segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Um passeio pela obra de William Friedkin [até 2006]

*Originalmente publicado na revista eletrônica "Filmes Polvo" em 2007

O tema de quase todos os meus filmes é a linha tênue entre o bem e o mal. Isso existe em todos nós. Todos temos essa batalha íntima dentro de nós, os nossos anjos de batalha contra o lado demoníaco. Eu acho que isso está em todo mundo, o tempo todo. E os meus filmes são sobre essa separação tão delicada - William Friedkin


Quando se fala ou pensa em William Friedkin, logo vem à mente dos cinéfilos o homem por trás de O Exorcista (1973). Dos ainda mais cinéfilos, pode vir também (antes ou depois da lembrança do filme demoníaco) o policial Operação França (1971), que, lançado no começo dos anos 70, moldou muito do que até hoje se assiste no gênero. Mas, diferente do que se apregoa mais aos quatro cantos do que seria justo e merecido, Friedkin teve (ainda tem) carreira de notável vigor técnico e artístico. Homem de ação e movimento, fez do cinema um espaço para idéias muito particulares sobre a natureza humana. Existe o preconceito de que o cinema de gênero nada mais é do que isso – um cinema de gênero no seu sentido mais estrito, em que determinada história é contada a partir de uma série de regras fixas, pré-estabelecidas e sem qualquer tipo de desafio a um possível status quo do próprio gênero em questão. Mas alguns cineastas, quando inspirados e dotados de sua máxima capacidade criativa, conseguem driblar o simplismo de uma premissa ou de um lance de roteiro para colocar no filme suas obsessões e, dali, tentar compreender – ou, pelo menos, registrar – determinados anseios que movem o homem.

Obsessão, aliás, é palavra-chave no cinema de William Friedkin, e é a partir disso que iremos falar de seu cinema aqui neste humilde artigo – que tem, mais do que a pretensão de querer tirar de um certo esquecimento vigente sobre a relevância de Friedkin, exaltar uma obra coerente e autoral, ainda que muitas vezes irregular e cheia de falhas. O “gancho” (para usar jargão jornalístico) é o lançamento nos cinemas brasileiros de Possuídos, mais recente trabalho do cineasta a chegar aos nossos olhos – isso, depois de mais de um ano de sua exibição no Festival de Cannes, na França, onde foi premiado na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela dedicada a projetos de maior grau de ousadia e experimentação.

A um cineasta tachado de generalista, como é caso de Friedkin, pode surpreender a alguns vê-lo num evento do porte de Cannes. Pois Possuídos (péssima tradução brasileira para o muito mais instigante Bug) consegue reunir todas as características do cinema de Friedkin e ainda soar original e único – dentro de sua filmografia e dentro de uma certa caretice que vem sendo imposta ao cinema americano. O filme possui radicalidade poucas vezes vista num “produto” similar, ainda mais protagonizado pela queridinha Ashley Judd, o que pode atrair desavisados que pensem estar indo assistir a algum terror na linha “assassino-em-série” ou “demônio-que-invade-corpo-e-arruma-confusão”. Pois assim como fez com o horror, o policial, o drama e o suspense, Friedkin torna o tal “terror psicológico” (alcunha que a imprensa decidiu impor a Possuídos) um pequeno e explosivo tratado das relações amorosas no seu conceito mais extremo.

O cinema de William Friedkin é um cinema de obsessões. Em praticamente todos os seus filmes, os personagens buscam alguma coisa com sanha incontrolável, em tentativas por vezes irracionais ou mesmo desmedidas para atingir determinados objetivos. São sempre personagens “possuídos” (e aí, ironicamente, o título brasileiro de Bug acaba servindo como súmula de toda a carreira de Friedkin). Num sentido literal, o filme mais famoso do diretor, O Exorcista, trazia já na sinopse a idéia de possessão, na trama da garotinha encarnada pelo demônio. Mas o verdadeiro “possuído” não era a jovem Regan, e sim o padre Damien Karras, também psicólogo e em fase de decadente crença na força divina. Convocado pela mãe de Regan, ele toma contato com a terrível verdade sobre a possessão e, a partir daquilo, recupera a própria fé. O jogo de ironias está explícito: num momento de sua vida em que Karras aparenta negar a existência de Deus, sua fé ressurge a partir do contato com o anti-Deus. A obsessão, no caso, está em expulsar aquela criatura de um corpo inocente e seguir rumo aos novos desafios que a vida vai lhe impor – como bem mostra a cena final.

