Eu era repórter de cinema do jornal "O Tempo", em Belo Horizonte, na ocasião em que o cineasta David Lynch (1946-2025) visitou a cidade para receber uma medalha na UFMG e lançar seu livro sobre meditação transcendental. Foram apenas dois dias dele na capital mineira, e eu me esmerei em estar o máximo possível na cola do homem. As andanças renderam duas reportagens publicadas no jornal, em lindas páginas infelizmente impossíveis de aqui reproduzir. A editora dessa material foi a Silvana Mascagna, a quem agradeço a confiança de sempre ao me deixar me aventurar durante todo o período em que trabalhamos juntos.
Para manter esse material de fácil acesso, reproduzo as duas matérias abaixo. Em seguida, alguns conteúdos inéditos.
PRIMEIRA PARTE
O homem da mente de ouro
Publicada no jornal "O Tempo" em 5 de agosto de 2008
Reportagem: Marcelo Miranda. Foto: Alexandre Guzanche
Todos que conhecem Lynch pelos filmes sombrios que vêm realizando desde 1977 inevitavelmente se surpreendem com a serenidade, tranqüilidade e paciência com que desenvolve um raciocínio em meio à conversa.
Por 30 minutos, Lynch falou abertamente a aproximadamente 20 repórteres, cinegrafistas e fotógrafos que se acotovelavam no pequeno lugar. Em todo esse tempo, o assunto primordial do diretor de obras-primas como "Eraserhead", "Veludo Azul", "A Estrada Perdida", "Cidade dos Sonhos" e a série "Twin Peaks" não era o cinema. Era a meditação transcendental, tema sobre o qual ele escreveu um livro agora lançado no Brasil, "Em Águas Profundas". Publicado pela Gryphus Editora, o livro é a maior motivação de Lynch em seu périplo pelo país - esteve no Rio de Janeiro, fica em Belo Horizonte até hoje (veja no quadro) e depois segue para São Paulo e Curitiba.
Praticante da meditação há 35 anos, duas vezes ao dia, Lynch não apenas se aproveita dos supostos ganhos da prática, como é um de seus mais notórios defensores. "A meditação abre as portas para o nível mais profundo da vida", afirma, categoricamente. "É um oceano de possibilidades. Oceano profundo, infinito, maravilhoso, cheio de qualidades, de inteligência, energia e criatividade."
Lynch aprendeu a falar em português a palavra "felicidade". Repetiu-a por três vezes na coletiva e mais algumas várias em conversas individuais - inclusive numa exclusiva com o Magazine. O maior mantra é que "a negatividade é inimiga da criatividade".
Liberdade. A impressão é de Lynch não querer falar sobre cinema. Como todos estavam em busca de declarações suas a respeito dos filmes que faz, foi inevitável que o assunto viesse à tona. "Percebi que, mergulhando dentro de mim mesmo, eu me dava liberdade. Apliquei isso aos filmes", revelou. "Me senti tão feliz em fazê-los que o stress da minha vida desapareceu."
Lynch explica seu processo criativo sempre ligando-o à meditação. Mas, com esforço, é possível fazê-lo falar mais especificamente de determinado aspecto. "Eu tenho idéias, e algumas me deixam apaixonado por elas. Quando isso acontece, sigo adiante. Se não me apaixonar pela idéia, então não faço".
Quando perguntado o porquê de alguém que encontrou a paz e a felicidade através da meditação desenvolver projetos tão sombrios, obscuros e misteriosos como é sua obra, Lynch dá uma risada. "É o que mais me perguntam em todo lugar onde vou", comenta, simpaticamente. E logo emenda a explicação - sem explicar muito, claro. "Você não precisa morrer para filmar a morte, nem sofrer o mesmo que seus personagens. É necessário entender o sofrimento, deixar a consciência expandir esse entendimento, perder o medo e buscar as idéias no nível mais profundo. A condição humana é que cria as histórias que eu conto."
Então a meditação pode ajudar a diminuir os medos que seus filmes provocam, sr. Lynch? "Sem dúvida alguma!", responde, dando outro sorriso sarcástico.
Sonhos. Lynch sabe que seus dois últimos filmes ganharam no Brasil títulos que forçam uma relação entre sonho e realidade - "Cidade dos Sonhos" (2001) e "Império dos Sonhos" (2007). "Não gosto desses títulos", dispara, sobre a tradução para "Mulholland Drive." e "Inland Empire". "Sonhos noturnos raramente têm influência. Muitas vezes sonhos que acontecem durante o dia trazem idéias. Eu sempre digo que amo a lógica dos sonhos. E o cinema pode dizer a lógica dos sonhos, assim como coisas concretas."
SEGUNDA PARTE
David Lynch provoca risos e choro na UFMG
(Publicada no jornal "O Tempo" em 6 de agosto de 2008)
Reportagem: Marcelo Miranda. Foto: Filipe Chaves/CDCOMUFMG
O realizador de "Veludo Azul" (1986) e "Cidade dos Sonhos" (2001) preferiu deixar a conferência fluir a partir de perguntas dirigidas a ele. E aí, é claro, vieram desde dúvidas mais interessantes às mais absurdas. Enquanto um estudante perguntou sobre o quanto a memória influi no trabalho de Lynch, outro disse explicitamente que o diretor deve "fumar um ou tomar chá de cogumelo" para fazer seus filmes. De um lado houve quem perguntasse do processo de criação e o quanto havia de autobiográfico em seu primeiro longa, o cultuado e enigmático "Eraserhead" (1977); do outro, uma aluna elogiou o cabelo de Lynch e disse que estava lhe passando uma cantada - para, ao perceber o silêncio sepulcral na sala, completar: "Fiz uma piada, senhor Lynch".
FRAGMENTOS. Lynch "enfrentou" a tudo e todos com a já notória paciência, tranqüilidade e simpatia - características deixadas claras também na entrevista exclusiva ao Magazine, publicada na edição de ontem. Falando mais de cinema do que de meditação transcendental - tema que, de fato, trouxe-lhe ao Brasil para divulgar o livro "Em Águas Profundas" -, Lynch mostrou- se à vontade para responder ou fugir de todas as questões levantadas na conferência. Logo na primeira, ele mostrou a que veio: perguntado, durante três minutos, pela professora Maria Esther Maciel (que o acompanhava na mesa, junto ao professor Heitor Capuzzo) a respeito de uma série de questões sobre sua obra, Lynch respondeu um sonoro "eu não sei", arrancando risos das centenas de pessoas que enchiam o auditório e quase toda a área externa do local.
Lynch basicamente focou- se na noção de idéias que nascem e são desenvolvidas, mostrando o quanto ele age mais pela intuição do que por qualquer tipo de racionalidade. "Tudo o que faço são a partir de idéias apaixonantes, e meu desafio é saber como transpô-las para o cinema", disse. "Mas elas nunca vêm de uma só vez. Sempre penso em fragmentos, e então tento desenvolver esses pedaços." O diretor mostrou-se arredio à relação com outros diretores. "Não tenho diálogo com realizadores e sou pateticamente desconhecedor de cinematografias do mundo." Também recusouse a falar de quaisquer elementos específicos de seus filmes - sobre uma pergunta da série "Twin Peaks", disse que "não fala a respeito disso"; quando questionado se podia comentar a famosa caixa azul de "Cidade dos Sonhos", apenas disse, delicadamente: "não".