria revolução no cotidiano, nos fechar em nossa própria zona autônoma temporária, inventar livremente um novo mundo, entre quatro paredes.

Na primeira exibição do filme, em Brasília 2010, você disse que tentava "oxigenar" o cinema brasileiro. O que pensa do cinema feito no Brasil hoje? E em que medida um trabalho como "Os Residentes" serve a essa oxigenação? O que eu disse, na apresentação de meu filme em Brasília, era que aquela edição do festival, porque nela uma nova geração começava a mostrar a sua cara, prometia oxigenar o cinema brasileiro. Estava expressando um sentimento geracional de renovação em um palco, o do Festival de Brasília, historicamente ligado ao cinema de invenção. No dia seguinte, no debate, um jornalista deturpou o que eu dissera para me fazer parecer arrogante e pretensioso. Quando falo em cinema brasileiro, penso sempre em termos de cinematografia, nunca em termos de indústria cinematográfica. Acho que a cinematografia brasileira anda meio estagnada. Estamos numa fase em que o fundo (os roteiros) tem prevalecido sobre a forma. Esteticamente, não vínhamos criando nada de relevante – nesse sentido, a nova geração, o dito novíssimo cinema brasileiro, pelo menos no que ele tem de democrático e plural, não deixa de representar uma renovação.

Uma visão que tenho de "Os Residentes" é a de se tratar de um filme que coloca a noção de narrativa em xeque, que implode e tenta reconstruir as várias possibilidades de se narrar alguma coisa para, enfim, não encontrar nenhuma específica. Pergunto: você acredita numa crise da narração? E o quanto o cinema está numa berlinda em relação à narração? Não acredito na crise da narração, as histórias vão sempre existir. Os residentes passam o tempo todo se contando histórias cheias de som e de fúria e estas confluem para a própria história do grupo. Mas não pertenço a essa tradição narrativa clássica americana, esse modelo vazio a que os filmes brasileiros de mainstream têm se rendido. Pertenço à “tradição moderna” (desculpe o paradoxo), que é a verdadeira tradição do cinema brasileiro. Uma tradição de descontinuidade, não de continuidade. Cada momento deve ter a sua autonomia em relação ao todo – mesmo porque não quero nem consigo filmar cenas meramente funcionais. E há também certa crença no método: parto de uma ideia geral para testá-la no confronto com a realidade de uma filmagem, os encontros e desencontros, o acaso desarranjando tudo. A montagem é sempre uma tentativa de reencontrar esse mundo ideal que estava na origem de tudo, o momento em que a ideia original do filme de alguma forma reaparece. O que quer dizer que só depois de dar o último corte na última versão é que começo a descobrir o que o filme é de fato.

Você contava com a repercussão que "Os Residentes" teve, incluindo a seleção para Berlim e as controvérsias em alguns festivais brasileiros, especialmente Brasília? Na sua opinião de criador, a que se deveu isso? A polêmica em Brasília era bem previsível. O tipo de convicção que o filme apresenta corre o risco de ser mal compreendido em um contexto em que predominam o pragmatismo, a política de resultados e as estratégias de inserção – não é apenas o Festival de Brasília, é a época. O filme teve que se erguer sozinho do nada. A reação prova que ele tinha lá alguma potência de ruptura. Já esperava algum embate, até ansiava por ele, mas não a repercussão, não esperava que o filme chegasse a ser exibido comercialmente em salas de cinema no exterior – nos países de língua alemã, ele está sendo distribuído pelo Arsenal, a cinemateca de Berlim. Para um público mais cinefílico, imagino.

Você foi crítico de cinema por alguns anos. Quanto da experiência com a crítica de cinema influencia no seu trabalho de realizador, em especial "Os Residentes"? Sempre fui ao mesmo tempo realizador e crítico. Mesmo quando trabalhava diariamente como crítico, para os jornais, dava um jeito de fazer os meus filmes. Me considero antes de tudo um cinéfilo. E acho que há alguma coerência na minha pesquisa cinefílica, entre os filmes e as críticas que faço, e mesmo em minhas curadorias. Faço, de certa forma, um cinema de cinéfilo, lúdico-cinefílico. Borges era, antes de tudo, um grande leitor, assim como Godard. Meus trabalhos têm muito a ver com os livros e os filmes que me atraem no momento, um certo espírito que passa por eles, mas você pode encarar isso como uma desculpa para que eu tenha tempo para passar a vida entre eles.

Continua um grande fã de Godard? O que pensa dos filmes mais recentes dele? Godard é antes de tudo sinônimo de liberdade – seu “film-socialisme” me parece, nesse sentido, uma sonora chutação de balde. Minha fase godardiana já passou, há muito, mas deixou rastro. Existem referências bem mais importantes nos “Residentes”, Debord especialmente, mas os críticos de cinema veneram Godard e eu entendo. O único filme sobre o qual conversávamos durante as filmagens era “Out 1”, de Rivette. No mais, cada um aplica o repertório que tem: o que posso dizer é que os críticos de cinema não entendem nada de arte e os de arte pouco sabem de cinema.