Segundo diz a epígrafe deste artigo, Friedkin crê na ambivalência do ser humano, na idéia de que todos nós temos um lado bom e um lado mau. Essa constatação está óbvia um tanto quanto exageradamente em O Exorcista, mas não tanto, por exemplo, nos policiais de Friedkin. Saindo do âmbito familiar, o diretor coloca a câmera no cotidiano de agentes cuja missão é combater o crime. Sejam drogas, assassinato ou dinheiro falso, a autoridade nos filmes de Friedkin vive na linha limítrofe entre a salvação e a perdição. São figuras, acima de tudo, possuídas pela noção da justiça e do dever a cumprir, mas nem por isso deixam de se comportarem muitas vezes como os bandidos que combatem. De um lado o herói; do outro, o demônio. A obsessão está em terminar o serviço, nem que para isso precisem passar por cima das regras criadas por eles mesmos.

O mais notório dessa “linhagem” de Friedkin é o detetive Popeye Doyle, memoravelmente interpretado por Gene Hackman em Operação França. Porém, é outro investigador que talvez guarde uma maior complexidade na interação com os demais personagens em cena. Richard Chance (vivido por William Petersen) é o protagonista de Viver e Morrer em Los Angeles (1985), mas nunca se modela ao gosto do espectador. Amoral, impiedoso, arrogante, machista e prepotente, resume as piores características possíveis a um personagem principal – e é em torno dele que a ação do filme corre. Se Chance não é uma criação convidativa à identificação do público, isso se deve menos à sua forma de agir e mais ao tratamento que Friedkin lhe dá ao longo de todo o filme.

Não há qualquer tipo de mergulho em sua intimidade ou qualquer preocupação que seja em proporcionar sentimentos de piedade ou compreensão em relação a Chance. A câmera fria de Friedkin enfoca o policial no meio de suas missões, na ânsia devoradora e autofágica de caçar e matar o assassino de seu parceiro. Chance está mais decidido a encontrar o falsificador de dinheiro para um ajuste de contas do que simplesmente tirá-lo de circulação. Esse jeito ora despojado, ora mesmo inconseqüente com que Friedkin trata o dia-a-dia de Chance torna Viver e Morrer em Los Angeles um filme de fascinante estranheza, um mergulho num submundo em que ninguém vale muita coisa e onde o vilão, dotado de raciocínio rápido e uma calma invejável, exerce sedução maior do que o agente nervosinho e explosivo.

É em criações como Chance que o talento de Friedkin faz toda a diferença. Em vez de tentar achar pontos de apoio para sustentar seu protagonista, o diretor faz uma operação que parece impossível: um filme de ação não necessariamente clássico, mas moderno; um filme de ação em que a ação não ocorre por conta de um desenrolar claro e objetivo dos acontecimentos nem por gatilhos narrativos, mas porque o filme em si aparenta não poder ficar sem ela. Existe, na verdade, uma não-ação muito forte em Viver e Morrer em Los Angeles. Se olharmos o roteiro, e só ele, é fácil perceber que quase nada acontece, de fato, nas duas horas de filme. Por mais que haja ali uma das mais intensas perseguições de carro do cinema americano ou alguns momentos de violência bem dolorosos de assistir, Viver e Morrer em Los Angeles se caracteriza pela ausência do encadeamento típico de produções do gênero. É como se o filme estivesse mais para Godard do que para – sei lá – Michael Bay (usando aí dois exemplos diametralmente opostos). O que faz com que o longa respire é o cuidado estético com quem Friedkin o modela e o apuro como torna o agente Chance uma figura em constante movimento para cumprir suas obsessões, seu impulso possessivo de executar uma tarefa dada a ele por ele mesmo – e cujas conseqüências são sentidas no inacreditável desfecho, em que Friedkin radicalmente abre mão de qualquer pudor no destino final do personagem.

Dentro da filmografia de William Friedkin, Viver e Morrer em Los Angeles talvez encontre paralelo apenas no recente Possuídos. O cineasta tentou fazer algo semelhante em Jade, suspense lançado em 1995 na onda do thriller erótico apregoado por Instinto Selvagem, um ano antes. É também, na sua ambientação ambígua e na estética luminosa, um filme de destaque, ainda que aquém do impacto proporcionado pela saga de Chance na década anterior. Dali em diante, Friedkin entrou numa espiral de azar ou má escolha de projetos. Sua refilmagem de Doze Homens e Uma Sentença (1997) para a televisão (com Jack Lemmon no papel que fora de Henry Fonda no original de Sidney Lumet em 1957) perdeu-se nas prateleiras de locadora. Regras do Jogo (2000), em que Samuel L. Jackson faz o militar julgado pelo massacre de civis numa operação na África é, a meu ver, o filme mais equivocado do diretor –em tudo que ele carrega de manipulação e patriotismo exacerbado. Caçado (2003) trouxe de volta parte do vigor de Friedkin no trato com a câmera e com seus personagens, ainda que o filme tenha se apagado na época do lançamento.

Interessante perceber que, em altos e baixos, William Friedkin jamais deixou de lado a autoria mais típica. Reza a política dos autores defendida por críticos franceses dos anos 50 e 60 (de quando se destacam Godard, Truffaut, Rohmer e Chabrol) que o autor no cinema é aquele que, ao longo de uma obra constante, mantém, desenvolve e/ou evolui temáticas e elementos de linguagem recorrentes (leia sobre o assunto com maiores detalhes aqui, em coluna do colega Leonardo Amaral).

Exatamente isso o que Friedkin jamais deixou de fazer, mesmo em seus filmes “menores”: seja o detetive atraído pela suspeita de assassinato em Jade, o jurado que acredita na inocência do acusado em Doze Homens e Uma Sentença , o coronel disposto a livrar a cara do militar em Regras do Jogo ou o investigador de volta à ativa especialmente para perseguir um suposto assassino em Caçado – todos eles estão na ação possuídos pelo desejo de alcançarem objetivos aparentemente impossíveis, e a encenação de Friedkin, sua câmera e escolhas estéticas, servem de expressão para desejos tão intensos. Não é a irregularidade da carreira que fez o cineasta deixar de lado seus pensamentos acerca do que resolve retratar na tela. O louvor a Friedkin é válido na medida em que ele insiste nos mesmos anseios, variando a forma de exibir o conceito, mas sempre se mantendo convicto do que pretende atingir – e, na maior parte das vezes, conseguindo ser grandioso na sua própria obsessão artística.

É o que se vê, finalmente, em Possuídos. De uma única tacada, o filme é um retrato do tipo de cinema apregoado por Friedkin e também do tipo de personagem tão bem trabalhado por ele em seus melhores momentos nesses 40 anos de carreira. Com total despreocupação em agradar o espectador, o diretor narra em enxutos 100 minutos a relação crescente entre Agnes, garçonete que se isola num motel de beira de estrada com medo do marido recém-saído da cadeia, e Peter, ex-militar traumatizado que acredita ter sido vítima de experiências com insetos. O filme não tem pressa: gasta boa parte de sua duração para desenvolver o encantamento natural que um personagem exerce no outro – sem que, para isso, sejam eles pessoas fora do comum. São, na verdade, dois outsiders que por puro acaso se esbarram numa noite de farra.

Só que Friedkin logo expõe a verdadeira natureza de seu filme. À medida que as paranóias de Peter aumentam, mais intenso fica o romance da dupla, e mais Agnes embarca nos pensamentos do parceiro. Da fragilidade e carência da moça, brota a crença naquilo que o outro lhe apresenta, por mais absurdo que seja o comportamento de Peter. Ambos são os obcecados típicos do cinema de Friedkin: ela quer parar de sentir medo e precisa de um companheiro; ele acha que tudo ao seu redor foi meticulosamente planejado por aqueles a quem serviu no passado e busca a todo custo se livrar das “armadilhas” colocadas em seu caminho.