*Íntegra de entrevista publicada parcialmente em O TEMPO no dia 17.2.2012.

A violência filmada

por Marcelo Miranda

Na cena mais perturbadora de "Os Homens que não Amavam as Mulheres", em cartaz nos cinemas, a personagem Lisbeth é barbaramente estuprada por seu tutor. Em entrevista, o diretor do longa, David Fincher, afirmou: "Num filme, a violência deve ofender, enojar e dar enjoo. Quando você mostra um estupro num filme, as pessoas têm de ficar mal. Porque é horrível".

A representação de atos violentos na esfera da ficção é um assunto sempre em voga a cada novo filme que apresenta algum tipo de atrocidade e gera repercussão com isso. No ano passado, em meio a enorme controvérsia, a produção sérvia "A Serbian Film" foi proibida de circular em cinemas brasileiros devido ao teor de algumas cenas criadas por Srdjan Spasojevic.
Trabalhos como os de Fincher e Spasojevic, ou outros como "Irreversível" (2003), com o estupro da personagem de Monica Bellucci por 11 minutos sem cortes, levantam questões sobre como, afinal, a violência é representada.

"Não é função da arte se impor limites. A arte, na verdade, é o espaço por excelência para se explorar limites", diz o crítico e roteirista Fernando Toste, programador do RioFan, festival de filmes de horror realizado todo ano no Rio de Janeiro. "Tudo sempre depende da construção do universo ficcional e do contexto onde a violência está sendo mostrada. O gênero do terror costuma ser a maior vítima das polêmicas, mas é justamente onde a perturbação da violência pode e deve existir".

O cineasta Kleber Mendonça Filho tem visão similar. Para ele, "atos violentos só devem ser tolerados dentro do universo da ficção". "Um aspecto da violência (encenada) é ela ser extremamente fotogênica", diz Kleber. "Quando você filma esse tipo de coisa no cinema, está filmando uma cena de ação e precisa pensar em decupagem, em ritmo, em corte".

Ele exemplifica a fotogenia da violência com boa parte dos filmes de Brian De Palma ou, mais especificamente, a cena em que Viggo Mortensen mata dois assaltantes num café em "Marcas da Violência" (2005), de David Cronenberg. "Raramente no cinema dois vilões mereceram tanto morrer como nessa cena, e só num filme pode existir uma coisa daquelas".

Para Carlos Reichenbach, cineasta que organiza em São Paulo uma sessão mensal com filmes extremos de alto teor de cenas fortes, "alguns títulos ultraviolentos exacerbam na representação da barbárie, mas não a fetichizam".

Ele vê com maus olhos, porém, trabalhos que considera "nefastos" pela maneira de manipular o espectador e seus "limites de tolerância". Cita especificamente "A Serbian Film" e o austríaco "Violência Gratuita" (1997) como exemplares que ele considera imorais. "Na cena (de ‘Violência Gratuita’) em que os protagonistas matam um menino e piscam para a câmera, saí no meio da sessão", diz Reichenbach.

A questão a ele, porém, é de cunho pessoal. "Por ser essencialmente contra qualquer tipo de censura, eu não enxergo limites na representação de nada, nem da violência e muito menos do sexo. Cada realizador deve responder por aquilo que escolheu mostrar e, sobretudo, como foi mostrado".

A pesquisadora Laura Cánepa, que estuda filmes de terror brasileiros, acredita que o único limite é mesmo a realidade. "Se alguém estiver sofrendo violência de verdade durante as filmagens, não se pode aceitar", aponta. "Já as questões ideológicas dependem do lugar, da época, das pessoas envolvidas. Acho dificílimo responder a isso (sobre limites da ficção) com algum grau de certeza. Sempre vão escapar exceções, particularidades e complicações".

Cánepa lembra que a recepção de quem assiste sempre dependerá do contexto. "O incômodo parece ser mais pelo fato de determinados filmes tentarem relativizar alguns aspectos morais da violência do que por serem violentos. Pode reparar que, num filme de guerra, podemos ver cenas até mais fortes sem nos incomodar tanto". Fernando Toste concorda: "Se eu faço uma cena violenta qualquer, os valores que ela carrega mudam de acordo com onde e como ela será exibida".

Confira aqui dez filmes muito violentos.

Paradigmas
Ao longo dos anos, o cinema já apresentou todo tipo de ato violento, seja em filmes que se tornaram marcos reconhecidos facilmente (o inglês "Laranja Mecânica", de 1971, talvez o maior deles), seja por trabalhos mais segmentados e cultuados em parcela específica de público (o japonês "Ichi, o Assassino", de 2001, realmente uma pérola).

O que torna um filme lembrado pela perturbação que ele provoca com a representação da violência, na opinião do cineasta Kleber Mendonça Filho, é a ultrapassagem de limites autoimpostos pelo próprio cinema.