Entre tantas qualidades, possíveis de perceber verdadeiramente apenas numa sessão de Possuídos, o que torna o filme tão forte é o fato de Friedkin nunca desviar a câmera da subjetividade dos protagonistas. São eles que dominam a cena, eles quem recebem a atenção e a eles o diretor deve respeito. Por mais delirantes que o enredo vai se tornando, por mais exageradas que aparentem ser as situações apresentadas e a interpretação dos dois atores, Friedkin não mede esforços para sempre deixá-los no primeiro plano dentro da ação diegética. Se a câmera “física” mostra gente de fora – como o marido de Agnes surrando a porta, já mais próximo ao desfecho –, a câmera “mental”, aquela que rege o tom e a ambientação do filme, jamais se desgruda da loucura desmedida que se apossa do casal – mesmo que, para isso, Friedkin corra sérios riscos de ser tachado de over ou risível.

Não parece ser esta a preocupação do diretor, e ele leva as potencialidades de Possuídos às últimas conseqüências – potencialidades de linguagem e estética (som, imagem, montagem, angulação de planos) e de narração e conflito (o que culmina naquele que talvez seja o final mais enlouquecido de sua carreira – e desde já digno de antologia). É Friedkin dominando o meio cinematográfico como poucos. E, como poucos, dominando bem, ao dar conta da autoralidade que, queiram ou não muitos que falam e escrevem por aí, ele possui com categoria.

Cinema de possuídos: uma conversa com William Friedkin

Famoso por dirigir "O Exorcista" nos anos 70, o diretor fala sobre "Bug" e o que pensa da indústria de cinema dos EUA

*Originalmente publicado no jornal O Tempo em 21 de setembro de 2007

Realizador do lendário "O Exorcista" (1973), que redefiniu o gênero terror, e ganhador do Oscar por "Operação França" (1971), o cineasta norte-americano William Friedkin, 72 [na época dessa entrevista], mantém-se em plena atividade. Ao longo de 40 anos de carreira, teve altos e baixos, mas o saldo computa muito mais altos. 

Vários deles foram ficando para trás na mente de boa parte do público - como "Comboio do Medo" (1977), "Parceiros da Noite" (1980), "Viver e Morrer em Los Angeles" (1985) e "Caçado" (2003) -, mas ainda mantém a genialidade de um diretor que soube subverter regras de gênero e realizar trabalhos de muita força e impacto. É assim com "Bug" - que recebeu o infame título de "Possuídos" no Brasil. 

Um dos filmes mais perturbadores e instigantes deste ano, "Possuídos" teve lançamento mundial no Festival de Cannes de 2006, de onde saiu com o prêmio principal da Quinzena dos Realizadores (mostra paralela dedicada a trabalhos de maior experimentalismo e ousadia). Estreou no Brasil há pouco mais de um mês e minguou de público. Motivos podem ser vários, e essa é uma das questões que afligem Friedkin.

Ele conversou com o Magazine por telefone, direto da Califórnia, sobre isso e vários outros assuntos. Sereno, inteligente e sucinto, Friedkin se mostra consciente de ser um artista raro dentro da máquina de produção da grande indústria. Leia a conversa logo abaixo.

Sr. Friedkin, comecemos por "Possuídos". Quando foi seu primeiro contato com a peça de Tracy Letts, "Bug", e o que o atraiu a ponto de querer realizar um filme a partir dela? A peça surgiu há dez anos e vem sendo reencenada todo esse tempo. Assisti no circuito off-Brodway em 2005 e achei tudo muito bonito e muito poderoso e perturbador. Perguntei ao Tracy se poderia fazer um filme, mostrei meu interesse. O texto era cheio de elementos que eu poderia levar para o cinema e fui atrás tentar a adaptação.

O filme é muito fiel ao original, já que contratou o próprio Letts para ser seu roteirista? Eu tentei adaptar algo que já era muito poderoso e cinematográfico. Mudamos a forma para inserir mais elementos visuais. O maior desafio foi justamente transformar em imagens coisas que no teatro seriam impossíveis de fazer. Eu já tinha dirigido uma peça do Tracy Letts no teatro, que foi "The Man From Nebraska", e conhecia seu trabalho. Os EUA vivem hoje uma crise dramatúrgica, e Letts é um dos escritores que melhor trabalham nesse ramo atualmente. É inquestionavelmente um dos melhores, então o chamei para roteirizar o filme. Filmei em 20 dias com orçamento de US$ 4 milhões.

Um dos aspectos mais atraentes e angustiantes de "Possuídos" é o fato de que a narrativa nunca deixa de lado a subjetividade. O espectador está o tempo inteiro inserido nos delírios dos personagens, num verdadeiro mergulho na loucura e no amor dos dois que estão em cena. Foi difícil manter esse tom íntimo? O senhor teve receio do filme ser repelido pelo espectador acostumado a um excesso de explicações? Eu já tinha trabalhado dessa forma em outros projetos e sabia como fazer. "Bug" é uma história de amor muito intimista de duas pessoas que estão num quarto de motel e presas nelas mesmas, em crise com elas próprias, se podemos dizer assim. A mulher, Agnes (Ashley Judd), tem tanto medo de contato com os homens, depois de um trauma que sofreu no passado, que ela fica obcecada com a possibilidade de encontrar alguém com quem ela pode se relacionar. A maioria dos espectadores, hoje, espera histórias fáceis e explicadinhas. Mas eu fiz um filme para quem não espera respostas e nem explicações, para quem não procura ou espera entender exatamente o que está acontecendo.

O senhor também filma "Possuídos" de forma pouco habitual. São poucos cortes na montagem, os diálogos são muito longos e as atuações atingem um tom acima do que seria considerado "normal" no cinema médio norte-americano. Essas escolhas fazem o filme quase um projeto experimental e joga com as sensações do espectador. Gostaria que o senhor falasse dessas particularidades no jeito de filmar um drama entre duas pessoas paranoicas. Eu tentei fazer os personagens da forma mais realista e verossímil possível. Queria que eles fossem gente que você encontra todo dia na sua vida, que você reconhece. Eu mesmo os identifico com gente que conheço. Tem sido dito que os diálogos são teatrais ou exagerados apenas porque a maioria dos filmes feitos em Hollywood hoje é ridícula. "Quem é você?", "Como vai você?", são diálogos estúpidos. Em "Bug", o público acredita nas falas, o filme mostra uma visão verdadeira do mundo da forma como ele é. Pode ficar parecendo teatral justamente porque os personagens falam por muito tempo e falam de coisas estranhas. Isso tudo acaba provocando um certo estranhamento na narrativa, mas eu acredito que esses personagens são reais e estão nas ruas. A experiência como diretor de ópera me ajudou muito na hora de conceber "Bug" e vários outros dos meus filmes. Dirigir óperas é como dirigir filmes, só que sem a câmera.

"Bug" seria bem diferente se o som não exercesse muitos significados e tornasse tudo extremamente ambíguo. "O Exorcista", seu filme mais famoso, também era muito focado no uso do som, assim como vários outros trabalhos seus. Qual a importância do som para o seu cinema? É algo essencial. Eu gravo o som separado das filmagens. Faço a trilha sonora e incluo os efeitos de som (música, atmosfera, ruídos) depois de realizar as tomadas. Essa minha preocupação com o som vem do meu amor pelo rádio, pelos dramas de rádio, que eu sempre gostei e que vieram antes da TV. Eu tento fazer com que o som seja algo fundamental nos meus filmes e sirva como complemento da imagem. Quero que um sustente o outro, sempre em equilíbrio.

O senhor enxerga algo de político em "Bug", seja na temática ou nas escolhas formais? Claro. O filme é bastante político. Todos os políticos parecem as mesmas pessoas, eles são iguais. Não adianta dizer o que vão fazer, porque são sempre do mesmo discurso, a república democrática não muda. E a política de "Bug" são as experiências com os soldados. É disso que eu falo, sobre essa paranóia que atinge o homem comum exposto aos políticos. Mas não estou dizendo que o homem no filme, o ex-soldado Peter, esteja falando necessariamente a verdade. Porque ele está tendo delírios, e o espectador pode considerar que nada no filme é verdade e tudo seja fruto de imaginação. O Peter não é simplesmente louco, ele é extremo, e a idéia da paranoia é muito forte no filme, a noção de como as pessoas tentam se defender quando acreditam estar sendo ameaçadas.