"Existem determinadas regras que não foram escritas, mas que todo mundo obedece. Quando alguém quebra essas regras, chama bastante atenção", diz ele. "Veja o caso de ‘Irreversível’, na cena em que um cara esmigalha a cabeça do outro com um extintor. Ninguém nunca tinha visto aquilo daquele jeito. Normalmente você veria com corte, contraplano, ângulos... Ali no filme, é plano-sequência de frente".

Kleber lembra casos como os de "Laranja Mecânica" (com um estupro ao som de "Singin’ in the Rain"), o horror de "O Massacre da Serra Elétrica", de 1974 (para ele, ainda um filme muito incômodo) e a virulência de "Robocop" (1987), em que o holandês Paul Verhoeven critica e ironiza abertamente o uso da violência pela própria indústria de Hollywood. "O cinema é visceral: se a cena é bem-feita, você sente a energia na sala, as pessoas reagem, e isso é muito forte", complementa.

A representação do estupro (masculino ou feminino) e ações brutais contra crianças ainda permanecem como os maiores tabus de filmes com cenas de violência. Em relação ao abuso sexual, a figura feminina é mais vitimizada, com algumas sequências ainda marcantes (vide "Sob o Domínio do Medo", de Sam Peckinpah, lançado em 1971, "A Vingança de Jennifer", de 1978, e o sempre citado "Irreversível").

Homens também foram alvos de atos sexuais bárbaros, alguns mostrados em "Amargo Pesadelo" (1972), em que um caipira violenta um dos protagonistas (e o faz imitar um porco), e em "Pulp Fiction" (1994), de Quentin Tarantino.

Para a pesquisadora Laura Cánepa, a evolução da encenação de brutalidades na ficção se desenvolveu com o próprio cinema. "A passagem do preto e branco para a cor trouxe fortemente a questão do sangue nos filmes de horror, que inicialmente parecia bem mais chocante do que é hoje", relembra ela. "Há também quem diga que filmes como ‘A Paixão de Cristo’, do Mel Gibson, e séries como ‘CSI’ aumentaram a aceitação do público em geral para cenas mais fortes, pois acostumaram o olhar a imagens chocantes que antes só apareciam em filmes voltados a um nicho específico".

Num artigo de 2003 para a revista "Interseções", a professora e ensaísta Ivana Bentes escreveu: "A violência já foi pensada por teóricos e cineastas como uma experiência fundamental do cinema, intimamente ligada à própria estrutura do fluxo audiovisual".

Ela aponta a cena do olho cortado com uma navalha no curta "Um Cão Andaluz" (1929), de Luis Buñuel, como o primeiro grande momento de violência no cinema, ainda que profundamente metafórico e simbólico.

Foi a partir dos anos 1960, para a ensaísta, que se percebe uma preocupação em pensar a violência nas esferas mais realistas da representação. "Há a profunda compreensão da violência como dimensão do sagrado, como dimensão da cultura e ao mesmo tempo como algo da ordem do intolerável, quando essa violência está ligada a uma injustiça ou estado de desigualdade".
Na mesma época, iniciou-se ainda o olhar alegórico para o tema, muito utilizado por Jean-Luc Godard e que nos chega hoje via Quentin Tarantino, Takashi Miike e Johnnie To, entre outros.

Brasil
No Brasil, a representação da violência num sentido mais gráfico é inaugurada em 1964, com José Mojica Marins e seu "À Meia-Noite Levarei Sua Alma". "Aqui existe a particularidade de que o primeiro diretor a fazer filmes assumidamente de horror, o Mojica, foi um dos pioneiros mundiais do terror explícito, e dali em diante houve uma tradição bem violenta", afirma Laura Cánepa, pesquisadora do assunto.

A professora Ivana Bentes, da UFRJ, complementa em artigo que, também a partir dos anos 1960, a violência alegórica foi incorporada ao Cinema Marginal, especialmente nos trabalhos de Rogério Sganzerla, com "O Bandido da Luz Vermelha" (1968), e Julio Bressane, em "Matou a Família e Foi ao Cinema" (1969).

Tabus
O crítico e roteirista Fernando Toste comenta alguns aspectos delicados do tratamento de determinados atos violentos pelo cinema.

Estupro. "Em `A Vingança de Jennifer´ (1978), há uma cena profundamente perturbadora que, dentro do universo apresentado pelo filme, faz todo o sentido. Na refilmagem de 2011, `Doce Vingança´, existe uma celebração das ações dentro do filme, e eu me senti muito ofendido".

Crianças. "É uma coisa que sempre foi uma questão delicada, e o próprio cinema já problematizou isso dentro dos filmes, como o George Romero em `O Despertar dos Mortos´ em 1978".

Realidade. "Acho que não se deve cometer nenhum tipo de crime em nome da ficção, nem mesmo matar animais. Mas se for feito, como em `Canibal Holocausto´ (1980), é preciso discutir e refletir".

*Publicado em O TEMPO no dia 19.2.2012