"Bug" não foi um grande sucesso nos EUA e não tem conquistado grandes platéias no Brasil. Porém, é uma unanimidade crítica desde Cannes. A que o senhor atribui a má performance de "Bug" junto ao grande público? Eu não tenho a menor idéia. Nunca paro para pensar nisso e também não entendo porque tantos filmes que não dizem absolutamente nada fazem sucesso. 

Aqui no Brasil, "Bug" foi lançado com o título de "Possuídos", numa analogia forçada a "O Exorcista" e seus demônios encarnados - ainda que "Bug" não tenha nada disso. O senhor sabia desse título? É horrível! Eu nao fazia a menor idéia. Nunca fico sabendo dos títulos fora dos EUA, nem sugiro nada. Mas "Possuídos" é muito ruim. 

Ironicamente, o seu cinema é caracterizado por personagens que poderíamos chamar de possuídos por algum tipo de obsessão ou vontade. Eles se dispõem a qualquer coisa para atingir os objetivos. É o padre de "O Exorcista", os policiais de "Operação França" e "Viver e Morrer em Los Angeles", o motorista de "Comboio do Medo", o jurado de "12 Homens e Uma Sentença", o agente de "Caçados" e o ex-militar de "Bug", entre tantos outros mais. O senhor realmente sempre procurou focar personagens ambíguos e obcecados? Eu nunca sei direito para onde estou indo. Sempre que começo um projeto, vou deixando que ele tome sua própria forma. O que me interessa todas as vezes é o limite entre o bem e o mal, é o fato de que todos nós vivemos nesse limite e isso faz parte das pessoas. Eu não tinha idéia disso no começo da minha carreira, mas agora é tudo muito claro. Nem preciso ir atrás desses temas, porque eles sempre vêm até mim de um jeito ou outro.

Em vários artigos sobre "Bug", foi comum o discurso de que o filme representou o grande retorno de William Friedkin. Porém, o senhor nunca sumiu, de fato, e sempre manteve produção constante. O que o senhor pensa disso? De fato "Bug" é uma continuidade. Os personagens e temas presentes em "Bug" são muito parecidos em vários outros filmes que eu fiz, mas a história, o enredo, é diferente. Eu busco me manter em algumas dessas temáticas ao longo dos meus projetos.

Quais são suas referências dentro do universo do cinema, tanto como cinéfilo quanto como realizador? O senhor possui filmes de cabeceira? Não tenho filmes de cabeceira e nem saberia falar sobre algum cineasta que me toque mais. Na verdade, eu poderia dizer que não sou membro de nenhum fã-clube.

E na sua carreira, o senhor destacaria algum filme em específico? Acho que não. Seria o mesmo que perguntar a um pai ou a uma mãe qual seu filho favorito. Você até pode ter um, mas não vai dizer. (risos)

O senhor vem de uma geração de grandes nomes do cinema norte-americano, como Coppola, Scorsese, Clint Eastwood. O cinema dos EUA evoluiu? Não há muito o que falar do cinema norte-americano hoje porque ele não é nada mais que um exercício comercial. Nem há como como comparar com o que fazíamos naquela época, quando essa preocupação com o comercial não era algo tão forte. Era um momento de muita liberdade, principalmente antes da minha geração, com os grandes nomes clássicos de Hollywood. Mesmo os estúdios controlando tudo, havia noção de que os diretores sabiam o que fazer. Hoje os filmes estão mais preocupados com a venda dos ingressos e com grandes orçamentos. Um trabalho de menos de U$ 100 milhões já é considerado de baixo orçamento.

Como o senhor avaliaria o significado de um filme como "O Exorcista" e a referência que ele se tornou para toda uma geração? Eu não controlo o que os meus filmes vão significar para as gerações. Simplesmente essas coisas acontecem. E também não estou atrás disso, quero continuar fazendo aquilo que eu acredito e aquilo que eu quero ver.

Está com novos projetos em andamento? Estou com vários projetos e avaliando alguns roteiros. Nunca estou parado, porque tenho outras atividades fora do cinema. Também sou diretor de ópera e viajo muito com as minhas peças, para diversas partes do mundo. Desde 1996, quando fui convidado para dirigir "Wozzeck", de Alban Berg. Já fui a Florença, Tel Aviv, Munique, Turim e outros lugares com várias óperas e é algo que me mantém sempre na ativa.